O diretor Andrucha Waddington nunca tinha feito um projeto de suspense, e o mesmo valia para a roteirista Fernanda Torres. Mesmo assim, desde 2012 a dupla prepara sua incursão no gênero sobrenatural com O Juízo (2019), que chega aos cinemas nesta quinta-feira, dia 5.
Na trama, um casal em crise (Felipe Camargo e Carol Castro) se muda para um casarão familiar, na tentativa de recomeçar do zero. No entanto, o local abriga seus fantasmas, em especial dois ex-escravos (o cantor Criolo e Kênia Bárbara) que aparecem para cobrar uma dívida histórica. Aos poucos, os novos moradores compreendem que precisam contar com habitantes da região (Fernanda Montenegro e Lima Duarte) para repararem os erros de seus antepassados.
Durante a 43ª Mostra Internacional de São Paulo, o Papo de Cinema conversou em exclusividade com Waddington sobre o filme:
Como enxerga O Juízo dentro do cinema de gênero?
O terror tem muito susto, muito sangue. Temos pensado no projeto como um suspense sobrenatural. É sobrenatural porque fala de coisas não concretas, que podem ser místicas ou não, como os fantasmas e as almas que não desencarnam. Já o suspense diz respeito ao fato de se dedicar muito mais à construção de clima do que no horror. Esta foi uma escolha nossa, de não apostar em sustos. A casa e a floresta são personagens. Trata-se do embate do homem contra a natureza, e aquela casa possui uma história. Ela abriga um trauma muito grande do passado que volta para acertar contas com a família.
O terror norte-americano costuma fazer sucesso nos nossos cinemas, mas o terror brasileiro ainda procura o seu público. Por que acredita que isso aconteça?
É um mistério. Acredito que a gente precise acertar com uma série de filmes de terror em sequência para o público acreditar que sabemos fazer. Temos filmes nacionais muito bons que o público não compra por desconfiança. Mas isso aconteceu com as comédias: elas caíram nas graças do público, e durante um tempo considerável, funcionaram muito bem. Agora perderam um pouco a força. O cinema brasileiro precisa, de alguma maneira, reconquistar o seu público. Esta é uma fase de reconquista.
Em pleno período de ataque aos artistas e tentativas de reescrever a nossa História, você propõe um acerto de contas simbólico com a escravidão.
O filme tem algo muito atual, embora tenha sido escrito entre 2012 e 2016. O Brasil tem uma dívida com os escravos, porque tivemos uma abolição leviana. Mas estamos falando da época da escravidão mesmo, quando um homem entrega outro para ser executado, por ser um escravo ladrão. Aquela alma permanece no lugar durante duzentos anos para cobrar uma vida de volta.
Apesar do tema tipicamente brasileiro, o filme possui motes clássicos, como a família num casarão mal-assombrado.
A Fernanda veio me perguntar: “Vem cá, não está ficando parecido demais com O Iluminado (1980)”? Eu respondi que não, mesmo sendo inevitável não esbarrar em algum clássico quando se constrói um filme de terror. Em todo filme de máfia tem um mafioso, tem aqueles personagens que fazem o trabalho sujo. Em cada gênero existem os arquétipos que você acaba usando por fazerem parte da estrutura dele. Então as referências e comparações não foram uma preocupação para mim. Só quis contar aquela história da melhor maneira possível, e com um clima de tensão permanente.
A propósito do clima, percebe-se o investimento no trabalho de fotografia, a névoa, a trilha sonora. De que maneira orquestrou esses elementos?
Esse era o maior desafio desse filme. Eu nunca tinha feito suspense, mas sabia que seria essencial trabalhar o ambiente, a fotografia, o tempo, os silêncios, a angústia dos personagens… O som é fundamental. Pensamos na melhor maneira de criar clima através dos efeitos sonoros, mas novamente, sem recorrer a sustos. Estes elementos, em conjunto, deixam o espectador angustiado do início ao fim. Os tempos são totalmente diferentes de um drama ou uma comédia. Sempre tive muita vontade de experimentar esse gênero.
