René Sampaio nasceu em Brasília, no dia 26 de novembro de 1974. Foi lá também de onde veio o cantor Renato Russo, que apesar de ter nascido no Rio de Janeiro, foi criado e foi revelado ao mundo como músico na capital federal. Os dois não chegaram a se conhecer, mas está sendo através da união deles que chega agora aos cinemas um dos filmes nacionais mais aguardados deste ano: Faroeste Caboclo, adaptação audiovisual da famosa canção composta por Renato em 1979 e lançada em 1987 no álbum Que País é Este, da Legião Urbana. Longa de estreia de Sampaio como realizador, Faroeste Caboclo coroa uma trajetória iniciada na publicidade e que gerou antes os curtas Sinistro (2000), premiado no Festival de Brasília, e O Homem (2007), premiado no Festival de Recife. E foi sobre estas aventuras e sobre seu trabalho mais aguardado que o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira:
Como foi transformar uma canção tão icônica em filme?
Olha, foi um processo longo e prazeroso, quase como sexo tântrico (risos). Nosso objetivo, desde o início, era proporcionar com esse filme o mesmo prazer que se percebia na música. Eu sou de Brasília, cresci ouvindo essa canção, ela é muito familiar para mim. Desde moleque pensávamos em como adaptá-la, acho que é uma das músicas mais cinematográficas jamais feitas. Tu a ouve e já pensa nessa história, como seria um filme a partir dela. Quando lancei meu primeiro curta, Sinistro, que fez um sucesso bacana, foi premiado em alguns festivais e tal. Foi o que motivou a produtora Bianca de Felippes a me procurar. Quando nos encontramos, ela me convidou para fazer um filme, e queria saber se eu tinha algo em mente. A primeira coisa que veio na minha mente foi: Faroeste Caboclo! Ela topou o desafio, e fomos atrás dos direitos. Um mês depois, já havíamos assinado com a família do Renato Russo. E isso foi há uns dez anos, olha só quanto tempo levamos para chegar onde estamos agora! Essa era um desejo meu, um sonho de juventude, que virou um projeto nosso. Estou muito feliz!
Quando conversamos com Marcos Bernstein, no lançamento de Meu Pé de Laranja Lima, ele comentou sobre a responsabilidade de criar o roteiro de Faroeste Caboclo, ainda mais logo após ter escrito também o Somos Tão Jovens, sobre a vida do Renato Russo. O roteiro do filme chegou pronto ou você foi responsável por algumas das adaptações e mudanças em relação à história original?
O roteiro de Faroeste Caboclo, até chegar ao que temos hoje na tela, foi e voltou por diversos roteiristas umas 300 vezes. Foram vários profissionais envolvidos neste processo, o Bernstein foi chamado no final, para dar uma unidade em tudo que havia sido escrito até aquele momento. E é claro que o diretor decide e interfere no roteiro também, não é só seguir o que está escrito. Este é um filme de autor, não foi apenas contratado para executá-lo. Mas, por outro lado, é óbvio também que toda alteração proposta por mim passava pelos roteiristas, tudo foi feito em parceria, em acordo mútuo. O que temos hoje é o resultado de um todo, e foi esta a abordagem que escolhi para essa história.
Como foi feita a seleção do elenco e a escolha dos protagonistas?
Eu, desde o princípio, não buscava atores muito conhecidos para interpretar estes personagens. Eles são muito fortes, todo mundo já tinha uma imagem deles por causa da música, então não queria que houvesse essa coisa de celebridades envolvidas, pois não era esse o filme que queria fazer. Então abrimos testes para todos os papéis, buscando justamente nomes novos, que o grande público não tivesse referência. O Felipe Abib foi o primeiro a ser escolhido, e ele é ótimo, nos conquistou desde o início. Para o protagonista, o João de Santo Cristo, foi mais difícil, pois testamos atores muito bons, ficamos em dúvida várias vezes. Mas tinha que ser o Fabrício Boliveira, que foi escolhido por sua grande qualidade como intérprete. O olhar dele é incrível, diz muito. A questão que acabou vindo abaixo com a nossa vontade inicial foi a Ísis Valverde, que fez um puta teste e me conquistou de imediato. Só que isso foi antes do sucesso dela na novela, na televisão. Daí, quando ela começou a despontar, os produtores é que começaram a ser contra, queriam que eu fosse atrás de uma outra atriz. Foi quando tive que bater pé, dizer que não, tinha que ser ela. O que interessava era a qualidade que buscávamos com o filme, e isso ela tinha para entregar. Este foi o primeiro trabalho dela como atriz, e nos encantou desde o início, conquistando todo mundo.
