Conversamos com o diretor Paulo Sacramento no fim do dia reservado pela assessoria à sua bateria de entrevistas. Portanto, era de se esperar que estivesse cansado, pouco disposto a um bate-papo mais alongado. Ledo engano. Ele começou a conversa demonstrando estar realmente a fim de falar de seu mais novo filme, O Olho e a Faca (2018). “Queria ser genial, falar coisas diferentes”, disse, aos risos, se referindo às naturalmente repetidas respostas dadas aos diferentes jornalistas. Mas Paulo é aquele tipo de entrevistado interessado, que defende a sua “cria”, por quem evidentemente tem um orgulho danado. Nosso Papo de Cinema passou pelas dores e as delícias de rodar numa plataforma de petróleo operante e chegou até as leituras de que o conjunto não reserva um espaço complexo às personagens femininas. Com vocês, o nosso bate-papo exclusivo com o cineasta Paulo Sacramento!
Quais as dificuldades e as potencialidades de filmar numa plataforma de petróleo?
Primeiro, foi é um privilegio. É algo que aconteceu raríssimas vezes no mundo. Na verdade, nunca vi um filme que tenha sido feito numa plataforma em funcionamento. Passamos 14 dias embarcados. Tivemos exatamente a rotina de um trabalhador de plataforma. Queríamos mais tempo e gente, mas precisamos nos adaptar. Foi uma equipe guerreira lá dentro. Nossa intenção era que a primeira parte não fosse muito diferente da segunda, inclusive esteticamente. Mas é difícil manter o padrão lá dentro. Fizemos quase 60% do filme em duas semanas, foi muito tenso e intenso. Cheguei a pensar que não ia dar. Para você ter uma ideia da complexidade, éramos sempre acompanhados por alguém que media o nível de gás quando filmávamos, em virtude da possibilidade de faíscas que poderiam causar explosões. Isso gerou uma unidade na equipe, principalmente quanto ao relacionamento dos atores. Dormíamos todos juntos, amontoados. Quatro pessoas em cada quarto. Não havia espaço para estrelismo.
Há uma tensão proveniente daquilo sobre os acidentes, da placa que menciona quantos dias o local está sem ocorrências anormais. Era vital deixar esse perigo iminente como prenúncio?
Isso estava previsto desde o começo. Inclusive aquela placa era nossa. Aliás, temos pouca interferência da nossa direção de arte. O perigo é um assunto constante entre os trabalhadores petroleiros. Tem um diálogo logo no começo, depois que os personagens chegam à plataforma, em que a questão da segurança é mencionada como vital. Essa tensão também aperta os laços entre os embarcados. Quando eles saem, o clima é completamente diferente de quando eles chegam à plataforma. O filme tem um pouco disso, de falar da estabilidade que achamos ter, da falsa impressão de que as coisas estão supostamente sob controle. Nossa intenção era contar esse drama humano.
Como foi a direção especificamente do Rodrigo Lombardi já que ele que tinha de expressar muitas coisas em cena, ser atravessado por crises de diversas naturezas?
O Rodrigo já tinha uma experiência absurda em novela. Ele estava louco para fazer um filme que não fosse comédia, algo que muitos atores televisivos acabam fazendo. Ele queria experimentar um tempo e uma pesquisa particulares. Rodrigo se dedicou bastante. Tivemos preparação com a Fátima Toledo, inclusive para dar coesão ao elenco heterogêneo. Ele está 90% das cenas e tinha de trabalhar com um personagem que não age, que está a reboque das coisas, que tem uma dificuldade brutal de visão, no sentido de analisar as coisas que acontecem em volta. O Rodrigo teve de trabalhar com pouco, entender como conferir nuances a partir disso. Foi bem interessante a maneira como ele se entregou. A câmera pôde chegar perto e capturar as minúcias. Na TV, Rodrigo sempre aparece como galã e ali eu queria “entortar a coluna” dele, mostrar uma exaustão visível fisicamente. Ele teve de buscar esse lugar, tecnicamente, de vários modos.
A Maria Luísa Mendonça disse que a ela chamou a atenção o seu cuidado com a direção de arte. Para você é essencial essa obsessão pelos detalhes?
Isso vem um pouco do meu trabalho de montador, em que busco as diferenças mínimas. Isso é uma deformação profissional, que serviu muito para esse filme. Desejava que ele fosse como um teorema. O longa-metragem deveria mostrar a vida que o protagonista gostaria de ter. O Olho e a Faca foi feito mais ou menos como o Alfred Hitchcock filmava, esse era o ideal que persegui. Fiz o filme de maneira meio maníaca, sobretudo quanto aos atores e às locações. Aquela casa vazia, por exemplo, para mim é um personagem ativo. Talvez isso tenha chamado a atenção dela, porque não é algo muito comum no meio. Confesso que foi próximo do doentio (risos). Mas quero me livrar desse excesso de racionalidade, então foi uma luta também minha.
O Olho e a Faca é protagonizado por um homem, centrado num ambiente visto como masculino, em que as mulheres têm importâncias pontuais e relacionadas aos homens. Essa falta de densidade das mulheres tem a ver com a forma como o protagonista reage?
É uma das grandes questões, hoje em dia, essa da visibilidade feminina. O filme é um pouco antiquado de certa maneira, feito de acordo com um cinema que aprendi a gostar, o autoral, fora do mercado. O empoderamento feminino é certamente uma das grandes mobilizações atuais, assim como tudo que concerne aos LGBT e negros. São coisas prementes. Desde o início sabíamos que íamos tomar porrada, exatamente porque não focaríamos nada disso. Estou totalmente alinhado com essas lutas, mas não podemos transformar isso em camisa de força, em algo que impeça a gente de contar certas histórias. A diversidade também passa por aí. Como você falou, o universo do protagonista é masculino, ele foi criado dentro disso. Para mim foi um luxo ter Maria Luísa Mendonça, Esther Góes e Débora Nascimento como as mulheres da vida do protagonista. Elas se impõem pela ausência. Tínhamos mais cenas das três, porém na montagem entendemos que deveríamos transformá-las em ausência, ainda que isso desagrade. Acho que o filme frustra, mesmo, certas expectativas.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Rio/São Paulo, em junho de 2019)