Antonella Sudasassi Furniss assina assim mesmo, com os dois sobrenomes, pois faz questão de homenagear suas origens, lembrando o pai e a mãe. Nascida em primeiro de agosto de 1986 em San Jose, capital da Costa Rica, cresceu e estudou no pequeno país da América Central, tendo se formado em Comunicação Social, com Licenciatura em Produção Audiovisual. Acostumada a uma estrutura familiar bastante forte, cresceu observando as relações entre as mulheres de sua família – mãe, tias, avós – e o que elas significavam umas para as outras. Dessas experiências nasceu o projeto O Despertar das Formigas – ela explica melhor a seguir – que já rendeu dois frutos: um curta-metragem, lançado em 2016, e um longa, que está em cartaz agora nos cinemas nacionais. Premiado no Festival de Gramado e escolhido para representar seu país no Oscar 2020, esse sensível drama tem sido aclamado por todos os lugares por onde tem passado. E aproveitando essa oportunidade, entramos em contato com a realizadora, que falou com o Papo de Cinema, direto de sua casa, em San Jose, na Costa Rica, para falar sobre o filme, as histórias que carrega e suas expectativas com o Brasil. Confira!
Olá, Antonella! O Despertar das Formigas é o teu primeiro longa. Como ele nasceu?
O filme nasceu de uma forma curiosa, fruto de duas motivações distintas. Primeiro, de algo íntimo e pessoal, a observação da minha própria família, pois estava atenta desde pequena, e me acompanhou enquanto ia crescendo. Aos poucos fui percebendo o papel da minha mãe, das minhas tias, das minhas avós, sempre servindo, atendendo, cuidando dos outros. Eram mulheres fortes de caráter, quem realmente mandava na casa, mas suas realizações pessoais eram sempre a partir dos demais. Garantir que todos estivessem bem. Isso era o que queria discutir através do cinema. E outra coisa foi uma notícia que li, totalmente ao acaso, sobre um episódio que aconteceu aí no Brasil. Falava da ‘Rapunzel brasileira’, a garota que tinha o cabelo mais comprido do país. O que me chamou atenção foi que, quem falava a respeito, era o marido. Era por causa dele tudo aquilo, dizia que ficava encantado que o cabelo da esposa fosse tão comprido, que a deixava mais feminina. E, no final da matéria, a única coisa que essa mulher dizia era que não gostava de todo aquele cabelo porque no Brasil fazia muito calor!
Essas duas referências, de alguma forma, foram fundamentais para o roteiro que você estava preparando?
Imediatamente. Foi uma característica que decidi incorporar ao personagem naquela hora: teria que ser uma mulher de cabelo comprido, e o cabelo dela teria que significar algo para os demais. Foi nesse momento em que começamos a escrever o roteiro. O primeiro passo foi realizar uma investigação no povoado onde filmamos. Acabamos num lugar muito pequeno, chamado San Mateo. Decidi que o melhor seria experimentar aquele lugar por completo, tanto que fui morar com famílias daquela região. Eram todos muito humildes, nem televisão havia, o que foi bom, pois tivemos a oportunidade de conversar bastante e conhecer melhor aquelas pessoas. Fiquei cerca de um mês com eles, tempo que aproveitei para formatar o roteiro. Incorporei muito da vida daquela comunidade na história.
Você já conhecia essa região ou foi o seu primeiro contato?
Quando íamos às praias do Pacífico, minha família passava por San Mateo no caminho. Ou seja, já havia estado por lá, sabia da existência, mas tudo superficialmente. Por isso esse mergulho se fez tão necessário. Ele voltou ao meu radar enquanto estava procurando as locações para o filme, e ao chegar lá percebi que estava exatamente igual, mesmo tendo passado vinte ou trinta anos. Nada havia mudado.
O filme é baseado num curta, certo? Como foi o processo de adaptação?
Na verdade, o projeto O Despertar das Formigas é composto por três filmes. Eles são independentes entre si, mas funcionam com uma continuidade. Afinal, todos retratam a história de uma mulher, porém em diferentes etapas de sua vida. Ou seja, não é uma adaptação, uma refilmagem. Está mais para uma sequência. O primeiro foi uma curta-metragem, que tratava da infância. Depois veio esse longa ficcional, que fala da juventude. E por fim virá um documentário, que estou trabalhando no momento, e irá abordar a maturidade.
Além de falarem da vida de uma mulher, o que possuem em comum?
Os três se ocupam em falar da sexualidade, porém em diferentes etapas da vida. Na infância, olhávamos para a descoberta do sexo. Na juventude, o tema era a maternidade e a apropriação do próprio corpo, que é o que vemos nesse filme de agora. E depois, com essas mulheres já maduras, quero descobrir como é a sexualidade para elas, após os 65 anos.
Chama atenção o trabalho de Daniela Valenciano, a protagonista, como Isabel. Como foi a escolha dela?
