Convidados de honra da 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2017, os cineastas italianos Antonio Piazza e Fabio Grassadonia vieram ao Brasil para apresentar O Fantasma da Sicília (2017). Segundo longa-metragem da dupla, ele aborda questões referentes à máfia siciliana. Premiado no Festival de Sundance e exibido na Semana da Crítica do Festival de Cannes, o longa-metragem retrata, pela via da fábula, o caso verídico do sequestro de Giuseppe di Matteo, 12 anos, filho de um ex-chefe da máfia transformado em informante policial, que permaneceu 779 dias em cativeiro antes de ser morto nos anos 90. O caso chocou a Itália, o que motivou os realizadores à criação desse filme que utiliza um singular filtro de fantasia para dar relevância ao amor e à natureza em meio à barbárie. Piazza e Grassadonia receberam o Papo de Cinema no Rio de Janeiro para este bate-papo inédito e exclusivo. Confira o que eles têm a dizer sobre o processo criativo conjunto e as tensões provocadas pela criminalidade na Vecchia Bota.
Os três filmes de vocês (um curta e dois longas) abordam a máfia siciliana. Por que a predileção por esse tema?
ANTONIO: Vivemos, particularmente, os anos 90 na Sicília, num estado muito complicado de constantes guerras de máfia, com a ostensiva atuação da Cosa Nostra, que possuía uma conduta veemente de ataques e de controle das instituições. Nós dois vivemos ali desde pequenos. Foram muitos anos em que as mortes aconteciam de maneira crescente e o cotidiano de Palermo, por exemplo, era marcado por uma quantidade considerável de assassinatos. Então, todos fomos vítimas dessa guerra civil. Para nós, especialmente os dessa geração, foi um momento fundamental e marcante, como é a Guerra do Vietnã para determinada a geração de norte-americanos. Remontar a esse momento, como realizadores, então, é inevitável. Claro, preservando um ponto de vista bastante particular. Nos interessamos por utilizar os gêneros, a ghost story, a love story, para abordar a máfia, evitando os estereótipos.
E por que abordar essa realidade em O Fantasma da Sicília com um filtro fantástico?
FÁBIO: Este filme se baseia numa história que realmente aconteceu nos anos 90 e que simboliza bem aquele período sangrento. Foi um episódio que nos causou um impacto fortíssimo. Sempre pensamos que contar ele se atendo basicamente à realidade não era possível, porque queríamos que, mesmo num percurso de muita dor, existissem possibilidades de redenção. A história real desse menino não abre brechas à redenção de alguém. Nosso filme é como um ato de amor a esse menino, porque procuramos mostrar a parte final da vida dele sendo marcada também pelo amor. Ao contrário dos outros, a menina Luna não está disposta a esquecer-se, não está disposta a deixar que tudo acerca de Giuseppe desapareça, nem que isso signifique arriscar a própria vida. Tal história de amor abre uma possibilidade de redenção. É óbvio que esse dado não altera a realidade, não a confronta, mas abre uma nova perspectiva a partir de uma dimensão fantástica. Por não conseguir suportar a dor, eles acessam outra esfera, que não é propriamente algo imaginado, mas uma instância de fato. Então, esse amor salva a própria dignidade, num contexto, num mundo, em que carecemos de humanidade e dignidade.
Nos filmes de vocês há uma força do bem que tenta equilibrar a balança, contrapor a maldade dos homens…
ANTONIO: Tanto em Salvo quanto em O Fantasma da Sicília há o encontro entre dois seres humanos, basicamente, permeado por manifestações de amor. Em nossa perspectiva, ali se consuma qualquer coisa que vai contra a dimensão da morte, abrindo um espaço que igualmente é metafísico. Para a gente, a Sicília tem uma espécie de espaço metafísico também, que advém especialmente da carga histórica. Então tentamos realizar esse encontro. Acreditamos que essa possibilidade da redenção é própria do amor, como comentou anteriormente o Fábio.
O Fantasma da Sicília é um filme poroso, denso. Como foi a construção dessa atmosfera tão singular?
ANTONIO: Trabalhamos o conceito da fábula. O filme foi inteiramente rodado na Sicília, mas queríamos sair pouco do imaginário mediterrâneo, do mar, da luz dourada do sol. Queríamos a Sicília dos bosques, em nossa concepção, perfeita à fábula. Depois, trabalhando com diretor de fotografia, procuramos evidenciar a presença da natureza como uma espécie de narradora secreta da história. Também buscamos criar um tempo que não existe, um tempo fora do tempo. O desenho sonoro é também muito importante para a gente nesse sentido.
FÁBIO: Já ao escrever o roteiro, ou seja, quando nos detivermos no processo dramatúrgico, procuramos dar a clara dimensão aos nossos colaboradores sobre essa atmosfera, inclusive com as indicações sonoras, então já previstas na escrita. Tivemos um trabalho intenso para a construção prévia do som, e um maior ainda na pós-produção. Nossa preocupação era a de que, por exemplo, a música completasse a experiência emotiva tanto do protagonista quanto do espectador. Portanto, conceitualmente, o aspecto sonoro nos é fundamental, exatamente por estar na base da procedência dessa porosidade mencionada. A viagem tem de ser de natureza emotiva, e o aspecto musical serve, de certa maneira, para baixar a guarda do espectador, para fazer ele imergir naquela transfiguração onírica e humana de uma trama originalmente bizarra.
O que vocês conhecem de cinema brasileiro, sobretudo, levando em consideração a ponte entre Itália e Brasil no que tange à tradição em filmes calcados em questões sociais?
ANTONIO: Conhecemos pouco do cinema brasileiro, porque, de fato, na Itália chega pouco cinema brasileiro. Na preparação de O Fantasma da Sicília vimos diversos longas-metragens protagonizados por crianças. Nos lembramos de Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981), com aquele protagonista passando por uma série de problemas, embora o Pixote vá mais ao encontro dessa ideia de cinema social, ou seja, bastante diferente do nosso, que é uma fábula. Mas, de fato, assistimos a vários filmes protagonizados por jovens. Na Itália temos uma grande tradição de realizações que afrontam questões sociais, especialmente no cinema clássico, por exemplo, Salvatore Giuliano (1962), do Francesco Rossi. Há uma tradição de filmes políticos, engajados. A recorrente abordagem da máfia, no entanto, criou uma espécie de clichê, com geralmente os bons de um lado e os maus de outro. Há na Itália outro clichê, que advém da narração televisiva. Não quisermos reproduzir isso na nossa abordagem, por isso preferimos a via da fábula.
(Entrevista concedida ao vivo no Rio de Janeiro em agosto de 2017)
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