Um dos maiores talentos do cinema nacional, Matheus Nachtergaele estreou na tela grande com o pé direito, ao aparecer em O Que É Isso, Companheiro? (1997), thriller político de Bruno Barreto indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Após marcar presença também em outras duas produções brasileiras indicadas ao maior prêmio do cinema mundial – Central do Brasil (1998) e Cidade de Deus (2002) – ele chega agora ao seu trigésimo longa-metragem, apropriadamente batizado de Trinta! E a cinebiografia do carnavalesco Joãosinho Trinta é o seu segundo projeto de 2014, após ter participado do premiado Sangue Azul, escolhido como Melhor Filme do Festival do Rio. E foi sobre estes projetos que o ator conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Como você recebeu o convite para interpretar Joãosinho Trinta no cinema? Qual foi sua primeira reação?
Disse “sim” de imediato, sem pensar duas vezes. Fiquei muito empolgado por terem pensado em mim. Só depois percebi a encrenca na qual havia me metido. Afinal, estávamos falando de um dos maiores artistas deste país. Mas essa consciência me surgiu a partir do momento em que comecei a estudar a vida dele. Sempre assisti aos desfiles do Joãosinho com muita atenção, era algo que me atraía visualmente, mas nunca fui um fanático pelo assunto. Mas aos poucos, ao ir descobrindo os detalhes da vida dele, quem era aquela pessoa e o que ele representava. Aí que tive, realmente, noção da sua importância. Então, num primeiro momento, fiquei empolgado, depois preocupado, e por fim muito honrado. Conheci o Joãosinho, fui conversar com ele e falar sobre o projeto. Ele era muito entusiasmado, e ficou feliz em saber que seria eu o ator a interpretá-lo. E logo em seguida ele morreu. O filme se tornou uma grande honra, a primeira homenagem do cinema brasileiro ao Joãosinho Trinta.
Sua maior preocupação em Trinta era recriar o mesmo Joãosinho que as pessoas lembram ou criar o seu próprio personagem?
Não fiquei preocupado em imitá-lo. É claro que existe um olhar, o fato dele ter sido bailarino clássico afetou a interpretação de um jeito ou de outro. Ele eera muito conhecido por ser uma pessoa enérgica, de temperamento explosivo nos bastidores, e essas eram as pistas pelas quais pude me guiar. Mas não quis nunca fazer uma caricatura. O Joãosinho que interpreto vem antes da persona pública que todo mundo conheceu, então isso me deu certa liberdade em interpretá-lo. E tem também a questão física, fiz permanente no cabelo, escureci um pouco o pele, toda uma preparação física para o personagem. Mas minha maior preocupação sempre foi impedir que a minha personalidade fosse mais forte que a dele.
Três dos seus primeiros filmes foram indicados ao Oscar. Você nunca pensou em seguir a carreira internacional?
Não. Fiz alguns trabalhos de diretores estrangeiros, mas foram eles que vieram filmar no Brasil. Nunca investi nisso com empenho. Tiveram outros convites, como por exemplo o Trash: A Esperança Vem do Lixo (2014), que me chamaram para fazer, mas eram momentos em que estava fazendo outras coisas. Não foi uma prioridade. Sempre tive a sensação de ter tido trabalhos muito bonitos por aqui. Mas pode acontecer. Sou fluente em francês, em inglês, então é sempre uma possibilidade. Quem sabe?
Você já filmou do Rio Grande do Sul ao Nordeste. Qual o apelo da história de Joãosinho Trinta para os brasileiros além dos cariocas e apaixonados por carnaval?
É uma trajetória muito bonita. Acho que, basicamente, é a história exemplar de um brasileiro muito simples, em um país muito injusto, que por vontade própria não só conseguiu adquirir muita cultura, se inserir no mundo da arte erudita, e ainda assim se voltar para a arte popular. Foi um cara que veio do Maranhão, nascido de uma família bem humilde, um nordestino que se mudou para o Rio de Janeiro com o sonho de ser bailarino clássico, e aos poucos foi se direcionando para a manifestação artística mais popular do país. O mais bonito é que tudo que ele havia aprendido foi usado também para enriquecer o Carnaval. É isso que emociona todo mundo. A força que ele trazia, a ética do seu trabalho. Sem se importar com todos os tipos de dificuldades, nunca aceitou se conformar com nenhum tipo de mediocridade. É uma obra muito bonita.
Outro longa seu de sucesso que deve chegar às telas em breve é Sangue Azul (2014), vencedor do Festival do Rio. Como foi participar desse projeto e filmar em Fernando de Noronha?
Ah, o (diretor) Lírio Ferreira é um amigo, antes de qualquer coisa. Foi uma honra ter sido chamado para fazer esse trabalho. Já havia feito o outro filme dele, Árido Movie (2005), e é sempre uma alegria trabalhar com quem temos uma enorme simpatia, além de ser um grande cineasta. Fora o fato de poder filmar em Fernando de Noronha, que é, realmente, um diferencial. O lugar é um paraíso! Por fim, havia a questão de me aproximar da história da minha própria família. Eu interpreto no filme um atirador de facas belga, canto canções da minha infância, deu pra lembrar das histórias que os meus avós me contavam. Tudo muito prazeroso. O processo do Sangue Azul foi uma delícia. Difícil, mesmo, foi aprender a atirar facas, pois não é nada fácil! Mas consegui. A estreia está marcada para o ano que vem, por enquanto tem ido bem nos festivais, com uma carreira bonita. É um filme de arte que engrandece os olhos de quem o assiste. Admiro muito o Lírio por ter conseguido fazer um filme como esse, exatamente do jeito que ele queria.
De todos os seus trabalhos no cinema, de qual você guarda as melhores lembranças?
Todos, cada um a seu modo. É um pouco difícil escolher apenas um. Todos vieram no seu tempo, e de alguma forma deixaram sua marca comigo. Parece que existe uma conspiração cósmica para que acabem funcionando num nível ou noutro. Há aqueles trabalhos em que a sintonia do personagem com o público acaba sendo maior, como no O Auto da Compadecida (2000), que foi um sucesso que ninguém esperava. O mesmo se dá fortemente nos filmes do Claudio Assis, que mesmo não sendo muito comerciais, provocam grande impacto. Tem um filme que fiz com o Walter Salles, chamado O Primeiro Dia (1998), que amo muito, é um dos que mais gosto! É um dos meus trabalhos prediletos, mas foi pouco visto, pois saiu logo após o Central do Brasil (1998), que estava indo para o Oscar, só se falava nele, e no meio desse turbilhão veio a gente estreando esse outro filme que fez pouco barulho, mas que adoro. Outro que não posso deixar de citar foi o Cidade de Deus (2002), muito marcante tanto para o cinema brasileiro quanto no mundo todo. E o processo dele foi muito bonito, só o fato de eu conseguir existir no meio de tantos não-atores, com aquela estética completamente diferenciada. Uma trajetória repleta de momento muito bonitos.
O que mais lhe atrai na hora de escolher cada novo trabalho?
O que me leva a escolher um filme ou outro? São tantas coisas, mas acho que o fundamental é entender e se identificar com a vocação do projeto, pra que ele está sendo feito. Isso é o que mais me atrai. Isso é possível perceber com bastante clareza com o Trinta. Tenho visto, nas sessões de pré-estreia, as pessoas muito comovidas, agradecidas por termos levado essa história até elas. São as emoção trazidas pelo filme que vão te marcando de um jeito ou de outro.
(Entrevista feita no Rio de Janeiro no dia 11 de novembro de 2014)
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