Nascido no Rio de Janeiro em 1964, João Jardim formou-se primeiro em Jornalismo, pela Faculdade da Cidade, para somente depois estudar Cinema, na Universidade de Nova York. Após começar na televisão como auxiliar de nomes como Carlos Manga, Walter Salles e Eduardo Escorel, foi assistente de direção de Murilo Salles e de Cacá Diegues, além de ter se envolvido também com o mercado publicitário. Seu primeiro longa como diretor foi o documentário Janela da Alma (2001), que ganhou 11 prêmios nacionais e internacionais e levou mais de 140 mil espectadores aos cinemas. Na sequência dirigiu Pro Dia Nascer Feliz (2006), premiado no Festival de Gramado, e co-dirigiu Lixo Extraordinário (2010), indicado ao Oscar na categoria. O flerte com a ficção começou com Amor? (2011), que combinava depoimentos verídicos com encenações ficcionais. Agora, coloca os dois pés no gênero com o drama histórico Getúlio, já em cartaz por todo o país e que conta com o astro Tony Ramos como o ex-presidente da República, Getúlio Vargas. Foi durante o lançamento deste mais recente trabalho que o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Por que estrear na ficção com um personagem tão importante quanto Getúlio Vargas?
Primeiro, justamente por causa do meu histórico como documentarista. Tenho interesse no real, é isso que me atrai enquanto cineasta. E um personagem tão importante quanto Getúlio Vargas foi um presente inacreditável. Na verdade, mais do que ele, o que me atraiu foi aquele momento exato da história do Brasil. Aqueles últimos dezenove dias da vida dele revelam um Brasil que tem ressonância até nos dias de hoje, são acontecimentos que persistem, mas que além de tudo permitem a construção de um thriller muito interessante. Além do mais, temos também um protagonista incrível, magnetizante. Esse conjunto excelente traz junto uma enorme responsabilidade, e precisei descobrir como dar conta de tudo isso da melhor maneira. Portanto, tive que fazer um estudo profundo sobre a personalidade dele, descobrir quais eram as opções de abordagem, traçar um possível perfil psicológico. Fui atrás de qualquer pista que pudesse indicar ao menos como ele se comportava, como tratava os mais próximos, tudo. E acho que a gente conseguiu, quando você vê o filme sabe que é real, temos ali o nosso Getúlio.
Não houve um momento, durante esse preparo, em que um documentário lhe pareceu uma opção mais apropriada?
Não, até porque não teria como. Não há imagens com registros do que queríamos contar, foram momentos muito íntimos, um debate interno que se refletiu por todo o país. E também não há pessoas vivas que tenham participado desse episódio e com condições para falar hoje em dia a respeito. Não há depoimentos em primeiro pessoa, seriam apenas aqueles que teriam ouvido falar. E isso eu não queria. Talvez, vinte anos atrás, fosse uma possibilidade, mas agora não haveria como.
Getúlio lembra muito, ao menos na ambientação, a minissérie Agosto (1993), exibida na Rede Globo e baseada no livro homônimo do Rubem Fonseca…
Não foi intencional, mas até pode ser. Fui editor da minissérie, vivi todo o processo de criação do programa, então de alguma forma pode ter se refletido, pois está em mim, no meu passado. Mas Agosto não era sobre Getúlio, é sobre o Gregório e aquele investigador, o presidente está apenas como pano de fundo. Tem um triângulo amoroso, uma investigação criminal, são outros elementos que em Getúlio não há espaço. Nossa abordagem é ficcional, mas tenta ser a mais precisa possível ao que de fato aconteceu.
Como foi a seleção do elenco de Getúlio?
Devo confessar que foi um processo muito mais de sedução do que de competência da minha parte. Cada ator que a gente pensou ser o ideal para o papel, quando falávamos o que queríamos fazer, ficava fascinado! Eles entenderam que iríamos fazer um filme importante, e a ideia de participar de algo maior, mais do que apenas mais um trabalho, era muito atraente. Não é a todo instante que surgem oportunidades como essas, de interpretarem personagens reais tão importantes. Mas o processo de escolha foi delicado, é claro que bons atores tem mais chances de surgirem como opções, pois já os conhecemos, e havia também a questão da similaridade física com aquela pessoa em questão. Tudo foi muito pensado, e se fomos ambiciosos na seleção do elenco é porque acreditávamos no projeto. Cada personagem tinha a sua importância, não havia papel pequeno, pois todos os tipos aqui representados foram grandes e próximos do protagonista. Tivemos que ser eficientes, acima de tudo.
