Nascida no interior da França em 1979, Clotilde Hesme é um dos grandes nomes do atual cinema francês. Atriz, assim como suas duas irmãs, estudou no Conservatório Nacional Superior de Artes Dramáticas e iniciou sua carreira no teatro, para logo em seguida fazer as primeiras aparições na tela grande. Depois de atuar sob o comando de Philippe Garrel em Amantes Constantes (2005), voltou a fazer par com Louis Garrel em Canções de Amor (2007), que lhe rendeu uma indicação ao César. A sonhada estatueta, no entanto, viria pouco tempo depois, pelo drama Angèle et Tony (2010) – infelizmente, ainda inédito por aqui. Mas os interessados em conhecer mais sobre o trabalho dela podem acompanhar suas performances em obras diversas, como o cultuado Mistérios de Lisboa (2010), a cinebiografia Chocolate (2016) ou o recente O Poder de Diane (2017), que a trouxe ao Rio de Janeiro no início deste ano. O filme, que agora chega às telas nacionais no circuito comercial, é a história de uma mulher que aceita servir de barriga de aluguel para um casal de amigos gays, mesmo não estando preparada para o que iria lhe acontecer nos meses seguintes. Aproveitando a ocasião, o Papo de Cinema conversou com exclusividade com a atriz, que falou sobre o projeto e sobre sua preocupação com o atual estado do mundo – e do Brasil em particular. Confira!
Olá, Clotilde. Obrigado por falar conosco. Bom, quando você foi convidada para viver a Diane, qual foi a primeira coisa que lhe veio à mente?
Antes de mais nada, eu que agradeço por essa oportunidade. Fico feliz que tenham visto ao nosso pequeno filme, e gostado. Bom, o que me atraiu nesse filme é porque se tratava de um delicado retrato de uma mulher. Foi o que me chamou a atenção ao ler o roteiro, e o que me motivou a participar do projeto. Penso que é importante contar a história de uma mulher que decide o que quer sobre o seu corpo e sobre o seu modo de vida. Ela é dona do nariz, toma suas decisões e aprende a lidar com as consequências delas. Isso é muito interessante. E achei curioso também que, mesmo sendo tão feminino esse olhar, quem estava atrás das câmeras, na direção, era um homem. Fabien Gorgeart é um amigo querido, inclusive havíamos feito juntos um curta-metragem antes – Um Chien de ma Chienne (2013) – e fiquei muito feliz com o convite. Ele é um artista muito feminista em suas posições, preocupado com as mulheres, e esse olhar sobre a liberdade feminina que estava propondo em O Poder de Diane definitivamente vinha de encontro com o que acredito.
Em português, o filme foi batizado de O Poder de Diane. O que você acha disso? E qual a sua interpretação para o título original, “Diane tem Ombros”?
É um bom título, esse adotado no Brasil. Ainda mais nos tempos de hoje, em que a questão do empoderamento feminino se faz tão urgente e necessária. Afinal, temos que defender cada vez mais os direitos das mulheres e as reivindicações das minorias. “Diana tem ombros” é uma expressão bastante comum aqui na França, que significa que você é forte o bastante para fazer determinada coisa. Ou seja, que a pessoa tem condições de encarar tal desafio. No filme, Diana não tem desejo de ter um filho, mas ela tem a habilidade para isso. Ela pode, mas não por ser a melhor para isso, apenas porque lhe é possível. Ela pensa que terá ombros para lidar com tudo que virá no decorrer dessa decisão. É importante também que não é dito que o que ela faz é bom ou ruim, não há julgamento. É apenas algo que aconteceu. Hoje em dia, conhecemos muitas pessoas que querem ter filhos, e por não conseguirem precisam recorrer a outros métodos. Nosso filme apenas oferece um exemplo dessa situação. Não estamos levantando um manifesto, não dizemos que é algo que precisa ser copiado. Apenas estamos narrando algo que existe.
Falando em ombros, esse filme deve ter lhe exigido muito também fisicamente. Como foi essa preparação?
Sim, é um filme que me exigiu muito, com certeza. As cenas do deslocamento do ombro, particularmente, foram até engraçadas, porque aquilo é puro fingimento – são os nossos efeitos especiais, posso dizer. Mas o filme todo me cobrou uma entrega muito maior do que estou acostumada, e isso acabou sendo bom para mim. Preciso dizer que não sou uma atriz interna, que traz de dentro a atuação. Preciso de cenas assim, de ir compondo o personagem com elementos que vou agregando externamente. Fazer essa história foi como estar em um filme do Bruce Willis (risos), só que como uma mãe de aluguel. Afinal, a Diana é como ele, tem uma missão e precisa levá-la até o fim, mesmo que aquilo acabe cobrando um preço alto demais no processo. Não dá pra separar, no processo, o que se passa por fora e por dentro. Corpo e espírito são uma coisa só. Foi como sentir uma vertigem, de embarcar numa jornada sem volta.
Ainda na questão dos desafios, a última cena, no carro, parece ter sido uma das mais difíceis, não?