Muito do filme foi decidido na montagem, certo? Isso inclui a temporalidade de algumas ações, ou quando apresentar certas revelações…
Costumo dizer que o último tratamento do roteiro acontece na montagem. Você tem o roteiro, faz a transposição para as cenas ao filmar, e depois possui todo aquele material congelado, não é mais possível mudar. As possibilidades de mudança vêm da ordem das cenas. Na hora de copiar e colar, você recria o roteiro pela última vez. É quando vai decidir o que mostrar ou esconder, e o quanto retardar uma informação. O Juízo foi escrito com um prólogo, mas nas primeiras versões da montagem, tiramos o prólogo. Alguns meses depois, decidimos retomar o prólogo. A ilha de montagem permite experimentar bastante o ritmo da narrativa, o que é ótimo.
Você trabalha com atores muito experientes ao lado de novatos como o Criolo. De onde veio essa escolha?
O Criolo é fenomenal. Eu ainda não tinha um ator para interpretar o Couraça. Estava passando entre Barra do Piraí e Ipiabas, buscando locações, ouvindo música dentro do carro. Tocou uma música do Criolo e pensei: “É ele!”. Liguei na hora para a agente do Criolo, que eu conhecia, e ela me avisou que ele estava no Rio de Janeiro. Passei no hotel para a gente conversar, e ele aceitou rapidamente. Avisei que ele precisaria estar à disposição durante pelo menos um mês e meio para as filmagens, além do tempo de preparação de elenco. Mesmo assim ele topou, deu uma parada na agenda de shows para ficar com a gente – como era um filme de locação, todo mundo estava morando em Ipiabas. Na fazenda onde estávamos, não pegava celular, o que ajudava muito na concentração. O Criolo, por ser cantor e intérprete, já tinha certo talento para a encenação. Eu me lembrava de Casa de Areia (2005), quando Seu Jorge e Luiz Melodia faziam o mesmo personagem em duas fases diferentes da vida, e percebi que isso funcionava muito bem. O Criolo já tinha essa vocação, e estava disposto a se arriscar num registro fora de sua zona de conforto. Acredito que ele tenha entregado uma atuação muito boa.
O Juízo também tem seu filho, Joaquim Waddington, sua esposa Fernanda Torres no roteiro, a sogra Fernanda Montenegro. Queria fazer um filme em família?
Isso aconteceu por acaso. Nós somos uma família de circo! Quando procuro um ator, é natural olhar para o lado e pensar na Fernanda. O Joaquim foi uma ideia do produtor. Eu não estava encontrando o adolescente para o filme, e me deram a ideia de testar o Joaquim. Perguntei se ele aceitaria ser testado, e aceitou. Então fez um teste com a produtora de elenco, para se sentir à vontade, e para eu também não me sentir comprometido a chamá-lo se o teste não fosse bom. Mas ele realmente fez a melhor leitura, ganhou o papel por meritocracia. No mais, Lima Duarte é um ator maravilhoso com quem eu não trabalhava desde Eu, Tu, Eles (2000), o Fernando Eiras também é alguém que eu sempre admirava. Criolo e Kênia Bárbara foram novidades na minha vida. Quanto ao Felipe Camargo e à Carol Castro, eu ainda não tinha trabalhado com nenhum deles, mas tive uma surpresa muito boa. Adorei o que eles fizeram com os personagens.
Felipe Camargo e Carol Castro estão muito à vontade com diálogos. Como trabalhou com eles?
Muitas coisas se definem desde as primeiras leituras do roteiro. Eu gosto muito do registro mais naturalista. Fomos encontrando o tom durante as leituras, e depois, nas filmagens, tivemos apenas o trabalho de balancear o tom e afiná-lo para cada cena. Ambos entenderam muito bem a pegada naturalista que eu estava propondo. Busco manter esse registro em todos os meus trabalhos. Prefiro a interpretação econômica, que em geral é a melhor escolha. Na dúvida, sempre opto por fazer menos a fazer em excesso. Dentro do suspense, principalmente, se eu carregasse no tom, poderia cair na caricatura.