Nesta quinta-feira, 25 de fevereiro, chega aos cinemas brasileiros o drama O Mundo de Gloria (2019), de Robert Guédiguian. Vencedor do prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza para Ariane Ascaride, o filme apresenta a chegada de um bebê ao mundo. No entanto, a recém-nascida Gloria se encontra numa família com graves dificuldades financeiras, cujos laços foram desgastados pela precariedade econômica. Enquanto a mãe da criança, Mathilda (Anaïs Demoustier) é explorada numa loja de roupas, o pai Nicolas (Robin Stévenin) tem dificuldade em se firmar enquanto motorista de aplicativos. Já a avó Sylvie (Ariane Ascaride) trabalha como faxineira em grandes empresas, e o avô Richard (Jean-Pierre Darroussin) dirige ônibus municipais na região de Marselha. A família se organiza como pode para criar o bebê, até a chegada de Daniel (Gérard Meylan), pai de Mathilda, recém-saído de prisão após décadas encarcerado. O resultado é um belo filme sobre relações humanas e a luta da coletividade contra o individualismo. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com Guédiguian sobre o projeto:
Como o filme reflete os novos códigos do mundo do trabalho?
Fiz este filme motivado por um senso de derrota em relação à consciência de classe, ao pensamento operário e de esquerda. Acredito que o egoísmo da ideologia dominante submergiu nossa sociedade, afogou a consciência de classe. Hoje, uma ampla maioria de pessoas desprivilegiadas acredita que a única forma de sucesso é aquela de ordem individual. Não se acredita mais na ação coletiva: a intenção é ser rico, belo, controlar o poder. Acreditam que têm o direito de passar por cima dos outros em nome da ascensão pessoal. O filme pretende mostrar que este tipo de ideologia destrói qualquer forma de organização coletiva, e inclusive deteriora os laços familiares. Vivemos uma pandemia de egoísmo: essa é a pandemia mais grave, aquela do individualismo, do “cada um por si”. Isso está mais forte hoje do jamais esteve. Obviamente, não ignoro os grupos ativistas que se articulam neste momento, e que lutam com força, mas eles são minoritários e enfrentam grande dificuldade de se impor. Nunca estivemos tão perto de uma aceitação da escravidão pelos escravos.
Você faz uma leitura pessimista sobre a França de Macron, dentro de um filme otimista.
Sim. Esse otimismo é uma condição de privilégio. Os ricos na sociedade atual vão muito bem, obrigado. As fortunas cresceram bastante nos últimos 30 anos. Para as pessoas ricas, diplomadas e que moram nas grandes cidades, a vida segue sem problemas. No entanto, os pobres fazem esforços cada vez maiores, até não poderem mais enfrentar as forças dominantes. Alimentamos a esperança de que todos os pobres podem sair desta situação por sua própria força de vontade, o que é falso. Em toda a história da humanidade, as únicas formas de vitória perene foram coletivas, não individuais. Para mim, a ideia de sucesso individual não existe, apenas o sucesso coletivo. Talvez este seja um posicionamento de ordem moral, mas eu o assumo.
Em uma entrevista, você disse que Daniel representa você mesmo. O que quer dizer?
O personagem de Gérard Meylan constitui os olhos do filme. Como ele fica tanto tempo na prisão, o retorno à sociedade desperta a impressão de que ele vem de outro planeta. Eu percebi, enquanto criava o filme, que este personagem possui uma observação distanciada, um senso crítico. Isso não quer dizer que ele seja pretensioso, nem que tenha qualquer desprezo pela sociedade. Ele ficou fechado num mundo onde criava os seus poemas e inventava as suas próprias belezas. O personagem se torna um anjo que paira acima de todos, vigiando-os e tentando fazer o possível para que a vida deles melhore.
Você costuma trabalhar com uma mesma trupe de atores. Cria os papéis diretamente para eles, pensando nas qualidades de cada um?