Com certeza foi a mais difícil. Ao mesmo tempo, no entanto, foi também a mais fácil. É complicado explicar, mas vamos lá. É uma cena que me exigiu muita concentração, foi, realmente, um grande desafio. Tanto que pedi que toda a equipe saísse do set, ou ficasse fora do meu campo de visão. Precisava me sentir sozinha ali. Apenas eu e o diretor, que estava exatamente na minha frente, abaixado. Em alguns momentos, chego a colocar a mão na boca, que é para poder conversar com ele. Por outro lado, era um momento de se deixar levar, de entrega absoluta. Então, foi só deixar aquele sentimento fluir por mim. Não dá para fingir que você é a pessoa mais forte do mundo o tempo todo. Me senti muito próxima da personagem naquela sequência. Apenas deixei a vontade que já estava em mim tomar conta. Outra coisa que colaborou é que foi uma das últimas cenas que filmamos. Então, foi como um pequeno milagre. Estava tão abandonada, pronta para dizer adeus, que o sentimento coube perfeitamente ao que estavam esperando de mim. Filmamos apenas dois ou três takes, e acredito que o diretor tenha usado o primeiro, na verdade. Sem cortes, sem maquiagem, exatamente como aconteceu.
Você veio ao Brasil para o Festival de Cinema Francês, no início desse ano. Foi sua primeira vez por aqui? Quais foram suas percepções?
Na verdade, estive no Brasil pela primeira vez há uns dez anos, quando fui lançar o Canções de Amor (2007), que é um filme que adoro. Tanto naquela vez quanto agora, o que sinto quando estou aí é que é um lugar de muito amor. A diferença, dessa vez, é que senti também muito medo, como se fosse algo perceptível no ar. Estamos passando por momentos muito estranhos e difíceis. Todos os meus pensamentos e sentimentos estão com vocês, brasileiros, nesse momento. Com Bolsonaro e o que ele representa, tudo o que está acontecendo por aí, é muito preocupante. O mundo inteiro está de olho, de forma atenta, tensa. Isso, no entanto, não é algo isolado. Por todos os lugares, com Donald Trumps e Vladimir Putins tomando o poder e as minorias sendo esmagadas. Esse tipo de homem branco que não se importa com as mulheres, com os negros, com os homossexuais. Eles não possuem programas de governo, apenas ameaças. No entanto, consigo entender esse voto de protesto. Porém, não é fragilizando a democracia que as coisas irão melhorar. Esse tipo de político lida com o ódio aos direitos humanos, é contra a criatividade artística, busca abafar todas as manifestações. Corta tudo que é importante e essencial. Na França, por exemplo, ontem mesmo um diretor de uma organização que luta contra a homofobia foi agredido de forma muito violenta. Esse tipo de ataque não é muito comum por aqui, mas estão começando a aparecer. Sentimos que o mundo inteiro está regredindo, é muito assustador.
E cinema brasileiro, conhece?
Muito pouco, preciso confessar. Creio que o último filme brasileiro a que assisti foi Aquarius (2016), que é belíssimo. Foi uma história que mexeu muito comigo. Há pouco tempo, no ano passado, se não me engano, passou por aqui outra produção brasileira, que foi exibida nos cinemas com bastante sucesso, chamada Gabriel e a Montanha (2017). Ouvi falar coisas maravilhosas a respeito, mas, infelizmente, acabei perdendo. Vou correr atrás, pois fiquei bastante curiosa. Mas é fato, preciso ver mais filmes brasileiros, com certeza.
Vincent Cassel é um ator francês que tem atuado muito no Brasil. Gostaria de seguir o exemplo dele?
Puxa, adoraria. Vincent Cassel é um exemplo no mundo todo (risos). É um ator muito bem-sucedido na França, em Hollywood, e ele possui um carinho muito grande pelo Brasil, que é bastante inspirador. Com certeza, se recebesse um convite, iria com prazer trabalhar com vocês. Ainda mais num momento como esse que estamos vivendo. Estou lutando com vocês, estamos todos no mesmo barco, temos que resistir juntos. Pode confiar em mim!
Há um forte debate sobre o feminismo ao redor do mundo, com muitas reações controversas. O Poder de Diane é um filme absolutamente feminino. Como foi o lançamento na França? E como você espera esse debate repercuta no Brasil?
A passagem do filme pelos cinemas franceses foi ótima. Foi muito importante mostrar na tela grande que há espaço para diferentes relações e formas de amor. É diferente dar de receber amor, e creio que o filme é sobre isso. Uma pessoa como Diane se tornar mãe é também uma luta contra o patriarcado, ao colocar em evidência que esta não é a única forma possível de se viver. Foi uma experiência incrível, principalmente porque não é apenas do ponto de vista social que estamos fazendo diferença. Afinal, esta é uma comédia, que traz algo novo, engraçado. Dá para pensar a respeito, e se divertir. Não queríamos que fosse apenas uma lição de moral, mas também que significasse um bom momento de prazer. Acho que os franceses pegaram isso que tentamos transmitir, e tenho certeza que o mesmo irá ocorrer no Brasil.
(Entrevista feita por telefone na conexão Brasil / França em outubro de 2018)
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