Ok, mas atores como o Antonio Calloni e o Marcos Paulo não devem ter passado por testes, certo?
Não, aí a coisa foi diferente. O que dizer a respeito dessas feras, além de que são excelentes, o melhor do que poderia ter esperado? Estes dois, principalmente, foram escolhidos a dedo, era dois artistas que eu achava que tinham tudo a ver com os personagens, foi pensando diretamente neles que construímos estes personagens. E ambos se interessaram de imediato, assim que fizemos os convites eles abraçaram a causa de imediato! Este foi o último trabalho do Marcos Paulo, ele descobriu que estava com câncer no meio das filmagens, e ainda assim decidiu adiar o tratamento para terminar o filme antes. Ele foi muito generoso, aprendi muito com ele. Tê-lo nesse filme foi um presente inesquecível.
Uma boa surpresa foi encontrar o uruguaio Cesar Troncoso em cena…
Pois é, o cara é fera, e acredita que eu nunca havia ouvido falar dele até surgir o convite para tê-lo conosco? Esse personagem do Pablo foi o mais difícil de achar, pois tinha que ser um hermano, que falasse bem português, mas com um sotaque forte, carregado. Esse perfil era quase difícil de ser encontrado. Quem me sugeriu o nome do Cesar foi o Marco Ricca, que o havia dirigido no filme Cabeça a Prêmio (2009). Daí fui ver O Banheiro do Papa (2007), que é o maior trabalho dele, e não vi o Pablo ali. Era um personagem mais leve, maleável, e o Pablo é duro na queda, é feroz. Não me convenceu. Mesmo assim nos sentamos para conversar, falei sobre os meus receios, e tudo o que ele me disse foi “deixa comigo”. E foi isso, eu deixei, ele chegou e arrebentou!
Há pouco conversamos com o Marcos Breda, que aparece como o pai de Renato Russo no Somos Tão Jovens, e ele comentou que fora convidado, no final dos anos 1980, pelo próprio Renato, para estrelar, ao lado da Fernanda Torres e do Chico Diaz, uma adaptação do Faroeste Caboclo em curta-metragem. Você chegou a tomar contato com este ou com outros projetos anteriores de adaptação da música para o cinema?
Sério, isso? Nossa, nunca havia ouvido falar dessa possibilidade. Bem, pelas datas, isso foi muito antes de eu ter entrado na parada. Desde que a música foi lançada, sempre houve uma vontade de adaptá-la para o cinema. É impossível ouvi-la e não pensar num filme que conte essa história. Então, é claro, houveram diversas iniciativas antes, mas nenhum chegou a ser concluída. Algumas pessoas tentaram comprar os direitos, outros até chegaram a ter um desenho de roteiro, uma ideia de elenco, mas nada que chegasse perto, mesmo de ser concretizado. Quando assumimos, partimos do zero. Não aproveitamos nada de outros envolvidos, fizemos exatamente no modo e no tempo que desejamos, justamente para ter o filme tal qual imaginávamos.
Por que lançar Faroeste Caboclo tão próximo da cinebiografia Somos Tão Jovens? Foi intencional ou mera coincidência?
Nós marcamos a data de lançamento de Faroeste Caboclo em outubro de 2012, e na época o Somos Tão Jovens não possuía cronograma ainda. E, a partir desse momento, passamos a trabalhar com essa data em mente, como meta. Depois, quando eles vieram e marcaram na nossa frente, decidimos não alterar a nossa. Afinal, por qual motivo faríamos isso? Não saberia dizer por que eles fizeram isso, se foi uma estratégia da distribuidora, uma jogada de marketing. Nunca conversamos a respeito. O que posso dizer é que acabou funcionando, aqueceu o assunto, estamos vivendo um momento Renato Russo que tem tudo para ser muito bom também para o nosso filme. No final, todo mundo sairá ganhando, ou ao menos é o que esperamos.
