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Exibida pela primeira vez na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, a comédia surrealista O Lodo (2020) aborda uma situação inusitada: quando Manfredo (Eduardo Moreira) visita um terapeuta pela primeira vez, ele não gosta do tratamento e decide interrompê-lo, mas o psicólogo o persegue. Enquanto tenta se livrar da figura indesejada, o homem de meia-idade descobre possuir um lodo dentro de si, que começa a vazar pelos mamilos.

A produção levou a plateia de Tiradentes aos risos, em função do belo roteiro adaptado do conto de Murilo Rubião, e da atuação certeira do elenco, composto por membros do Grupo Galpão. O Papo de Cinema aproveitou para conversar com o diretor Helvécio Ratton sobre este projeto tão singular:

 

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Helvécio Ratton. Foto: Netun Lima / Universo Produção

 

Como conheceu o texto do Murilo Rubião, e por que acreditou que renderia um bom longa-metragem?

Eu conhecia outros contos do Murilo, mas não esse. Tinha lido outros contos mais conhecidos. Quando comecei a trabalhar a ideia de uma série baseada em textos do Murilo, roteirizei quinze deles. Assim eu descobri “O Lodo”, e senti que ele oferecia muitas possibilidades. Por um lado, era um material compacto, com umas dez páginas somente. Por outro lado, ele tinha um universo muito rico, que permitia uma série de desdobramentos. Pela minha formação em psicologia e psicanálise, esse viés me interessou. Achei surpreendente a questão do incesto não revelado, além da culpa tipicamente mineira do personagem. O retorno do reprimido é ótimo. O Dr. Pink afirma, no filme, que as coisas não somem: você pode soterrar sentimentos, pessoas e lembranças, mas uma hora tudo volta. Por algum lado, aquilo vai sair. Lacan fala muito sobre isso. Adoro lidar com a estranheza do conto, e tentar levá-la ao filme.

O personagem atravessa uma crise na masculinidade. Ele pinta os cabelos, perde o desejo pela amante, e até sangra pelos mamilos.

No conto original, o personagem acorda e descobre que o mamilo praticamente desapareceu, e se transformou numa flor aberta. Seria muito difícil transmitir isso no cinema, e decidi colocar um corte no mamilo, que desempenhava a mesma função. Eu também achei interessante que isso se revelasse pelo peito, algo muito ligado ao feminino. Era o peito que jorrava o lodo. Eu gosto dessa inversão: não é o psiquiatra que o corta, é a expulsão do lodo que traz isso para o corpo do personagem. Fiz várias pesquisas para definir esse corte. Fiquei pensando nas histórias de pessoas em que nascem as chagas de Cristo, algo registrado nas Filipinas e em várias partes do mundo. De repente, aparecem os cortes na mão, no peito. Resolvi trabalhar nessa linha, como uma chaga. Há dois crucifixos no filme: um deles se encontra no tribunal, e já estava lá no local quando filmamos. O segundo crucifixo está no quarto do personagem, durante o flashback, e há uma imagem da Nossa Senhora com duas chagas nas mãos. Essa foi a forma que encontrei de trabalhar esse corte.

 

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Eduardo Moreira e Renato Parara em O Lodo. Foto: Divulgação

 

O filme se aproxima do realismo fantástico, mas nunca se torna mágico, nem espetacular.

A ideia era tratar o absurdo dentro de um contexto realista. O realismo fantástico do Murilo Rubião não é igual àquele do García Márquez. O Márquez lida com o maravilhoso: as coisas vão crescendo até estourarem. Mas para o Murilo, a estranheza fica contida, tanto que o sangue sai pelo peito, algo pequeno, que ele ainda consegue ocultar de certo modo. Às vezes vaza mais do que ele imaginava, mas ainda é algo pequeno. Essa foi a premissa que trabalhei, de sempre preservar o contexto naturalista.

Como decidiu pela tela quadrada, além dos planos fixos e simétricos?

