Produtora com mais de uma década de atividade no cinema italiano, Ginevra Elkann começou seu envolvimento com a arte cinematográfica há ainda mais tempo, quando foi chamada para trabalhar ao lado de mestres como Bernardo Bertolucci (foi diretora assistente de Assédio, 1998) e Anthony Minghella (fez o vídeo assist de O Talentoso Ripley, 1999). Com os dois aprofundou sua paixão pela direção, mas a estreia como realizadora se deu apenas duas décadas depois, com o drama familiar O Sonho de uma Família (2019), lançado no Brasil diretamente pela plataforma Cinema Virtual, uma excelente iniciativa que tem mantido o interesse do público sobre filmes inéditos enquanto as salas de cinema permanecem fechadas durante a quarentena em função da pandemia de Covid-19. Aproveitando essa estreia, fomos conversar com a cineasta, que falou mais sobre o projeto. Confira!
Olá, Ginevra. Este é o teu primeiro longa. Como surgiu a ideia do argumento?
Sempre quis fazer um filme, era um sonho antigo que agora, felizmente, consegui realizar. Levou algum tempo, talvez mais do que o que eu havia programado inicialmente, mas acho também que veio no momento certo. E não foi período desperdiçado, de forma alguma. Nestes últimos anos, além do meu trabalho como produtora, também estive observando muito como meus colegas se portam no set, e aprendi com todos eles. Também estive falando com uma amiga, a Chiara Barzini, que assina como co-roteirista. Foram nessas conversar que consegui descrever coisas da minha família, o processo de divórcio dos meus pais, e com através disso fui elaborando melhor aquilo que já estava dentro de mim. O filme não é assumidamente autobiográfico, mas tem muito de mim nele. Como esse feriado com amigos, que também tinham filhos, isso foi algo que também vivi. Queria fazer um filme sobre isso, sobre as relações entre pais e filhos, e também sobre a ideia de uma família. É sobre isso que o filme trata.
No Brasil, Magari recebeu o título de O Sonho de uma Família. Queria que você comentasse essa escolha.
Magari é uma palavra com muitos significados para mim, tenho um carinho especial por ela, e era importante para mim tê-la no título. Acredito que seja um termo muito forte em italiano, pois significa talvez, mas também carrega uma dose de nostalgia, de sonho, sobre todas as possibilidades que poderiam ter se concretizado, mas acabaram ficando pelo caminho. Acho que o título brasileiro é sobre esse sonho da Alma, a caçula dos irmãos que deseja ter sua família de volta. Entendo que é muito complexo e não teria como traduzir tudo que tentei expressar em apenas uma palavra, mas acho que ficou bastante próximo. Quando me disseram o título em português, fiquei bastante satisfeita.
Por que escolher uma criança como o ponto de vista da narrativa?
Porque o filme parte das minhas memórias. Esse foi o ponto de partida, ainda que, reforçando o que disse antes, não se trata de uma história autobiográfica. Meus pais realmente se divorciaram quando eu era muito pequena, e tinha esse sonho, ainda que inconsciente, que eles voltassem a ficar juntos. Havia essa esperança em mim de que era só um momento passageiro, e que tudo acabaria se ajeitando – o que de fato aconteceu, mas não da forma como esperava. Dessa lembrança de como o movimento dos meus pais havia me afetado veio o interesse no ponto de vista dessa criança que sonha com isso, que se dedica a essa mudança, que acredita que ainda há pelo que torcer em relação à união dos pais, por mais que não houvesse mais nada entre eles. Pelo que ela torcia? O que esperava com cada uma das suas rezas? E, acima de tudo, como lidava com a situação familiar que afetava não apenas ela, mas também seus irmãos.
Interessante pois, quando se fala em dramas familiares, geralmente se assume o olhar da mãe. Você, no entanto, mesmo sendo mulher, se interessou mais no lado paterno. Por quê?
Era uma questão muito prática: se as crianças fossem passar um feriado com a mãe, com certeza ela saberia o que fazer com os filhos. Afinal, na maioria dos casais ainda hoje são elas que assumem a maior parte das responsabilidades nos cuidados mais práticos, digamos assim. Quando o casal está junto, é ela quem irá cuidar mais dos filhos. No entanto, quando os pais estão separados, o pai precisa assumir mais responsabilidades, tem um mundo de possibilidades que se abre diante desse mundo que é novo para ele. Ele acaba sendo o centro das atenções, tanto para os pequenos, mas também em relação à falta de tato dele em lidar com tudo aquilo. Foi isso que despertou minha atenção, o desenvolvimento dessa relação. Ele precisa crescer, e amadurecer enquanto homem e como pai. É a pessoa que mais irá sofrer transformações. Não tem mais ninguém a quem recorrer. Era preciso colocar tudo nessa zona não tão confortável.
