Daniel Santiago é um documentarista por natureza. Sua formação cinematográfica foi feita através dos ensinos e exemplos de grandes realizadores deste gênero no Brasil. Foram nomes como Eduardo Escorel, Eduardo Coutinho e Leon Hirszman que criaram sua base de referências, e foi através das lições aprendidas com estes mestres que construiu seu primeiro longa-metragem, o documentário Coração do Brasil, elaborado ao acompanhar durante meses uma jornada ao centro geográfico do nosso país. Paulistano de 59 anos, o cineasta, que já trabalhou com publicidade e produziu longas de sucesso como Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981) e Eles Não Usam Black-Tie (1981), conversou com exclusividade com o Papo de Cinema sobre essa verdadeira aventura. Confira!
Como surgiu a ideia do documentário Coração do Brasil?
A ideia surgiu de um encontro. Alguém me apresentou do Sergio Vahia de Abreu, em 2008. Ele já estava com a vontade de retornar ao centro geográfico do Brasil, 50 anos depois de terem ido até lá pela primeira vez. Após uma conversa de duas horas e meia, foi ele que me convenceu de que eu deveria embarcar nesse projeto ao lado dele. A iniciativa surgiu da vontade de acompanhar essa expedição. Essa primeira fase tinha como foco apenas documentar a expedição. No total chegamos a ter 40 horas filmadas, durante quatro semanas de filmagens. Somente quando já havíamos retornado é que fui trabalhar atrás dos fatos históricos, através de muita pesquisa, para então fazer essa ponte cinco décadas anos depois. Eu comprei esse sonho dele.
Foi muito complicado convencer Sergio Vahia de Abreu, Adrian Cowell e o cacique Raoni para refazerem essa viagem 50 anos depois?
A complicação maior foi a questão logística, principalmente porque o Adrian, na época, morava em Washington, e o Raoni no meio da floresta. Quando o Sergio falou em contatar o Adrian, minha preocupação foi ver quem também ainda estava vivo tanto tempo depois. Foi quando decidimos ir atrás do Raoni. Os três personagens possuem algo em comum, são pessoas que andam muito pelo mundo, não param por muito tempo em um único lugar. Então, como é possível imaginar, reuni-los foi, sim, complicado. Mas tem também as coincidências do destino, que mostram que estamos no caminho certo: descobrimos que naquela mesma época o Adrian estava trazendo o acervo dele para a Universidade Católica de Goiás. Foi o suficiente para amarrarmos tudo em torno da expedição do Sérgio.
Qual a importância de se chegar até o coração do Brasil?
O centro geográfico, na realidade, não tem muita importância. O Adrian mesmo nos disse isso – não é relevante. O coração do Brasil é simbólico, na medida em que lá é uma terra indígena, uma área preservada, um território exclusivo dos caiapós. O centro do Brasil está numa mata fechada, selvagem, vigiada. O cacique Raoni entendeu o significado simbólico do centro , dizendo que alguém no futuro terá que vir até aqui, e a pessoa terá que pagar para isso – a troca continua, sempre. Mas chegar lá foi muito emocionante, o hasteamento da bandeira, o cântico dos índios, é um pedaço do país que segue intocável, igual como era 50 anos atrás, 500 anos atrás. Transformar em ponto turístico é uma possibilidade do futuro, mas não é algo urgente.
Qual foi a maior dificuldade para a realização deste projeto?
Nós pedimos todas as autorizações formais com a Funai. Foi uma dificuldade muito grande, mas conseguimos. São 16 etnias atualmente, e dessas visitamos 8, a metade. E todas foram avisadas, com antecedência. Mesmo assim, o Sergio preparou, ao longo de 4 meses, presentes para eles. Desde o descobrimento é assim, a troca é fundamental. E acho justo, afinal já tiramos tantas coisas deles, que precisamos deixar algo de retorno. Deixamos barcos, equipamentos, víveres… Chegou um ponto que nem dinheiro mais nós tínhamos, pois deixamos praticamente tudo com eles. Teve apenas uma situação mais difícil, quando não tivemos permissão para pousar na pista da aldeia, e fomos obrigados a pousar no rio Xingu, e chovia, foi muito complicado. Mas as índias da Aldeia Boa Esperança nos chamaram, e foram elas, vindas de uma outra aldeia, que acabaram nos ajudando. Se tivéssemos entrado na tempestade é bem provável que esse filme nunca tivesse sido completado. As dificuldades continuaram sempre, por todo o trajeto. Foram 18 km de picada, que parece pouco, mas era mata fechada, com um senhor idoso… ou seja, foi muito difícil. O Adrian e o Raoni foram na frente, levaram 10 horas. Eu e minha equipe levamos 16 horas, enquanto que o Sergio levou 6 dias! Parecia que não chegaríamos nunca! Imagino como foram com os Villas Boas, 50 anos atrás! Foi uma das coisas mais difíceis que já vivi, um desafio incrível.
O que você achou do filme Xingu? Estamos num momento de redescobrir o próprio Brasil?
O Xingu (2012), do Cao Hamburger, é um filme que gosto muito. Ele oferece um recorte dessa expedição e tem sua importância. Já o Coração do Brasil é um documentário e tem sua função em refletir sobre o que aconteceu durante esses 50 anos. Os dois longas possuem propostas bem diferentes. Lá no parque Xingu não há pessoas felizes, há muitos índios querendo sair, ir para suas terras originais. E a situação deles mudou, hoje os índios não morrem mais como antigamente, a população está crescendo. E há o abraço da morte, pois os índios não podem aumentar seus espaços, pois o parque está cercado por municípios que querem entrar para tirar o que eles tem. Era para ser um oásis, mas já é quase um deserto, pois não há mais floresta. A modernidade chegou, os jovens não são mais como seus pais, avós, e o parque está num momento de profunda reflexão sobre o próprio futuro deles. É importante que haja esse questionamento, e que se pense o que vai ser dos índios brasileiros. Eles estão aí, não vão desaparecer, o que iremos fazer com eles? Veja só a luta inglória do cacique Raoni contra a construtora Belo Monte, que repercutiu no mundo todo, mas no Brasil segue sem mudanças! Mas tudo pode ser revertido, para isso precisamos de reflexões e de atitudes.
O que o público pode esperar de Coração do Brasil?
O público pode esperar uma aventura, com componentes de história e de geografia. Esse desejo do Sergio, de voltar ao seu lugar, tem todos estes elementos, mas cabe aí também uma reflexão sobre essa jornada, que olha para o norte do país, lugares que não mudaram muito em todas estas décadas. A violência, a luta pela sobrevivência, essa questão permanece atual. A mata e as pessoas que moram lá ameaçam a sobrevivência de todos ao redor. O Adrian mudou minha maneira de pensar sobre tudo isso. Meu próximo projeto será um novo documentário, inicialmente chamado Memórias da Fundação Brasil Central, e nele vou tentar contar a história de como foi ocupado o Brasil Central. É uma parte da nossa história muito pouco conhecida, com lutas e violência, com a fundamental marcha para o oeste, as ações dos Villas Boas. Vou seguir nessa tentativa de entender melhor como foi a ocupação daquilo tudo. Já filmamos uma semana, e tem mais três pela frente. Ou seja, o trabalho não para.
(Entrevista feita por telefone diretamente de São Paulo)
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