Uma das maiores revelações do cinema brasileiro nos últimos anos, Jesuíta Barbosa vem construindo uma das carreiras mais sólidas no nosso cenário cultural. Ao despontar ao lado de Irandhir Santos no drama gay Tatuagem (2013) – premiado nos festivais de Gramado e do Rio de Janeiro – o ator pernambucano vem ganhando, desde então, uma projeção cada vez maior. E após participações marcantes em minisséries globais – ele ainda não fez nenhuma novela – de destaque e ter aparecido como coadjuvante roubando a cena de astros mais veteranos, como Wagner Moura, Matheus Nachtergaele, Cauã Reymond e Selton Mello, aos poucos foi conquistando seu espaço como protagonista. A ponto de ser o primeiro nome do aguardado O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues, em que aparece ao lado de astros internacionais, como o francês Vincent Cassel, o polonês Dawid Ogrodnik e o português Nuno Lopes, entre outros. E foi sobre esse projeto mais recente, escolhido para ser o representante oficial do Brasil no Oscar 2019, que o jovem artista conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
A primeira vez que conversamos foi quando você estava lançando o Tatuagem (2013). Neste trajeto até O Grande Circo Místico, como a tua visão de cinema tem mudado?
Poxa, muda constantemente. Na época do Tatuagem, era muito menino, muito novo, e percebendo o cinema como desafios. Isso segue até hoje, é claro, mas naquela época era mais como uma brincadeira. Uma curiosidade por fazer cinema e entender o processo de cada pessoa envolvida nessa arte. Qual era a minha função dentro daquilo tudo? Hoje em dia, talvez, já tenha alguma experiência. E há uma constante modificação, tudo acaba mexendo com a gente, de uma forma ou de outra.
O que te leva a escolher cada projeto, o que acaba te motivando?
As pessoas, acho. No Tatuagem, tive essa grande sorte de fazer um trabalho com o Hilton Lacerda, além do roteiro ser dele também – e tudo o que ele escreve são verdadeiras joias! Era muito descritivo, é sempre bom de ler roteiros assim. Mesmo que outros tenham vindo depois, acho que poucos tiveram essa mesma delicadeza, com todas essas nuances. Talvez, mudando agora, seja o roteiro que mais me motiva, afinal. É o que me leva a fazer cinema. Há uma produção muito difícil de escrita no Brasil, um problema de educação nosso, mesmo. Nossa, recebo muitos roteiros ruins! Esse, ainda, é o nosso maior déficit.
Naquela época você era a revelação, o coadjuvante que se destacava. Agora você já virou o protagonista, é quem carrega os filmes. Você sente o peso dessa responsabilidade que mudou?
Ah, com certeza. A responsabilidade está sempre conosco. Às vezes dá até um medo. Por exemplo, quando veio o convite para Malasartes e o Duelo com a Morte (2017), minha primeira reação foi de dizer não. Não queria fazer o filme. Puxa, um personagem que tinha sido do Mazzaropi, do Renato Aragão? Que possui uma longa tradição, é conhecido mundialmente, e ainda por cima por ser um caipira, muito diferente do meu interior, aquele com o qual estou acostumado. Não era um sertanejo. Não sou eu, foi a primeira coisa que pensei. “Mas você pode fazer”, me disseram, e eu só pensava “posso não” (risos). Até que comecei a entender que não era só um caipira, era um brasileiro. Ninguém me disse, foi um processo que precisei passar sozinho. Foi quando concordei. E achei que foi bom. Como a gente é cheio de julgamentos, não? Culturais, dentro do trabalho, onde pode estar ou não. Tenho ganho uma liberdade que tem me permitido entender que qualquer personagem, qualquer figura tem que ser recebida para poder perceber como ela pode se modificar. Antes não conseguia ver assim. No caso do Malasartes, tive que fazer esse esforço para me dar conta que esse personagem está por todos os lugares, no Brasil inteiro. Talvez num outro registro, com uma leitura diferente, mas na sua essência é o mesmo. Tem uma coisa cultural-social que a gente segrega o tempo todo.
O Celavi é uma figura bastante especial, é difícil pontuá-lo. Como foi criar esse personagem tão fundamental ao Grande Circo Místico?