A tela quadrada foi uma proposta do Lauro Escorel. Eu tinha acabado de assistir a Guerra Fria (2019), um filme lindíssimo, que tem exatamente essa janela 1 : 1,37. Gostei bastante do formato, e quando comecei a pensar no nosso filme claustrofóbico, sabia que não teria sentido trabalhar com uma tela panorâmica, que respire tanto. Na verdade, a gente precisava tirar o ar do personagem e sufocá-lo. Nós vamos caminhando ao huis clos, com o personagem fechado em casa, e o formato da tela ajudou muito nesse sentido. A culpa não o deixa sair, não deixa escapatória. Além disso, esse formato favorece a geometria, desde o prédio quadrado até os corredores e a passarela que mergulha pela cidade. O mesmo vale para o espaço dentro da casa. A câmera se mexe muito pouco, porque ele mesmo se aprisiona.

Por que trabalhou com os atores do Grupo Galpão? Era importante escolher um elenco habituado a atuar em conjunto?

A minha primeira escolha foi o Eduardo Moreira. Quando eu escrevo um roteiro, começo a visualizar os personagens, e desde o início eu via o Eduardo. Tinha trabalhado com ele em Batismo de Sangue (2006). Ele tinha um pequeno papel, e eu gostei muitíssimo da entrega do Eduardo, do comprometimento enquanto ator, da relação dele com a câmera. Comecei a perceber que eu precisaria de uma cumplicidade muito grande entre os atores, era preciso encontrar uma unidade para que nada destoasse em termos de atuação. Então chamei o núcleo forte do Galpão, com seis atores. Além disso, o Eduardo é casado com a Inês Peixoto, então eu trabalhava uma relação entre ambos que se tornou favorável ao filme. Fui integrando os outros, como o Renato Parara, para esse núcleo. Como trabalhei apenas com atores de Belo Horizonte, isso me permitiu tê-los perto de mim para fazer encontros recorrentes, ensaios constantes. Não ensaiamos sempre, porque não gosto de cristalizar as coisas dessa forma, mas pudemos ler e discutir os personagens. Isso me permitiu reescrever vários diálogos e modificar algumas sequências a partir do que eu descobria no contato com eles.

 

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Eduardo Moreira e Renato Parara em O Lodo. Foto: Divulgação

 

Percebe-se uma coreografia de câmera muito precisa. Não parece que exista espaço para brincar com a composição durante o set.

A gente trabalhou de forma muito planejada. É claro que diversas ideias surgiram na relação com a cenografia, com os ambientes. Mas havia uma pré-visualização muito grande das cenas. A minha relação com o Lauro Escorel, diretor de fotografia, e o Adrian Cooper, diretor de arte, foi construída em outros filmes, e isso nos ajudou a definir com antecedência os tons, desde as paredes, os quartos, os figurinos, os movimentos de câmera. No set, tudo estava bastante preparado. É claro que sempre deixo uma porta aberta ao acaso. De repente, surge uma ideia brilhante na hora, e temos que aproveitá-la. Mas o filme foi muito preparado, inclusive por uma questão econômica. Este é um projeto de pequeno orçamento, e a gente tinha que tirar o máximo dos recursos disponíveis.

O Lodo traz um humor absurdo, muito específico e raro na produção brasileira. Qual seria o espaço de um filme deste no circuito nacional?

Essa é uma das coisas de que mais gosto nesse filme: as pitadas de humor negro. Fiquei pensando se as pessoas ririam, se perceberiam que podiam rir, de fato, daquelas situações. Quando eu estava finalizando, mostrei o filme para os três atores principais: o Eduardo Moreira, o Renato Parara e a Inês Peixoto. Os três morreram de rir em várias cenas. Depois, quando mostrei a outras pessoas, percebi que elas não riam tanto. Mas na primeira sessão pública do Lodo em Tiradentes, vi que as pessoas riam novamente. É preciso se liberar dessas coisas e poder rir. Às vezes a gente fica acanhado, achando que não deveria rir daquela condição, mas é muito bom a gente rir. Ele é um homem comum, afinal, e cada um tem seu lodo!

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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