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No Festival de Berlim 2022, o cinema brasileiro apresentou uma obra ousada, combinando cinema documentário e linguagem experimental para narrar a tragédia envolvendo o acidente com Césio 137 em Goiânia. O Dente do Dragão (2022), dirigido por Rafael Castanheira Parrode, combina materiais variados: filmes clássicos do cinema mudo, imagens de reportagens e gravações contemporâneas, a partir das quais efetua uma série de intervenções digitais em pós-produção. O resultado é perturbador e deslumbrante imageticamente, além de representar uma maneira diferente de discutir os fatos ocorridos no centro do Brasil.
Nós conversamos com o diretor a respeito do processo criativo, e da importância de exibir este curta-metragem na 72ª Berlinale:

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Rafael Castanheira Parrode apresenta O Dente do Dragão no Festival de Berlim. Foto: @Berlinale

Por que decidiu reunir materiais tão diferentes, de Nibelungos ao cinema experimental e às reportagens da televisão brasileira, para debater o tema do Césio?
Em Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss narra uma visita a Goiânia, na época da construção da cidade. Ele descreve a paisagem, com a terra arrasada, e diz que parece um hospital. No final, ele usa a metáfora do Cadmo e o Dragão. Cadmo matou o dragão, e a partir dos dentes do animal, nasceu uma civilização inteira. Isso sempre me marcou, porque descreve muito bem Goiânia e as cidades planejadas. Belo Horizonte e Goiânia foram cidades-teste para a chegada de Brasília depois. Os Nibelungos (1924) veio na ideia de adaptar o mito do Cadmo. O filme original não fala sobre isso, mas me permite fazer referência a essa metáfora, que me parecia importante.

O que o título O Dente do Dragão representa para você?
Ele parte desse episódio de Lévi-Strauss, mas além disso, a figura do dragão está ligada a outras metáforas de radiação. Penso no Japão, com a bomba atômica e o Godzilla. Existia uma relação muito orgânica entre o dragão do Lévi-Strauss e o monstro que se transforma por causa da radiação. Queria falar que esse dente do dragão era a semente que geraria essa cidade. Goiânia nasceu a partir de uma ideia de civilização que se provou completamente falida. Ali, acontece algo que ninguém acreditaria: um dos maiores acidentes radioativos do mundo. A história da cidade, e desse evento em particular, nos fala sobre a nossa própria condição civilizatória — não apenas no Brasil. Passamos por cima de muitas coisas, destruímos muitas coisas importantes em nome dessa ideia falha.

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Você faz muitas intervenções digitais em pós-produção. A ideia era descaracterizar o material original a ponto de se tornar algo totalmente novo?
Esse filme nasceu do acaso. Eu tenho o roteiro de um longa-metragem sobre o Césio, que venho desenvolvendo há oito anos. Mas eu parei de mexer, e outros projetos surgiram enquanto isso. Com a pandemia, decidi retomar a pesquisa. Comecei a ver muito material de arquivo e assistir a outros filmes sobre o Césio. Tudo aquilo me incomodava muito: esses filmes sempre estabelecem uma relação cruel com as vítimas. Elas são despersonalizadas, desprovidas de subjetividade, e se tornam meras pessoas que carregam a radiação e estão por aí, sofrendo. Os primeiros cortes que fiz do filme tinham bastante imagens de arquivo. Fui tirando boa parte delas. Então veio o processo de transformar as imagens: tento intervir muito, seja para desconstruir, seja para estabelecer uma relação crítica de choque entre o que é originalmente e o que ela pode vir a ser. Este foi o processo: encontrar imagens que não reforçassem a crueldade com as vítimas, enquanto confrontava as imagens com a própria radiação. Queria que as imagens estivessem contaminadas também, e estivessem radiando até hoje.

O quanto dessa estrutura nasce de um roteiro prévio, ou todo o formato foi esculpido na edição?
Não teve roteiro, foi feito só dentro da pesquisa e do trabalho na montagem. À medida que vou colocando as imagens, associando umas às outras, e intervindo na natureza delas, o filme vai nascendo. Não tinha uma ideia de roteiro, as coisas surgiam na pesquisa: eu ficava incomodado com o fato que a memória das vítimas foi apagada, literalmente enterrada. As vítimas não têm hoje seus álbuns de fotografia — tudo foi enterrado. Os animais de estimação foram mortos e enterrados. Os objetos, as geladeiras, tudo o que era memória física foi enterrado. Isso me incomoda. Além da invisibilização que passaram e passam até hoje, a destruição da memória deles é bastante violenta. Isso me surgiu na montagem: a necessidade de usar tratores cavando, por exemplo, a partir dessa reflexão. 

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O que a linguagem do documentário pode trazer à linguagem do cinema experimental, e vice-versa?
É uma briga. Ao mesmo tempo que eu tinha desejo de falar sobre o assunto, não queria contar a história do Césio. Já existem filmes sobre isso. Os primeiros cortes eram mais documentais, numa relação informativa. Eu tinha mais dados, descrições. Mas esses trechos me desagradavam: não queria uma obra fatual, informando sobre a tragédia. Preferia explorar a ideia da imaginação. Eu começo a intervir nos arquivos a partir do momento que Goiânia surge, quando se discute a marcha para o oeste e a cidade-fronteira. Queria que o filme abordasse o tema de maneira pictórica, via sensações, e com as questões que as intervenções na imagem poderiam suscitar. Todo ano, em Goiânia, na época do Césio, os canais voltam a falar sobre isso, e entrevistam as vítimas. Os fatos ainda são muito explorados. Preferi ir por outro caminho.

Como enxerga o papel específico do curta-metragem na resistência atual do cinema brasileiro?
É complexo. O curta-metragem é uma saída para produzir sem grana. Meu filme foi feito sem nenhum edital, sem grana. Com todos os cortes, que impediram desenvolver 0utros projetos, existia a sensação de impotência, mas ao mesmo tempo, o desejo de continuar fazendo. O curta-metragem possibilita isso de maneira mais livre. Você pode encontrar formas de filmar sem uma estrutura grande de financiamento por trás, algo que existia antes. A gente se acostumou a trabalhar dentro deste mecanismo. Apesar de tudo, existem ainda meios e formas de produzir. Não vamos parar, independente do que vier. Ao mesmo tempo, reconheço que essa pode ser uma fala meio reacionária: quem sobrevive de cinema precisa desses meios. Nem gosto muito de falar que fiz o filme sem grana, e levantar essa bandeira, porque a arte não funciona assim. Queremos ter projetos mais ambiciosos, queremos sobreviver. Não vou romantizar o ato de fazer o filme sem grana. Mesmo assim, nos momentos críticos, pelo menos essa é uma forma de mostrar que a gente não parou. Não é porque Bolsonaro tentou sufocar o cinema brasileiro que vamos morrer sufocados.  

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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