O Celavi, assim como o Malasartes, saiu de um registro naturalista. O Celavi foi até antes do Malasartes, serviu como uma preparação. O Celavi, ao contrário do Malasartes, que tinha um histórico, era algo que começamos do zero. Ele foi uma criação do Cacá Diegues, mas também minha. A escrita do Cacá e do George Moura, os dois roteiristas, conduziram essa criação do personagem, mas havia muitas possibilidades no que eles escreveram. O que entendi é que era uma figura que precisava passar por aqueles acontecimentos, por toda aquela evolução da narrativa, de morte e vida de várias gerações, e por isso precisava ser esse contraponto, tinha que ter uma presença leve. Foi por aí que decidi criá-lo.
Durante esse século em que vai acompanhando essa família, as mudanças pessoais dele se dão em outro nível. O que você achou dessa composição?
A caracterização do Celavi é muito boa, e a premissa do Cacá era fazer que em cada geração ele surgisse de uma forma diferente. Teve o movimento hippie, depois vem uma coisa meio Michael Jackson, a gente foi modificando externamente, mas há uma energia que se mantém. Uma certa leveza. E é isso que não deixa ele se diferenciar. É normal que isso aconteça. O Celavi é a representação da passagem do tempo, de como esse elemento interfere na indumentária das pessoas, na característica física, e também no pensamento. E ele é diferente, até muda o exterior, mas por dentro continua o mesmo. Reflete o tempo dele, ao mesmo passo em que debocha de tudo aquilo. Ele sabe que é passageiro, que vai acabar e recomeçar. Representa esse ciclo que é o circo, essa forma circular, da cobra que engole o rabo.
O Celavi é também um pouco o espectador, pois não faz parte daquela família, ainda que esteja sempre junto dela. A gente se preocupa com ele.
Isso é verdade. Afinal, é ele quem apresenta os acontecimentos. Caminha junto com o espectador. É o mestre de cerimônias, que vai indicando qual é a situação, em que época estamos, quem são essas pessoas. O circo, os problemas de cada uma daquelas figuras. É através dele que se possibilitam essas leituras.
Falando em problemas, há uma questão muito forte sobre a representação da figura feminina no filme. Como você vê isso?
Acho que o Cacá tem falado muito sobre isso. É uma discussão urgente, que temos colocado o tempo todo, e que não pode deixar de existir de jeito nenhum. Ela sempre esteve presente, aliás. Só que agora meio que aflorou, essa urgência em falar sobre o feminino, e tudo isso que estamos vivendo é muito importante. Esse filme tem um lugar feminino, pelo nascimento, de todas essas mães e filhas que vão se sucedendo. O próprio Celavi é quase como uma mãe que conduz aquelas pessoas, que de alguma forma tenta educar aquele lugar. Acho que a atmosfera do filme é feminina. Por ser um ambiente artístico, sabe? Um lugar de experimentação, de movimento. O filme tem um lugar feminino, mesmo que não seja feminista.
Como foi trabalhar com Cacá Diegues?
Foi bom. O Cacá tem uma inteligência e uma praticidade em fazer cinema que acho bem impressionante. Além disso, tem muita tranquilidade. Ele maturou tudo, sabe do resultado que pode ter. Isso nos deu muita confiança. E durante todo o processo, com ele sempre ali, nos recebendo e dizendo que tudo daria certo. Ator problematiza tudo, e ele nos acalmava. Facilitou bastante. Para o Celavi, para a leveza do personagem, foi importante. Peguei muito do que o Cacá dizia.
Qual o espaço, no atual cenário cinematográfico brasileiro, para um filme como O Grande Circo Místico?
O espaço desse filme? Acho que cinema tem espaço para tudo. Acho que esse filme é uma alegoria artística, não é um trabalho convencional. Não é um filme que vai ser recebido pelo grande público com naturalidade, afinal, não tem um registro naturalista. Mas penso que, se você for ao cinema disposto a assistir a uma obra de diretor, entendendo que tem um contexto histórico do Cacá sobre fazer cinema, acho que é bonito e bem-vindo. Mas também não sei. O processo que estamos vivendo é muito confuso, com essa questão política, não nos remete aos filmes que estão sendo exibidos. Talvez a gente tenha que pensar a política a partir do nosso cinema, e entender que são lugares diferentes. Há filmes de todos os tipos. Os filmes podem pensar politicamente, mas às vezes isso se dá no campo artístico, sem discurso ou ativismo. Há espaço para todos. O cenário do cinema no Brasil está se modificando. Estamos experimentando. E talvez O Grande Circo Místico venha para dividir e somar, ao mesmo tempo. Para mudar esse cenário, em um processo de transformação.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2018)