Trabalho frequentemente com os mesmos atores, mas não sei se diria que crio os personagens diretamente para eles. Na verdade, não invento personagens pensando no que eles são capazes de fazer, pelo contrário, gosto deste grupo de atores porque sei que são capazes de interpretar qualquer coisa. São atores excelentes, o que me permite me arriscar na construção e apostar em atores jovens como Anaïs Demoustier e Lola Naymark. Ninguém oferece para elas os papéis que eu ofereço. Anaïs filma bastante, ela está sempre muito ocupada, mas você nunca a vê interpretar garotas malvadas. Obviamente, ela adora essa oportunidade, e sabe fazer muito bem as personagens controversas. Eu me arrisco principalmente com os atores mais jovens. Com os mais velhos, a situação é mais cômoda. Eu sei muito bem como o Gérard atua, porque ele encarnou muitas vezes meu próprio olhar no cinema. Ariane já interpretou muitas grevistas nas minhas histórias, mas nos papéis anteriores, era ela quem defendia o direito à greve. Em O Mundo de Gloria, Ariane tem um papel mais ambíguo, prestes a fazer tudo o que puder para defender os filhos. É verdade que gosto de provocá-los a fazer coisas diferentes, mas também é importante que eles se interessem pelo personagem, se identifiquem. Não faria com que interpretassem figuras completamente opostas à sua concepção apenas pelo prazer de fazê-lo.
Como enxerga no filme o papel do sacrifício de uma geração pela outra?
Isso ocorre desde que o mundo é mundo. O sacrifício foi fundamental para que muitas sociedades perdurassem. Este é um comportamento humano antigo, arcaico. Eu digo algo cristão, no sentido histórico do termo, porque o cristianismo reside na crença sacrificial de uma pessoa em nome de toda a humanidade. Isso se reflete nos meus filmes, e na relação entre pais e filhos, sem dúvida. A metáfora da reprodução da humanidade obviamente depende de um fim. Eu me tornei avô há seis meses, e já posso dizer que a minha vida mudou. Este é apenas um exemplo, mas eu o digo com seriedade: o fato de perceber a chegada de uma nova geração me tranquiliza em relação à minha própria finalidade e, metaforicamente, à finalidade da humanidade como um todo. Ela está se reproduzindo. Somos todos tocados por essa metáfora.
Você aborda essas questões com muita poesia: a música, os haicais, as câmeras lentas no nascimento e na morte.
Como o personagem de Gérard, eu me agarro à beleza do mundo. Não me lembro mais de quem dizia isso, e talvez eu nem seja tão categórico a respeito, mas existe a ideia segundo a qual, se você não vê a beleza por todas as partes, é você que não procurou. A beleza se encontra em todos os cantos: basta procurá-la, revelá-la, arrancá-la ao mundo. Para mim, filosoficamente, existe beleza e graça em qualquer situação, mesmo as piores. Depois de tanto tempo trabalhando em meios desfavorecidos, esta foi uma das principais coisas que aprendi. Eu sempre trabalhei assim, não conseguiria olhar o mundo de maneira diferente. Mas não escondo a minha ambição utópica: gostaria que meu filme fosse visto por todos, que a psicologia dos personagens fosse perfeita, e que o filme fosse ao mesmo tempo político, metafórico, poético. Sonho em fazer obras-primas. Acredito nesta ambição na hora de fazer um filme, mesmo que alguns casos não saiam como a gente espera, ou que alguma cena revele um pequeno momento de graça inesperado. Mas é preciso ter esse desejo: eu sonho com o filme total.
O filme chega nas salas brasileiras num difícil período de retomada das atividades. Como enxerga este momento para a exibição presencial, em salas?
Bom, me parece evidente que as salas de cinema enfrentam uma pequena dificuldade suplementar desde que as plataformas de streaming surgiram. Não acredito que a pandemia tenha acelerado este processo: o streaming já estava bem consolidado antes disso. O que me preocupa é o fato de que as plataformas não fazem um filme entrar na história do cinema. Nós acabamos de falar de obras-primas, mas na plataforma o filme não é apreciado, ele é consumido, muitas vezes sem mesmo se saber quem o fez. Mesmo quando a obra é muito bela, ela perde a autoria dentro das plataformas. Além disso, se você já não é um ator reconhecido, é difícil conquistar reconhecimento em meio ao catálogo destes serviços. O streaming não destaca as obras, não joga luz aos bons trabalhos, que ficam perdidos. Isso é muito grave.