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Fernanda Torres é conhecida como atriz de projetos diversos que vão desde a série Os Normais (2001-2003) até o drama Eu Sei que Vou Te Amar (1986), pelo qual venceu o prêmio de melhor atriz em Cannes. No entanto, nos últimos anos, ela tem experimentado as ficções literárias, as colunas em jornais e até seu primeiro roteiro de ficção: O Juízo (2019), suspense sobrenatural que estreia esta quinta-feira nos cinemas.

Na trama, Augusto (Felipe Camargo) está travando uma batalha contra o alcoolismo, além de enfrentar uma crise no casamento com Teresa (Carol Castro). Eles decidem se mudar com o filho (Joaquim Waddington) para um casarão da família, que possuía escravos séculos atrás. Enquanto luta contra seus demônios internos, este pai de família se confronta a dois ex-escravos (Criolo e Kênia Bárbara) que retornam para cobrar uma dívida histórica.

Como de costume, Fernanda Torres trabalhou em família: O Juízo é dirigido pelo marido Andrucha Waddington, estrelado pela mãe Fernanda Montenegro e pelo filho Joaquim, e produzido por primos. Ela explicou ao Papo de Cinema, em conversa exclusiva, o conforto de trabalhar com este grupo próximo e os riscos de se aventurar no cinema de gênero:

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Foto: Ivan Pacheco / VEJA.com

O filme tem sido apresentado como “suspense sobrenatural”, ao invés de terror. Como vê a questão do gênero?
Isso era uma dificuldade para nós. Na própria feitura do filme, conversamos com os produtores e pensamos: “Mas terror é para adolescentes, e tem que espirrar sangue!”. Eu não conseguiria fazer algo assim, com gente perdendo o dedo, perdendo a cabeça. Então dissemos: “Estamos perto de um suspense sobrenatural”, o que parecia mais a cara do nosso projeto. Quando você fala em terror, fica esperando susto e sangue, mas o espectador não vai encontrar isso aqui. Então adotamos o “suspense sobrenatural” mesmo.

Mesmo assim, os filmes de gênero têm crescido bastante no cinema nacional.
Esse filme nasceu na época desse crescimento. Escrevi o roteiro antes dos livros, antes do “Fim” (2013). Essa foi a minha primeira experiência na ficção. As comédias estavam estabelecidas e não tinham muitos caminhos novos para ir. O mercado olhou mais para os filmes brasileiros e pensou: “Que outro gênero popular leva as pessoas ao cinema? O terror, o suspense!”. Todos esses filmes são frutos da percepção de um mercado em potencial.

O roteiro sofreu algum tipo de atualização para se adequar ao Brasil de cinco anos depois?
Não. Ele não é um filme extremado, que foi intuído na hora de uma divisão absoluta no Brasil. Ele não tem o DNA violento do que o Brasil e o mundo se tornaram. Mesmo assim, o personagem do Criolo, na primeira vez que o escrevi, era um traficante de pedras holandês. Eu estava numa fazenda em Minas, com o Otto, o cantor, e a filha dele, a Betina. Eu me disse: “O Otto parece um traficante de pedras holandês do período da colonização!”. Primeiro, o personagem era assim. Depois pensei que a grande dívida no Brasil não era com os holandeses, e sim com a escravidão e a exploração da terra. Essa foi a principal mudança que tivemos: transformar este personagem num traficante de pedras e escravo fugitivo. O Criolo traz ao filme este significado. O Juízo não grita nenhuma bandeira política, mas ele carrega a nossa dívida histórica. O Criolo carrega essa duplicidade: ele é ao mesmo tempo sambista e rapper, doce e selvagem. A vinda dele foi excelente para o filme.

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Elenco de O Juízo. Foto: Suzanna Tierie

Você sempre teve a intenção de fazer um filme em família, com sua mãe, marido, filho?
Acredito que todos nós viveríamos sem o auxílio luxuoso um do outro. Mas nós formamos um grupo de trabalho. É normal para mim trabalhar com o Andrucha, minha mãe, meu irmão… Eu venho fazendo isso há muitos anos. Se nenhum de nós trabalhar uns com os outros, certamente vamos acabar trabalhando com outras pessoas. Mas trabalhamos juntos por opção. É engraçado porque somos família de fato, mas nossa família artística é maior: considero o Walter Salles parte da minha família, e o mesmo vale para o Luciano Moura, a Helena Soares, a Andréa Beltrão, a Débora Bloch, o Bruno Mazzeo. O Joaquim veio para o filme porque precisávamos de um garoto, e existia uma questão pesada de liberação para filmar. Era preciso emancipar e tal, uma grande dificuldade. Então o produtor do filme, outro parente nosso, nos disse: “E o Joaquim?”. Era verdade que o Joaquim já tinha feito terceiro assistente de direção, tinha ralado pra caramba, e conhecia os sets de filmagem. Perguntamos a ele se queria fazer um teste, e ele topou. Quando ele fez o teste, percebemos que todos os outros garotos liam esse personagem como um coitado, um menino apavorado. O Joaquim foi o único a ler com raiva, com ironia, além de ter aquele cabelo selvagem. Ninguém mais fez assim, foi uma surpresa para nós, inclusive. Hoje o Joaquim estuda filosofia. Ele atuou em Sob Pressão, e fez com talento. Existe algum instinto nele, mas o foco dele é a filosofia, embora caso venha alguma oportunidade como ator, acho que ele faria.

