2017 pode ser, tranquilamente, apontado como o ano de Selton Mello. O astro, que há pouco esteve em cartaz no elogiado Soundtrack (2017) e nos próximos meses poderá ser visto em sua forma animada como a voz do protagonista da animação nacional Lino: O Filme (2017), está agora voltando às telas em dose dupla: como diretor e também no elenco do drama O Filme da Minha Vida (2017), baseado no romance Um Pai de Cinema, do chileno Antonio Skármeta. Filmado na Serra Gaúcha, o longa combina atores novatos, como Johnny Massaro e Bruna Linzmeyer, com veteranos como Rolando Boldrim, além de uma participação mais do que especial do francês Vincent Cassel. Definido pelo próprio realizador como “uma homenagem à arte do cinema”, este lançamento foi motivo também para uma peregrinação do seu realizador por todo o país, indo do Rio de Janeiro a Fortaleza, de São Paulo a Salvador, de Brasília a Recife, justamente para apresentar ao público em sessões de pré-estreia este trabalho do qual fala com tanto entusiasmo. E foi durante sua passagem por Porto Alegre que o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o ator e cineasta. Confira!
Olá, Selton. Percebemos em O Filme da Minha Vida, assim como nos teus trabalhos anteriores como realizador – Feliz Natal (2008) e O Palhaço (2011) – uma forte ligação familiar entre os personagens, principalmente entre filhos e pais. Você tinha ciência dessa busca temática? Por que esse tipo de relação te atrai tanto?
Acho que são coisas inconscientes que a gente só começa a se dar conta quando passa a dar entrevistas, após o filme ficar pronto (risos). Não sou pai, sou filho – como na música do Ira! – então são histórias que me comovem, naturalmente, que me são caras, e por isso as faço. Acho que quem está de fora é mais fácil olhar e fazer esse tipo de observação, sobre os pontos de contato entre cada um dos nossos trabalhos. Quem tá muito envolvido não consegue ter esse distanciamento.
Este é o teu terceiro longa como diretor. No primeiro, você ficou somente atrás das câmeras, enquanto que no segundo assumiu também a posição de protagonista. Agora, além de conduzir, aparece como um coadjuvante. Por que explorar todas essas posições?
Pois é, curioso. No primeiro, nem cheguei a cogitar a possibilidade de atuar. Queria mesmo ficar atrás das câmeras, para entender bem como funcionava o processo da direção. No segundo, tinha em mãos um depoimento muito pessoal. Primeiro entreguei o roteiro para o Wagner Moura, que leu, amou, e me disse: “Selton, faz você, esse personagem é você”. Com o Rodrigo Santoro foi a mesma coisa, ele me disse: “cara, adorei, mas quem tem que fazer é você”. Daí me dei conta que era isso mesmo e abracei. E foi muito trabalhoso, porque era o protagonista, tinha o Benjamim e o Pangaré – o personagem palhaço que interpretava no circo – e foi puxado, mesmo. Dessa vez, no entanto, foi perfeito. Vi no livro esse personagem muito interessante, e que filmava pouco. Era o que precisava. Então arrumei um protagonista ótimo, que foi esse garoto incrível, o Johnny Massaro, ainda consegui me dar um personagem muito bom, e filmei pouco. Das sete semanas de filmagens que tivemos, filmei uma e meia, no máximo.
Falando no Johnny, como foi a seleção do elenco, que inclui até o francês Vincent Cassel?
Foi muito na base da intuição. Tem coisa que não se explica. Eu tinha uma foto desses três – Johnny Massaro, Bruna Linzmeyer e Bia Arantes – no meu computador, e escrevi o roteiro com eles em mente para o meu trio principal. Depois, fiz testes com dezenas de jovens atores, inclusive com eles. E o resultado? Eles foram os melhores! Já o Cassel o conhecia do Rio de Janeiro. Ele havia visto O Cheiro do Ralo (2006) e gostado, conhece bem o meu trabalho anterior, estava a par da minha história. Daí cheguei nele e disse: “olha só, tenho esse roteiro, e tem esse personagem, que é um pai francês. Quer ler?”. Ele topou na hora, e no dia seguinte me ligou: “que história linda, é claro que quero fazer esse personagem”. Foi assim que fechou.