Foi muito bonito trabalhar com a Dani. Ela vem do teatro, e nunca havia feito cinema, nem mesmo nada relacionado com o audiovisual. Essa foi a estreia dela. A escolhi pois tinha uma personagem que transmitia muita força física, ao mesmo tempo que era dona de uma capacidade muito grande de guardar tudo dentro de si. Estava sendo muito contida. Tinha que ser alguém capaz de expressar muito só com o olhar, por exemplo.
Quais foram as orientações durante as filmagens?
Como era a primeira vez tanto minha quanto dela, fizemos ensaios, ou melhor dizendo, workshops de atuação, por três meses. Íamos até San Mateo – afinal, éramos os únicos profissionais envolvidos, a maioria do elenco era de não-atores da própria região, com exceção do esposo, da cunhada e da sogra – todos os fins de semana para trabalharmos, aos poucos, cada detalhe. A câmera estava sempre ligada em frente deles, para que se acostumassem. Fizemos exercícios, ainda que nenhum fosse um ensaio, propriamente dito. Não fazíamos as cenas, mas criávamos situações similares para que fossem se ambientando com aquele universo. Durante as filmagens, trabalhamos muito com a improvisação. Se alguém assistir ao filme com o roteiro em mãos, irá perceber que tem muita coisa diferente, mas o espírito se manteve.
O Despertar das Formigas é um filme com um forte discurso feminista, sem que, no entanto, seja panfletário. Como foi encontrar o tom certo?
Acho que isso vem lá do começo, da intenção que deu origem ao projeto. Minha vontade nunca foi a de fazer um filme feminista. Queria apenas falar daquilo que sentia enquanto estava crescendo. Isso foi o que me guiou. Sempre fui uma criança muito precoce. Lembro de pequena já reclamar com a minha mãe, dizendo que não era justo eu ter que lavar os pratos, mas meu irmão, não. Coisas assim foram mudando sutilmente a minha maneira de olhar o mundo. Queria retratar como essa mudança não se dá de um dia para o outro. É algo que vai sendo construído, lentamente, ao passo de uma formiga, através das ações diárias. É disso que o filme fala.
Como foi a estreia na Costa Rica?
Aqui chegou aos cinemas em junho do ano passado, antes mesmo de irmos ao Brasil. E o resultado foi muito feliz. Sabe, antes eu estava com medo, tinha receio do que iam pensar, por causa das cenas de sexo, há uma cena de masturbação, do discurso da mulher… afinal, este é um país ainda muito conservador. Como iriam reagir? Mas o melhor é que o filme possibilitou o início de um diálogo, tanto entre os homens como com as mulheres. Muitas pessoas vieram até nós, ao final das projeções, conversar a respeito. Homens que diziam se ver no Alcides, o marido, que não é um personagem mau, não é violento, e muitos se identificaram com ele. Percebiam que agiam como ele, e que precisavam mudar. Como o discurso do filme não é combativo, ele permite o diálogo, e também a reflexão. Penso que isso é o mais bonito.
Algum desses encontros com o público foi particularmente especial?
Uma coisa muito bonita foi que tivemos a oportunidade de mostrar o filme nos povoados onde ocorreram as filmagens. Nos chamou a atenção um rapaz, em torno dos seus 30 anos, que foi a uma dessas sessões, com sua esposa e duas filhas, e no final da projeção, veio até mim e me agradeceu. Disse “obrigado, pois vocês mostraram algo que estou tentando fazer na minha casa. Eu lavo os pratos, a roupa, e as minhas cunhadas, minha sogra, meus irmãos me criticam. Dizem que estou dando um mau exemplo às minhas filhas. Mas penso o contrário, quero que elas sejam diferentes”. É muito lindo cada oportunidade de encontrar o público e ouvir o que tem a nos dizer.
O Despertar das Formigas foi premiado no Festival de Gramado. Você já havia estado antes no Brasil?
Foi a primeira vez no Brasil. Um dos países que melhor nos recebeu, aliás. Foi uma experiência muito linda. As pessoas realmente receberam o filme de braços abertos em Gramado. Desde o primeiro dia, quando mostramos o filme, até a premiação, foi tudo muito bonito. E Gramado é uma cidade que não existe igual, parece um pequeno paraíso. Não era nada do que esperávamos do Brasil. Imagina você, vindo da Costa Rica, vai ao Brasil pela primeira vez e direto para Gramado? Não há igual! Parecia que estávamos na Europa. Tenho que voltar para conhecer o resto do país.
Qual sua expectativa agora, com a estreia comercial no país?
Bom, antes de mais nada espero que assistam ao filme, que se conectem com ele. Que a troca seja possível. Todos os públicos são distintos, e penso que o Brasil, dono de uma cinematografia tão ampla e diversa, é um exemplo enorme para nós, pois estamos recém começando. Fico imaginando como vocês irão receber o meu filme. Há países que vem falando sobre sexualidade há um bom tempo, e as coisas começaram a mudar. Sei que o contexto político no Brasil de hoje é complicado, o neopentecostalismo tem feito estragos graves na percepção do papel masculino e no feminino na sociedade. Então, é sempre bom quando o diálogo surge, e penso que essa é também a função do cinema.
(Entrevista feita na conexão Costa Rica / Brasil em janeiro de 2020)
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