Categorias: Entrevistas

“O Gabinete do Dr. Caligari é o filme mais importante da História do Cinema”, afirma Donny Correia

Publicado por
Bruno Carmelo

Em 30 de janeiro, o Goethe-Institut São Paulo oferece uma oportunidade rara para cinéfilos: resgatar a memória do clássico O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene, através de obras de arte e trilha sonora ao vivo. O artista Alexandre Teles elaborou mais de 600 monotipias a partir das imagens do filme, para recontar a história do médico especialista em hipnose que utiliza um sonâmbulo para praticar crimes.  Em seguida, um debate será organizado pelo curador Donny Correia, para discutir o papel dessa obra e seu impacto no cinema das décadas seguintes. O Papo de Cinema conversou com Correia, crítico de cinema e doutor em estética da arte, sobre o projeto:

 

 

Cem anos depois, porque ainda falamos tanto no Gabinete do Dr. Caligari dentro do Expressionismo Alemão? O que faz com que esse filme se sobressaia em relação aos outros da época?

Caligari é, sem sombra de dúvidas, o filme mais importante da História do Cinema. É ele que inaugura uma tendência no cinema que nos parece muito comum hoje, mas que não o era após a Primeira Guerra Mundial. O cinema era um instrumento de entretenimento, com alguns elementos que aludiam às emoções do espectador. É Caligari que transforma o filme em elemento de crítica, meio de diálogo com as artes visuais e traz à tona questões que seriam desenvolvidas mais tarde, como a psicologia profunda dos personagens e a direção de arte comprometida com a diegese e com essa psicologia.

Me arrisco a dizer que o filme de Robert Wiene se adiantou em várias questões sobre as quais Eisenstein e seus companheiros dissertariam mais profundamente anos depois. O cenário expressionista (movimento que, na Arte, já era comprometido com a visão pessoal de mundo do artista e não somente sua representação figurativa), a maquiagem carregada e sombria, a luz recortada e a narrativa que oscila entre o sonho e a realidade podem parecer coisas banais para o cinema hoje, mas à época foi uma grande revolução e abriu caminho para um cinema engajado e de profunda reflexão.

 

Detalhe de cartaz internacional elaborado em homenagem ao filme

 

De que maneira a estética muito específica do expressionismo se relaciona com o cinema do século XXI? O que restou deste estilo hoje?

O expressionismo, nas Artes, provou o papel de protagonismo do artista perante sua obra. Se até o século XIX a pintura artisticamente aceita versava sobre a natureza de forma figurativa e propunha narrativas visuais esquemáticas, o Expressionismo implodiu tudo isso. Em tempos de pré-guerra, com uma Europa que mais parecia um barril de pólvora, não havia mais sentido na beleza objetiva, e a modernidade clamava por uma expressão mais volitiva do artista. Creio que isto migrou para o cinema, no sentido de que possibilitou ao cineasta tornar-se autor de sua obra e não apenas um realizador de imagens em movimento. Veja como a fotografia no cinema evoluiu nos anos 1920.

Eu diria que não seria possível haver Cidadão Kane (1941) sem o expressionismo. Não apenas pela luz do filme, mas por suas liberdades narrativas. O mesmo acontece com o cinema “noir” e com as principais obras de Hitchcock, desde seu período na Inglaterra até Psicose (1960), pelo menos. O David Lynch de Eraserhead (1977), O Homem Elefante (1980), Estrada Perdida (1977) e até mesmo Twin Peaks (1990-1991) mostra vários traços que são herança do expressionismo, com um quê de dadaísmo, também. Tim Burton cita o expressionismo de forma contumaz: o Pinguim de Batman, o Retorno (1992) é uma releitura da figura do Dr. Caligari; Edward Mãos de Tesoura (1990) foi criado a partir de Cesare, o sonâmbulo manipulado por Doutor. Esse movimento emancipou a figura do diretor para se tornar Autor.

Quando pensamos no cinema do século XXI, temos um espectador muito mais confortável com a experimentação do cinema. Tomemos como exemplo o Coringa (2019) de Todd Phillips, por si só inspirado num personagem de Paul Leni. Consigo apontar um sem-número de elementos que flertam com o expressionismo em todas as instâncias do filme! Claro que, dada a distância temporal, as referências não são nada óbvias, mas estão lá.

 

 

Em que medida a exibição com trilha ao vivo se difere de assistir ao filme com uma trilha pré-gravada, em sua opinião?

A trilha ao vivo é um espetáculo à parte, porque resgata a sensação que devem ter sentido os espectadores dos primeiros anos do cinema. Quando o músico está ali na frente executando a trilha em tempo real, há dois elementos poderosos de expressão: o filme na tela e o som que nasce ao vivo, surpreende a plateia e dá aos músicos a possibilidade de dividir o impacto estético do espetáculo. No caso de Caligari no Goethe, é ainda mais complexo, porque não se trata da exibição do filme, mas de uma sucessão das monotipias do Alexandre Teles, que reinterpretam o filme original, acompanhada de uma performance musical experimental. Isto, em si, já caracteriza uma nova forma de expressão a partir do cinema, mas para além dele.

Como as obras de Alexandre Teles dialogam com o filme? Podemos dizer que elas expandam o significado da obra?

Com certeza podemos dizer, sim, que se trata de expandir a obra original. Em primeiro lugar, o Alexandre partiu do roteiro original do filme, que era uma alegoria antibelicista, com uma mensagem de alerta a um povo psicologicamente vulnerável, os alemães da época, para que não se entregassem a um discurso salvador e vazio de alguém com pretensa força de guiar a massa. O filme, segundo Siegfried Kracauer, teve sua mensagem completamente invertida quando os produtores decidiram colocar a história original dentro de uma história moldura. Se traçarmos um paralelo com a recente polarização mundial em vários níveis, sobretudo o político, então esta interpretação do Alexandre vem muito a calhar. Era a versão de Caligari que faltava para completar sua importância nos anais da História da Arte como crítica social.

 

 

Que tópicos serão discutidos no debate promovido após a sessão? Em que medida a exibição pode ser frutífera aos estudantes de língua alemã, além dos cinéfilos?

Além de conversarmos com o Alexandre e os músicos sobre os processos técnicos e estéticos da monotipia, uma técnica bem complexa e interessante, trataremos da concepção da performance como um todo e esclareceremos a gritante diferença do roteiro original – usado pelo artista – em relação ao filme lançado em 1920. Já com relação aos estudantes de língua alemã, eu acredito que para se dominar uma língua estrangeira, não se trata apenas de estudar pronúncia, léxicos e gramática. Uma língua só é introjetada com eficiência quando o aluno se compromete a conhecer a realidade extrínseca do idioma. Me lembro quando adolescente e estudante da língua inglesa de passar muito mais tempo vendo e ouvindo coisas sobre a Inglaterra do que propriamente decorando formas verbais e vocabulário. O aprendizado fica mais natural. Além disso, o Alemão é uma língua fantástica! Há praticamente uma palavra para absolutamente tudo que se quer expressar por mais abstrato que seja, coisa que o Português e mesmo o Inglês não chegam nem perto.

 

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)