Como foi o trabalho com Riccardo Scamarcio? Ele foi o primeiro a ser pensado para o papel?
Não foi o primeiro ator que pensei para fazer o pai, mas fiquei muito feliz quando ele aceitou nosso convite. Na verdade, o Scamarcio está sempre no radar de qualquer cineasta italiano, pois ele é um dos nossos melhores atores em atividades – e, talvez por isso mesmo, também um dos mais disputados. Nunca imaginei que ele fosse se interessar por esse meu projeto, que parecia tão pequeno enquanto estava escrevendo. No entanto, ele gostou muito do que leu e quis participar. Trabalhamos muito bem juntos. Ele é muito generoso, seja com os outros atores, alguns não tão experientes quanto ele, e também com as crianças, estava sempre presente e se portou como um pai de verdade. Foi muito curioso observar esse outro lado dele, que confesso que desconhecia. O engraçado é que trouxe ao filme uma outra dimensão, principalmente para o lado cômico – ele é muito bom em comédia, e não sei se todo mundo tem ciência disso. Nós dois crescemos no mesmo ano, em 1979, e temos lembranças muito próximas. A liberdade daqueles anos, como se portar em família, o que era permitido e o que só foi ser problematizado muito tempo depois. Tudo que ele ia trazendo ao filme me soava muito familiar.
O filme é interessante também por oferecer um vislumbre dos bastidores do mundo do cinema, uma vez que o pai é um roteirista. E você também é roteirista. O quanto de você está no filme?
Um pouco, é claro, e também nessa questão. Mas que fique claro: não sou o Carlo. Acho graça quando ele diz que está escrevendo seu segundo filme, e era importante para mim discutir isso, pois geralmente esse é o mais difícil a ser feito. E é exatamente onde estou agora, após O Sonho de uma Família. Quando você estreia, coloca tudo de si naquele primeiro projeto, pois quer chamar atenção, torce para que as pessoas vejam e comentem. É um tudo ou nada. Quando dá certo e te convidam para um segundo longa, às vezes com mais recursos e contatos, surge a grande dúvida: se já disse tudo o que havia a ser dito antes, o que irei falar agora? Há um pouco de mim em todos os personagens, posso afirmar com certeza. Ofereci um pouco da minha visão a todos eles.
A religião está presente na narrativa. Você é uma pessoa religiosa? O que a motivou a incorporar esse elemento ao filme?
Não sou uma pessoa muito religiosa, confesso. Mas cresci numa casa que considerava essa questão fundamental, meus pais, tios e avós eram todos bastante ligados à religião católica. De uma forma ou de outra, isso está comigo até hoje. Por isso essa questão, enquanto elemento narrativo, despertou o meu interesse. Como cada criança se relacionava com essa questão. Como seguiam as regras, e o que acontecia com eles a partir desse diálogo. Alma tem um modo muito livre de lidar com o Deus. O vocabulário dela é absolutamente pessoal, particular, o que revela essa proximidade e o quanto isso diz respeito apenas entre ela e sua crença. Não posso dizer que seja algo do meu dia a dia hoje, não costumo frequentar igrejas, mas enquanto assunto é uma perspectiva que me interessa, mais pelo lado cultural do que espiritual.
Você conhece o cinema brasileiro? Como acredita que O Sonho de uma Família irá se comunicar com o público daqui?
Você não vai acreditar, mas vivi no Rio de Janeiro quando criança, aos 5 anos. Minha mãe conheceu seu segundo marido logo após se divorciar, quando eu era ainda muito pequena, e o meu padrasto vivia no Brasil. Morei no Brasil por cinco anos, e é uma época da minha vida muito especial, que guardo boas lembranças até hoje. Voltei algum tempo depois, já adulta, e o teu país é muito importante pra mim, especialmente a comida. (falando em português) Farofa, brigadeiro, tudo isso. Amo demais (risos). (de volta em italiano) E cinema brasileiro sempre me interessou, por mais que as ofertas aqui na Itália não sejam muitas. Posso dizer que o Brasil é um país muito próximo do meu coração. Infelizmente, não consegui ir aí para o lançamento do filme, mas passamos por vários lugares. Este é um filme sobre família, e todo mundo tem a sua. Em geral, fala com todo mundo. Não acho que seja, particularmente, apenas sobre a Itália. É uma linguagem universal. Sobre emoções. Espero que o as pessoas também consigam se conectar.
(Entrevista feita por Skype entre Brasil e Itália em junho de 2020)