A presença do Rolando Boldrim é outra surpresa, não?
Eu já havia tentado trazê-lo em O Palhaço, e naquela ocasião ele não ficou animado, disse que não estava inspirado para atuar. Só que viu o filme depois e amou. Daí eu disse: “no próximo te pego”. Escrevi esse personagem especialmente para ele, é uma figura mítica, bonita, como se fosse o condutor do trem e do filme, o homem que tudo viu, que sabe tudo, que conhece todos os segredos da trama. Só que sabe, também, que as coisas têm seu tempo para acontecer. Foi uma participação muito bonita.
O personagem do Vincent Cassel, o pai, é um que cresceu muito no filme em relação ao livro. Enquanto realizador, como foi pensar em todas essas alterações?
O Antonio Skármeta, autor do livro Um Pai de Cinema, foi muito generoso comigo. Ele me disse: “o filme é teu”. São linguagens distintas, e precisava ir além das páginas do livro, pois é quase um conto, de tão curtinho. Precisava de mais pontos de virada, de conflito. O meu personagem, por exemplo, virou um pivô da história. Quando falo nele, fico até com cuidado para não dar muitos spoilers. Tem também a metáfora da bicicleta com a moto, as participações do Boldrim e do Skármeta – eu que inventei aquele dono do bordel para ele fazer. Tem outras passagens, como o próprio final. No livro, todos os personagens possuem um desfecho. E não gostava disso, queria deixar algumas coisas em aberto, resolver outras antes, e deixar o final só para os protagonistas.
Como foi dirigir uma figura como Antonio Skármeta?
Foi uma grande brincadeira. Pra você ter uma ideia, o texto daquela cena, quem escreveu foi ele! Todo o diálogo sobre a corrida com a morte, da imortalidade, ele veio falando sobre aquilo, e achei tão bacana que disse: “então escreve você essa cena”. Foi legal para caramba.
Uma das coisas mais comentadas do filme é a fotografia. Como foi trabalhar com o Walter Carvalho para a escolha do tom de O Filme da Minha Vida?
Sempre tive vontade de filmar no sul do Brasil. Minha relação com o Rio Grande do Sul e com a Serra Gaúcha era Gramado, por causa do Festival de Cinema. Quando decidi vir para cá, tive a ajuda de um produtor daqui, um cara fera chamado Glauco Urbim. Quando contei para ele o que estava pensando, me disse: “olha, acho que não é bem Gramado o que tu está procurando”. Ele, então, que me indicou a região de Bento Gonçalves, pois lá teria coisas mais antigas e preservadas, mais rústicas. E não deu outra, estava certo. Já o Walter Carvalho, eu o conhecia desde o Lavoura Arcaica (2001), que foi um filme pedra fundamental na minha vida e na dele. Vinte anos depois, a gente se reencontra, numa outra configuração. Fazendo uma brincadeira com o título do livro, posso dizer que o Walter é uma espécie de meu pai de cinema. Temos uma relação muito afetiva. No Feliz Natal, o meu fotógrafo foi o Lula Carvalho, filho do Walter, é muito afeto envolvido. Quando a gente se juntou para contar essa história familiar, de pai e filho, não tinha como ser com outra pessoa.
Foi sugestão dele esse tom de sépia que toma conta da narrativa do filme?