Faroeste Caboclo tem tudo para ser sucesso de público, mesmo não sendo comédia e nem fazendo concessões na trama. Há violência, nudez e assuntos que podem ser considerados tabus por muitos. Estas decisões, de manter a essência da história, tal qual foi concebida originalmente, foram difíceis de serem mantidas?
Essa música é muito querida por muita gente, das mais diversas possíveis. Então é certo que, ao menos em algum nível, decepções iriam acontecer, pois imaginamos algo que nem sempre é igual ao que está na tela. Cada um tem o seu filme, e esse é o meu filme, a minha versão de Faroeste Caboclo, que obviamente é diferente da sua, por exemplo. O que buscamos era ser o mais fiel ao espírito da música, e torná-la também em uma boa história de se acompanhar no cinema. Se você tentar agradar todo mundo, vai acabar obtendo o efeito contrário, desagradando ainda mais gente. E era perceptível que suavizar as coisas não iria funcionar. Não precisava incluir elementos de maior apelo comercial, pois este é um filme que se sustenta sozinho. É o filme que a música merecia, sem precisar agradar ninguém em particular. Às vezes eu pensava, “será que estamos pegando pesado?”. Ficava com alguma dúvida, mas sempre que pensava em fazer diferente para menos, para deixar mais ‘fácil’, percebia que seria uma traição. Vendo o filme é possível reconhecer a música, ainda que a nossa adaptação não tenha sido literal.
Como manter a surpresa ao apresentar uma história que a maioria dos espectadores já conhece o filme?
Primeiro, fomos pela música. Ela deixa espaço para uma narrativa, ao mesmo tempo em que abre espaço, possibilitando a criação de complementos. Eram dados que não estavam na canção. Como a Maria Lúcia se apaixonou pelo José, por exemplo? Isso ninguém sabe, era preciso inventar. Então aí já estava um motivo. Em segundo lugar é muito importante saber como contar uma história, pois cada um narra de um jeito. O formato escolhido tinha que despertar atenção. Mias o que a ordem dos eventos no modo correto, a maneira de apresentá-los é que faz a diferença. Todo mundo sabe o que acontece em Romeu e Julieta, a Paixão de Cristo, mas cada nova versão tem algo inédito a acrescentar, o olhar de quem a está contando. O público quer ver o que já lhe é familiar, mas sob novos olhares, com frescor na abordagem. Essa foi nossa aposta.
Este é o seu trabalho de estreia em longa-metragem. A pressão desta responsabilidade pesou ou foi algo tranquilo?
Penso que fazer um longa-metragem, qualquer um, é sempre uma viagem, uma maratona que decidimos fazer. Quando partimos não vemos o final, está tão longe que corremos o risco de nos perder, mas é preciso manter o foco na linha certa. E eu prefiro quando tem alguém, lá na linha de chegada, esperando por mim. Ou seja, é muito melhor fazer um filme que sei que as pessoas vão querer ver, estão curiosas a respeito, ao invés de algo que não despertasse o interesse de ninguém. Então lidei bem com essa responsabilidade, até porque ela não existiu durante o processo de realização, no roteiro, nas filmagens, na finalização. Fizemos o filme tal qual a gente queria, toda decisão foi muito bem pensada, e muito colaborativa. Claro que não foi 100% tranquilo o tempo todo, tínhamos dúvidas de como seria a recepção do público, mas tudo isso é muito melhor do que ser ignorado.
Qual sua expectativa agora que Faroeste Caboclo está ganhando os cinemas de todo o país?
Posso ser sincero? Não sei. Estou aliviado de estar entregando o filme que quis fazer, agora é com ele e com o público. Fiz o melhor de mim, da minha equipe. Espero que as pessoas sintam as emoções que eu sinto quando estou ouvindo a música. Gostaria que pensassem nos assuntos que abordamos, são questões muito importantes, tanto naquela época quanto hoje, trinta anos depois. Estes personagens vivem ainda hoje, há também no filme uma camada política que não é panfletária e pode suscitar discussões muito interessantes. É um filme feito para emocionar, o coração e a mente.
(Entrevista feita por telefone, direto de São Paulo, no dia 23 de maio de 2013)
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