O Desafio de Marguerite (2023) é protagonizado por uma brilhante estudante de matemática que pesquisa na renomada Escola Normal Superior de Paris. No dia em que deveria apresentar sua tão aguardada tese, ela se depara com um erro capaz de abalar todas as suas estruturas. Trata-se da história de uma mulher numa área majoritariamente masculina que tenta sobressair com sua genialidade. Um dos destaques do 14º Festival Varilux de Cinema Francês, o longa-metragem foi premiado com o Troféu CST no Festival de Cannes 2023 e é dirigido por Anna Novion, uma das estrelas da delegação francesa que desembarcou para dialogar com o público durante o evento. Conversamos com ela numa tarde ensolarada do Rio de Janeiro sobre a gênese do projeto, o quão pessoal é essa história que, segundo a própria autora, estabelece paralelos entre a matemática e a criação artística, e o que ela está achando dessa turnê pelo Brasil. O resultado deste Papo de Cinema exclusivo você confere logo abaixo.
Como surgiu a ideia de construir um filme em torno dessa personagem tão ensimesmada?
É uma personagem que se parece muito comigo. Atualmente me considero sociável, mas como inspiração pensei num período em que fiquei doente, quando tinha uns 20 anos de idade. Tive de permanecer diversos meses em casa. Mesmo depois da cura me senti diferente, deslocada, parecia que não tinha a mesma energia das pessoas de minha idade. E revisitar esse sentimento me deu a vontade de fazer o filme. Esse foi o primeiro degrau. Depois, quando tive a ideia de utilizar a matemática, encontrei uma área em que muitas pessoas sentem esse isolamento, como senti aos 20 anos. Então, consegui falar de mim, de uma intimidade, mesmo me escondendo, pois não sou matemática.
No filme há contrastes bem marcados. Enquanto a protagonista é cinzenta o outro matemático e a colega do quarto são solares, por exemplo. Desde o começo você queria destacar esses contrastes?
Como o filme tem um quê de comédia romântica, até porque não queria reduzir as possibilidades a apenas um gênero, os contrastes são algo pensado desde o início. É aquilo dos personagens que se dão bem, mesmo não tendo nada muito em comum. Então essas oposições são interessantes. Era importante retratar a Marguerite como alguém que precisa conciliar a matemática com a vida externa, até porque ela se refugia na matemática. Para ela é doloroso ver alguém que está no mundo dela, mas que consegue ter uma vida com outros elementos. Conversei com o matemático italiano Alessio Figalli, que tinha recebido um prêmio recentemente, e é um sujeito bonito que se veste bem. Ele disse que era importante tomar uma cerveja com os amigos depois de um dia de trabalho para escapar desse mundo. Então, o personagem do outro matemático é um pouco inspirado nele.
Já a protagonista é uma pessoa absolutamente obsessiva…
Sim, esse aspecto também vem de mim. Coloquei muito de mim nessa personagem. Esse filme fala muito da minha relação com o cinema, do meu trabalho como diretora. Quando encontrei Ariane Mézard, a matemática que me ajudou a encontrar o filme, aliás, uma das grandes e raras mulheres francesas da área, ela falou muito de paixão, de abnegação, de necessidade e também do risco assumido nessa profissão, o de passar anos diante de uma equação e não conseguir chegar a uma conclusão satisfatória. É a mesma coisa no cinema, você pode escrever um projeto por anos e não conseguir viabilizá-lo por falta de dinheiro. São profissões que precisam de obsessão e tenacidade. No fim das contas, o filme estabelece um paralelo entre a matemática e a criação artística.
Além disso, a Marguerite é uma mulher cercada de homens por todos os lados…
Sim, de certa forma, é um filme feminista que acompanha uma mulher nesse meio, destacando a dificuldade que ela enfrenta num mundo masculino. Ela é uma minoria, por isso se sente deslocada, tem de disfarçar a sua feminilidade, pois é como se isso a atrapalhasse. Marguerite precisa se esconder, não quer ser diferente. E, ao se emancipar, ela afirma a sua feminilidade e encontra o seu lugar como matemática e mulher. Quando somos mulheres num mundo masculino, acabamos nos moldando às expectativas masculinas. Marguerite se distancia das emoções, da própria vulnerabilidade. Na matemática há muita competição, especialmente nos institutos de alto desempenho. Então Marguerite precisa vestir uma armadura quase masculina para lutar esse combate.
E o que você está achando dessa visita ao Brasil por conta do Festival Varilux?
É a primeira vez que venho a América Latina e estou muito feliz, maravilhada por encontrar novas culturas e novas paisagens. Me sinto no coração de algo importante, em total oposição à minha casa que está muito longe. Me sinto muito feliz. E também é interessante perceber como o filme é recebido num país que a gente não conhece, com uma cultura tão diferente. A gente percebe até que ponto as emoções são universais.