Foi muito complicado transformar o Tony Ramos em Getúlio Vargas?
Foi um processo que exigiu bastante dedicação. Como quase tudo no cinema, é uma questão de tempo, empenho e pensamento. Havia um desafio, e precisamos trabalhar nele para vencê-lo. Só a transformação física exigiu mais de dois meses, para acertarmos a maquiagem correta foram feitos quatro testes diferentes, sempre aprimorando um detalhe, uma correção aqui ou ali. Foi um lento processo de construção, que ia aos poucos até ficar bom. É como um quadro, sabe? Quando que o artista sabe que está pronta sua obra? Quando é a hora de acabar? Tem que ir fazendo, até uma hora que chega!
E o Tony Ramos foi um bom parceiro nesse processo?
Nossa, ele foi o melhor parceiro possível. O Tony Ramos nos deu uma aula de dedicação e trabalho, é um grande profissional. É um ator muito entregue, humilde, verdadeiro. Trabalhar com ele é fascinante. Não tive que ensiná-lo a ser Getúlio Vargas. Isso é algo que vem do meu passado como documentarista. O que fiz foi orientá-lo para que ele próprio achasse seu Getúlio. Meu trabalho foi servir de guia, indicando leituras, dando dicas. Mas o processo foi muito dele, bastante pessoal.
Como foi o construção do roteiro de Getúlio?
O trabalho de feitura de um filme passa muito por um conjunto de elementos, e decidir o que pertence ou não a uma obra é muito desgastante. É mais do que apenas colocar ideias boas, pois às vezes, por melhor que elas sejam, talvez não façam sentido ali, ao lado de outras. Quando entrevistei o Wim Wenders, para o Janela da Alma, ele disse uma coisa que guardo até hoje: o trabalho de um diretor não é decidir o que entra, e sim o que sai. É preciso tirar tudo que não é o filme.
Quando começou o projeto de Getúlio?
O projeto começou em 2007, ou seja, sete anos atrás. Foi uma longa jornada até chegarmos onde estamos hoje, nas telas de cinema. Nesse meio tempo fiz outros dois filmes, me envolvi com outras coisas, então é claro que não fiquei o tempo todo só pensando nisso. É preciso amadurecer bem devagar cada passo importante. Tem que se permitir ter uma visão distanciada e se questionar o tempo todo. Como buscar a dramaturgia? Como transformar essa história em um drama atraente e, ainda assim, fiel aos acontecimentos? Essas eram as minhas dúvidas.
O que o seu histórico como documentarista lhe preparou para uma obra de ficção como Getúlio?
Foi fundamental, acredito. Creio que só estou começando a fazer ficção em um filme como esse por causa da minha formação, que faz parte do que sou. É uma bagagem que trago de tudo que já vivenciei, desta coisa de ver o mundo através de lentes. Isso, até certo ponto, me facilitou nessa tentativa de recriação da realidade. Agora, também não quer dizer nada, pois em última instância é fantasia, é só uma versão dos fatos. Esse processo de criação é constituído de tantas camadas que é inevitável que se distancie da realidade em certo ponto. Mas, acima de tudo, é preciso preservar a lógica.
Getúlio foi lançado no Dia do Trabalho e em um ano de eleições. O que um filme como esse tem a dizer ao público brasileiro de hoje?
Acho que Getúlio tem a propor uma importante reflexão que não diz respeito apenas aos governantes, mas também a todos os brasileiros. É sobre como o país funciona, como nos relacionamos com o poder. O compromisso nosso tem que ser outro, precisamos estar atentos ao bem comum, com o público, e parar de achar que pensar só em si mesmo é suficiente. Não há Jesus Cristo que ao ser eleito irá resolver todos os problemas. Eu também faço parte, você, todos nós. Esse processo no Brasil está muito corrompido em todas as instâncias, e não só em cima, está por toda a sociedade. Um filme como esse é, antes de qualquer coisa, um alerta.
(Entrevista feita por telefone em Porto Alegre no dia 29 de abril de 2014)