Você não pensou em atuar no filme?
Aí seria demais. Eu não gosto de fazer as cenas que eu escrevo. Você fica vendo o outro falar as falas que você escreveu, é uma posição estranha de estar ao mesmo tempo fora e dentro da cena. Talvez um papel muito pequeno eu até pudesse fazer mas, neste caso, um papel grande me deixaria nervosa.

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Andrucha Waddington e Fernanda Torres apresentam O Juízo na 43ª Mostra de SP

O Juízo aborda o sobrenatural de maneira bastante realista, como se os fantasmas do passado fossem seres humanos comuns.
De fato, existe isso no filme. Sem querer dar spoilers, posso dizer que chega um momento em que o espectador não consegue mais diferenciar os fantasmas dos vivos. Inclusive, tivemos uma pergunta maravilhosa da mamãe durante as filmagens. O produtor, Léo Barros (outro parente!), me contou que estava assistindo a uma cena com a mamãe atuando e ela perguntava ao Andrucha: “Mas nessa cena este personagem está vivo ou morto?”. E ele respondia: “Fernanda, isso não importa!”.

Você usou referências para esse roteiro? A ideia de uma família que se muda para um casarão isolado, com o patriarca enlouquecendo e ameaçando a todos, pode remeter a O Iluminado (1980).
Isso é um inferno! Várias vezes eu escrevia coisas e pensava: “Essa ideia é maravilhosa!”. Aí você termina de escrever e descobre que aquilo tudo vem de O Iluminado. Antes, a cena que deveria abrir o filme (e foi reposicionada depois) trazia o personagem abrindo o olho e vivendo no passado. Adorei a ideia, então descobri que estava puxando isso de O Iluminado. Em determinado momento, eu parei de lutar contra isso. Não consegui me distanciar totalmente dele, mas também não parti da intenção de refazer o clássico, é claro. Foi impossível escapar de O Iluminado, embora O Juízo tenha suas particularidades. Você assiste a Ad Astra: Rumo às Estrelas (2019) e pensa: aquilo é 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968)! As pessoas nem lutam mais para não ser assim. O Kubrick estabeleceu premissas incontornáveis no cinema. A velocidade das naves no espaço, no cinema, é a velocidade determinada pelo Kubrick. É impossível filmar com outra velocidade diferente daquela estabelecida por ele.

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2019 tem sido o ano complicado, com políticos eleitos minimizando nossa dívida perante a escravidão. Como vê o lançamento de O Juízo agora?
Eu nem tinha pensado no revisionismo histórico, mas não é possível visitar as fazendas de Minas Gerais e não pensar no carma que as fazendas de café e cana-de-açúcar trazem. Sempre pensei que, se fosse fazer um filme sobrenatural ou de suspense no Brasil, teria que ser numa fazenda de Minas Gerais. Esse local é cármico por várias maneiras: o excesso de minérios, a falta de mar, a quantidade impressionante de sanatórios. Foi ali que se acharam as pedras preciosas, então era um Estado fechado, altamente vigiado pela Corte. Minas é o centro do Brasil. Minha mãe fala isso: quando vou a Salvador, acho exótico, assim como quando vou a Blumenau, mas Minas é o Brasil. Conheci uma menina que tinha herdado uma fazenda da família e morava sozinha naquele local imenso, em cima de uma senzala. A sala de estar tinha uma escada em espiral que descia para a senzala. Eu não dormiria ali jamais! Isso poderia render filmes até mais complexos e sobrenaturais do que O Juízo. Também existe a questão do espiritismo, outra tradição brasileira. O Brasil é altamente espírita, os militares são muito espíritas.

Costumamos associar a sua carreira ao drama e à comédia, mas o que vai levar desta experiência com o sobrenatural para a sua trajetória como roteirista?
Trabalhar com cinema de gênero é dificílimo. Sempre me diziam: “Você precisa olhar o roteiro e ver se ele está na cartilha do gênero tal”, mas isso era impossível para mim. Havia sempre a questão de esconder se o Criolo vinha do passado ou não, mas isso nunca foi importante para mim. Então eu escrevi de uma maneira, filmamos de outra e depois decidimos como posicionar esta informação durante a montagem. Eu escrevo de uma maneira muito intuitiva, não sou formada no gênero, nem domino o terror e o suspense – assim como não considero que eu domine a comédia. Não separo muito a comédia da tragédia: um sempre precisa ter o outro. Aliás, foi meu filho que me explicou a diferença entre ambos: a comédia termina bem, enquanto a tragédia termina mal. Mas a trajetória de ambos, até chegar nesse final, é a mesma.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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