Foi ideia dele, claro, mas sempre uma troca. Nada desse filme partiu da técnica, sempre do afeto. Por exemplo, a casa do personagem. Descobri essa casa andando de carro, na chuva. Quando a vi, adorei de imediato. Parei na frente dela, tirei fotos e escrevi o roteiro pensando nela. Voltei tempos depois, entramos e vi que tinha que ser ali a casa do personagem. Quando levei o Waltinho até lá, ela tinha uma parede envelhecida que tinha a ver com o trilho do trem. Nós dois começamos a pirar juntos em como poderia ser o visual do filme. Ele fala uma coisa bonita, diz que o filme tem um “dourado oxidado”. Que tinha nas paredes daquela casa e no trilho do trem.
Vocês dois possuem uma relação muito próxima, pelo jeito…
Tudo isso sempre a partir de muita conversa, misturando assuntos da vida. Ele me contava da infância dele, na Paraíba, da relação com o irmão, o grande Vladimir Carvalho, que é uma espécie também de pai de cinema para ele, pois foi o cara que formou a visão de cinema e de arte que ele tem hoje. E eu falava a minha história, minha relação com meus pais, isso nos foi dando uma relação emocional com o filme. Quando a gente ia filmar, éramos anti-storyboards. Íamos onde o coração mandava filmar cada cena.
O Antonio Skármeta já teve outros livros adaptados para o cinema, como O Carteiro e o Poeta (1994) e No (2012). Você chegou a temer algum tipo de comparação?
O Carteiro e o Poeta é um dos meus filmes da vida, daqueles filmes de formação, mesmo. Da minha época de locadora, quando estava descobrindo David Lynch, Stanley Kubrick. Senti, sim, uma responsabilidade muito grande, mas ele me deixou tão à vontade. Sabe, não escrevo livros, faço filmes, mas se escrevesse livros, escreveria um como Um Pai de Cinema. Ou seja, a gente tem uma sensibilidade parecida. Por causa dele, me senti também dono dessa história e à vontade para contá-la à minha maneira.
O Skármeta já viu O Filme da Minha Vida? O que ele achou?
Ele adorou. Amou o filme e abençoou o resultado. Inclusive, viria ao Brasil para o lançamento, mas não pode por questões de saúde.
Vários filmes prestam homenagem ao Cinema, como A Rosa Púrpura do Cairo (1985), A Invenção de Hugo Cabret (2011) e até Lisbela e o Prisioneiro (2003). Você dá uma nova contribuição, agora, com O Filme da Minha Vida, colocando teus personagens dentro da sala de cinema. Era um desejo também fazer desse filme uma homenagem à sétima arte?
Era uma vontade, sim. Entre tantas leituras que O Palhaço permite – e você, que dissecou o filme tão bem no artigo publicado no livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, sabe disso – uma era um olhar sobre o meu ofício, que é ser ator. Através d’O Palhaço, homenageei a minha profissão. Dessa vez, quis pagar um tributo ao Cinema, tendo ele dentro do filme.
Pra encerrarmos, uma pergunta que você já deve ter respondido milhares de vezes: qual é o filme da tua vida?
Então, tenho vários. O meu filme brasileiro preferido, que sempre em encanta, que considero o melhor já feito no Brasil, é O Bandido da Luz Vermelha (1968), do Rogério Sganzerla. Amo esse filme, acho o nosso Cidadão Kane (1941). É muito à frente do seu tempo. Revejo sempre que posso, e continua me deixando impressionado. O Sganzerla tinha 20 e poucos anos quando o fez, e ainda hoje é um filme muito avançado. Mas, se pudesse escolher só um, no mundo todo, seria o Paris, Texas (1984), do Wim Wenders. Esse é o que toca mais fundo em mim.
Como você vai se sentir quando, daqui alguns anos, ouvir alguém respondendo a essa mesma questão citando O Filme da Minha Vida como o seu favorito?
Cara… é muito bonito poder fazer isso que eu faço. E tocar as pessoas. Nos tempos de hoje, fazer algo como O Filme da Minha Vida, com essa natureza, sensível, terno, doce, gentil com os sentidos do público, é um ato de resistência. Está totalmente na contramão de tudo que vivemos. É muito bonito poder colocar algo assim no mundo.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em agosto de 2017)