Nesta quinta-feira, 12 de agosto, chega aos cinemas uma preciosa coprodução entre Uruguai, Brasil e Argentina: O Empregado e o Patrão (2021), dirigido por Manuel Neto Zas, também conhecido como Manolo Zas. A trama se situa na fronteira entre os três países, onde o jovem herdeiro de uma fazenda (Nahuel Pérez Biscayart) coordena os negócios familiares, contratando um trabalhador para operar o trator.
Apesar das diferenças sociais, os dois homens têm bebês em idades próximas, e o patrão teme pela saúde do filho doente. Quando uma tragédia abala o local, as relações de poder se tornam mais tensas entre eles, revelando o abismo que separa os ricos dos pobres. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o belíssimo drama selecionado no Festival de Cannes 2021:
Que familiaridade você tinha com o universo interiorano das fazendas?
Em meu filme anterior, O Lugar do Filho (2013), tinha trabalhado com este mundo. O filme não se passava inteiramente no campo, mas o terço final se situava numa fazenda, em outra perspectiva. Fiquei com muita vontade de continuar trabalhando este universo e estes personagens. Quis me aprofundar. Então aproveitamos a oportunidade neste novo filme.
Por que quis colocar em paralelo os bebês da família rica e da família pobre?
Desde que terminei de filmar este projeto anterior, em 2011, tive três filhos. Então isso foi parte da minha intimidade: levei ao projeto estas emoções novas, a exemplo do medo que passamos a ter pela morte, ou pela saúde de um filho. É profundo, mas também normal que os pais desenvolvam este sentimento. Esta foi minha razão profunda para trabalhar o tema desta maneira. Além disso, existe uma razão dramática: esta era uma forma de espelhar os dois personagens, para que se tornassem parecidos, ainda que contrários. Eles passam por situações semelhantes, mas não são homens semelhantes. Esta estrutura existia desde o princípio do roteiro.
Por que quis combinar atores profissionais e não-profissionais?
Gosto muito de trabalhar com atores não-profissionais. Meus dois filmes anteriores eram estrelados por pessoas sem experiência na atuação. Mesmo assim, nos dois casos, eu já misturava atores não-profissionais com alguns atores conhecidos. Escolhi desde o princípio os atores profissionais para os personagens que precisavam dar muita informação e carregar um pulso dramático mais forte. Neste caso, a aposta era maior, porque dois universos se contrastam: um mundo é construído inteiramente por atores não-profissionais, e o outro, por atores profissionais. Assim, a oposição funcionaria melhor nos termos que eu procurava – eu poderia gerar mais contraste dessa maneira. De qualquer modo, o tom é o mesmo, e os dois grupos desempenham o mesmo trabalho. Fui muito exigente com Nahuel Pérez Biscayart e Justina Bustos, porque precisavam sempre baixar o tom. Os não-atores trabalham em tons mínimos, e não podem modular seu registro. O trabalho dos outros era chegar ao nível deles, operando em tom menor.
Como escolheu a maneira de representar as violências físicas e de classe?
Decidimos não mostrar diretamente as violências. Optamos por um caminho metonímico, revelando partes, ou pequenos pedaços destas cenas, deixando espaço para o espectador construir visualmente e intelectualmente os acontecimentos. Além disso, existe uma violência social nos comentários. A cena do churrasco, em particular, era muito difícil: eu precisava captar um pequeno gesto no olhar do empregado, que não é interpretado por um ator profissional, mas precisava dar um pequeno gesto de desaprovação. Mas ele fez o que eu esperava, perfeitamente! Foi na hora certa, enquanto a câmera passava. Enquanto filmava este projeto, me surpreendi com frequência com estes não-atores. Eles compreenderam rapidamente o trabalho técnico em frente à câmera, e se tornaram muito precisos: não faziam nada a mais, nem nada a menos do que era pedido. Era fácil para mim fazer a variação de um plano ao outro. Com os profissionais, é diferente: como estão acostumados à representação, sempre buscam carregar os personagens com novos sentidos e gestos. Por isso precisei equilibrar os registros de todos eles.
O filme evita o maniqueísmo: o proprietário não é o vilão, e o empregado tampouco se resume a uma vítima. Como encontrou o tom da representação política?
A ideia não era fazer um filme político, e sim um filme de personagens. O roteiro é construído de modo que os dois personagens se apresentem alternadamente: dedica-se mais ou menos dez minutos para apresentar um deles, e depois temos uma duração equivalente para apresentar o outro. Quando se encontram, o filme segue alternando, de forma mais curta, a presença dos dois, até que a tragédia alterna o ritmo narrativo. A partir deste momento, as cenas se transformam, ganham mais planos, e eles contracenam até o final. Esta construção, em especial a partir da tragédia, agrega tensão. Um simples corte pode atribuir tensão. Quanto ao aspecto político, não acredito que este seja a porta de entrada para o espectador no filme. O embate político cresce por si mesmo, a partir do momento que se escolhe colocar juntos, na mesma cena, dois personagens de classes sociais opostas.
A política está em todos os lados, não precisei fazer nenhum esforço, nem produzir um discurso para desenvolver este aspecto. Comecei a trabalhar com a apresentação do patrão, porque o espectador de quase todos os filmes é urbano. Conhecemos bem personagens como o patrão, por causa dos filmes e séries disponíveis. Este personagem está muito mais próximo de nós do que o mundo rural. Por isso, decidi começar por ele, para as pessoas entrarem no filme de modo mais suave, ao invés de começarem por um universo mais estranho, que não facilitaria a identificação. O filme salta entre pontos de vista, tecendo a trama.
O clímax ocorre na corrida de cavalos. Este animal caríssimo reúne o homem rico e o homem pobre. O que o símbolo do cavalo representa para você?
Acredito que em todas as culturas do mundo, o cavalo representa a liberdade. No brasão do Uruguai, o cavalo está presente com este simbolismo. O filme carrega esta conotação. Ao mesmo tempo, o cavalo passa a representar a relação entre os dois, um objeto de troca, de negociação no centro desta tragédia. A partir da segunda metade do roteiro, a relação entre eles é mediada pelo animal. Além disso, a vontade de competir e vencer a corrida me permite colocar os personagens num espaço extremamente tradicional no Uruguai. Estas corridas existem em praticamente todas as cidades do interior, e reúnem os ricos e os pobres, disputando juntos. É claro que alguns cavalos estarão bem alimentados e preparados, no entanto, a paixão é a mesma para ambos. Neste espaço, ambos se encontram e competem. Isso me parecia importante: não queria opor os universos o tempo inteiro, era preciso encontrar algum momento em que os dois se cruzam. O desenlace se produz nesta situação.
A relação de forças do filme reflete as especificidades dos nossos tempos, ou reflete dilemas atemporais e universais?
Existe um pouco dos dois. O filme tem um aspecto específico desta região gaúcha, entre Uruguai, Argentina e Brasil, e reflete uma exploração contemporânea dos grãos em grande escala. A organização desses patrões é contemporânea, assim como os habitantes de um mundo rural em vias de desaparecer. Em paralelo, estes representantes de classes sociais opostas – patrões e operários – existem desde o início da história da humanidade. Hegel já abordava a dialética do amo e do escravo, que representam estes dois personagens. Para Hegel, esta oposição define a essência da natureza humana. Marx é um discípulo de Hegel, e construiu sua filosofia a partir destas ideias. Esta discussão poderia continuar infinitamente, e acredito que o filme reúna as duas características. Ele pode ser lido pelos dois aspectos.
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