Um dos destaques do 14º Festival Varilux de Cinema Francês, O Livro da Discórdia (2022) conta a história de um escritor que se baseou na própria família para criar a sua obra-prima. De comportamento distante dos costumes muçulmanos pregados pelos pais conservadores, ele tenta evitar que os seus leiam essa apropriação da realidade e se sintam ultrajados com os retratos nela contidos. Trata-se de uma comédia que toca em assuntos muito espinhosos de modo leve, mas não ao ponto de os tornar banais. Para saber um pouco mais sobre a produção, conversamos com Baya Kasmi, certamente a mais sorridente e entusiasmada integrante da delegação francesa que desembarcou no Brasil para participar do evento. Muito falante, sempre com um semblante convidativo e também receptivo, ela trocou uma ideia conosco numa tarde ensolarada do Rio de Janeiro. E o resultado você confere logo abaixo.
De onde surgiu a ideia de fazer um filme que acontece em torno da mentira?
Para mim, a mentira é o melhor ponto de partida para contar uma história porque tudo se torna mais excitante, angustiante, é como se o personagem principal se transformasse num espião.
E como foi a construção dessa dinâmica familiar entre personagens tão deliciosamente excêntricos?
Voltando ainda à questão da mentira e respondendo essa questão da família, na infância temos de mentir para ser livres, às vezes até mesmo para proteger os nossos pais, com os quais entramos em conflito. A construção da dinâmica familiar começou na depuração da escritura, na forma de elaborar essa realidade em forma de filme. O roteiro tem algo de muito lúdico, uma vez que entendemos no início esse jogo de sete erros entre a realidade e a ficção. Achei interessante apresentar isso para mostrar como o personagem se relaciona com a sua família.
O filme toca em questões como a representação às vezes estereotipada dos árabes, mas de modo leve. A ideia desse tom era para provocar reflexão sem prejudicar o aspecto do entretenimento?
São realmente temas muito fortes na França, o racismo, a representação, o estrangeiro. Há componentes muito pesados historicamente falando, pois remontam à colonização. Então, faz bem abordar isso também de uma forma leve, faz bem até para mim na hora de escrever. Por meio do filme também queria dizer que não é possível determinar o que uma pessoa é por sua origem, por sua religião, então a escolha pela carreira de escritor do personagem é porque esse autor tem uma voz que não pode ser entendida como generalizadora de sua comunidade. Na família dele há conflitos, diferenças, nem todos pensam do mesmo jeito, então não se pode generalizar.
E, diferentemente de boa parte dos filmes que acontecem em torno das mentira, o encerramento não é orientado pelo reestabelecimento total da verdade. E mentira é uma ferramenta importante para sobreviver?
Há uma construção comum de que a verdade é linda. Mas, ela nem existe (risos). Cada um tem a sua verdade e às vezes ela pode ser até mesmo violenta. Por exemplo, a mãe da família escolhe se calar diante de determinadas coisas e é importante respeitar a escolha de não falar sobre. É o que representa a metáfora da salada de melão que ela serve no final, pois quebra a expectativa de que a mãe reagiria de modo passional diante de certas revelações.
E há um quê de comédia italiana na construção dessa família…
Exatamente. Ama a comédia italiana. Meu filme preferido é Matrimônio à Italiana (1964). Os italianos falam dos pobres e dos defeitos deles sem miserabilismo, com alegria, sem diminuí-los. Para mim é a melhor forma de falar dos desvalidos. Aproveitando que estou no Brasil, um filme que toma o mesmo caminho e que adoro é Que Horas Ela Volta? (2015), pois evita sentir e provocar pena dos pobres, os apresentado de um modo bem mais complexo.
E como está sendo para você vir ao Brasil apresentar o filme e fazer parte da delegação internacional do Festival Varilux?
Estar aqui é extraordinário, é como um sonho. Estou adorando o contato com o público brasileiro, que é apaixonado e apaixonante. Fiquei muito feliz sentir que o tema do meu filme mexe com as pessoas daqui, então estou muito contente. Meu medo era que essa história não fosse universal porque fala de uma comunidade específica, aliás, um medo que o personagem compartilha comigo.
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