Grosso modo, o Brasil está dividido entre “coxinhas” e “petralhas”, lados ideológica e politicamente opostos. O processo de impeachment da agora ex-presidenta Dilma Rousseff tratou de alargar ainda mais esse considerável abismo, sendo pauta de acalorados debates cotidianos. A cineasta Maria Augusta Ramos lançou O Processo (2018) no Festival de Berlim, chamando atenção internacional. De lá para cá, seu documentário, que visa desnudar os mecanismos de um golpe disferido contra a petista Dilma, cujo desfecho foi seu impedimento por suposta corrupção (as “pedaladas” fiscais), ganhou diversos prêmios em eventos mundo afora. Normal que agora desembarque no circuito nacional – após sessões especiais e de pré-estreia absolutamente lotadas, diga-se de passagem – repleto de expectativa, de ambas as partes. Muitos já o amam ou o odeiam antecipadamente, não lhe dando sequer a chance de ser analisado do ponto de vista cinematográfico. “Petralhas” tendem a gostar; “coxinhas”, provavelmente, a odiar. Vivemos numa sociedade inclinada às polarizações, às sentenças repletas de retórica e esvaziadas de conteúdo, em semelhantes medida. Na contramão dessa tendência nefasta, Maria Augusta Ramos investiga os bastidores do impeachment para compreendê-los. Ela gentilmente nos atendeu para este Papo de Cinema por telefone. Confira:
Em que momento do processo do impeachment você decidiu fazer um filme?
Não foi propriamente uma decisão. Foi quase uma imposição da realidade. Senti a necessidade profunda de entender o que se passava no país, de compreender como se daria aquele processo de impeachment, a partir tanto dos prós quanto dos contras. Somente uma visão era claramente divulgada pela grande mídia. Queria saber, chegar à essência dos andamentos e meandros, ajudar o publico leigo, do qual faço parte, perdido com todo aquele “jurisdiquês”. Era necessário ter ferramentas para chegar às nossas próprias conclusões. Antes de qualquer coisa, desejava compreender. Aliás, por isso faço cinema, abordando temas que me angustiam e instigam. Por isso fui a Brasília.
Embora como documentarista não tenha qualquer obrigação de “ouvir o outro lado”, você tentou contato com os pró-impeachment?
Conversei com essa galera. Acredito que o filme contemple os argumentos da direita. Há espaço para a Janaína Paschoal e vários parlamentares abertamente favoráveis ao impeachment. Eles expressam seus pontos de vista, e tive o cuidado de registra-los de maneira respeitosa, para que seus argumentos fossem realmente ouvidos. Mas, de fato, não tive acesso aos bastidores da acusação, infelizmente. Cheguei a solicitar, mas não tive.
O Processo ganhou alguns prêmios internacionais. Como os estrangeiros têm visto o filme, bem como a realidade que ele retrata, referente à nossa crise política?
Esses prêmios mostram um reconhecimento enquanto cinema. Em nenhum desses juris havia brasileiros. As reações têm sido positivas, apesar do filme ser doloroso. Quanto ao público internacional, ele fica extremamente surpreso, porque pouquíssimas pessoas de fora têm noção do que aconteceu. A mídia estrangeira, com algumas exceções, reduziu tudo ao argumento pró-impeachment, propagando que a presidenta Dilma foi afastada por corrupção. Então, os de fora ficam estupefatos, além de tocados e comovidos. Isso, também, porque o filme surge num momento de desafios globais à soberania da democracia, além de uma escalada dessa teatralização da política, do descrédito da classe e da ascensão do neoliberalismo radical. Então, de certa forma, o filme lida com questões universais.
Era mais irresistível ou inevitável retratar Janaína Paschoal como uma figura, no mínimo, risível?
Primeiro, acredito que não a retratei de forma risível. Ela foi encarada da mesma maneira que os outros, com profundo respeito. Agora, ela é quem ela é. Sua opinião se encontra plenamente contemplada no filme. Ela foi filmada dentro do contexto do Senado. De maneira alguma minha intenção era fazer da Janaína uma figura risível. Todavia, as pessoas que discordam dos argumentos dela podem ser muitos críticos à sua persona, ao seu comportamento. Mas, repito, não houve intenção, nem na filmagem, tampouco na montagem, de ridiculariza-la.
Como foi seu trabalho com a montadora Karen Akerman?
A minha relação com a Karen vem de vários anos. Ela editou Morro dos Prazeres (2013) e Futuro Junho (2015). Temos uma relação muito próxima. Nosso processo é conjunto, o tempo todo. Revemos grande parte do material, o analisamos, discutimos acerca dele e, por fim, escolhemos. Acompanho isso bem de perto. Sou o primeiro público do filme e ela, por sua vez, é meu primeiro público. Temos uma importante dinâmica de discussão e reflexão. Isso é essencial para mim. Como diretora, tenho bem clara a minha proposta de cinema, que a Karen admira. Falamos a mesma língua. Tínhamos um material muito denso nas mãos aqui.
Que tipo de contribuição você pretendia dar à discussão política que tomou o Brasil nos últimos anos?
Minha visão de tudo isso está condensada nos 137 minutos do filme. É muito difícil, para mim, reduzir o que sinto e vivi em duas ou três linhas, mas o longa-metragem expressa bem isso. Meu sentimento principal é o de tristeza. Essa polarização é algo absolutamente ruim. Estamos andando para trás, vivendo retrocessos grandes, vide a demonização da esquerda, esse ódio crescente. Tudo isso me entristece profundamente. Espero que, como nação, consigamos logo dar a volta por cima.
Você chegou a conversar com outros cineastas que estão fazendo filmes sobre o golpe, como a Petra Costa, por exemplo?
Conversei com eles. Por exemplo, me encontrei várias vezes com a Petra. O impeachment é um tema que pode ser abordado de várias maneiras, por diversos ângulos. Enquanto esse processo politico ocorria no Senado, havia toda sorte de movimentos acontecendo, vide as ocupações das escolas pelos secundaristas. Se lembra disso? Acho que a gente pode debater o tema de múltiplas formas. Espero que esses filmes sejam exibidos o mais rápido possível.
(Entrevista concedida por telefone, direto do Rio de Janeiro, em maio de 2018)
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