No imaginário popular, Casanova foi um grande conquistador a quem ninguém resistia, capaz de sair com diversas mulheres na mesma noite. Para o diretor Benoît Jacquot, pesquisador do personagem e acostumado aos filmes de época, esta imagem está muito distante da verdade. O veterano francês oferece em O Último Amor de Casanova (2019) uma história real e pouco conhecida: a única vez em que o personagem se apaixonou, como ele mesmo afirma em seus diários.
Casanova (Vincent Lindon) conheceu uma jovem prostituta, conhecida como La Charpillon (Stacy Martin), e imediatamente se interessou pela mulher que todos já tinham frequentado. No entanto, a garota recusava os flertes deste homem mais velho, o que levou a uma longa relação de manipulação e poder entre os dois libertinos. Jacquot sublinha que este fracasso amoroso, quando Casanova já tinha quase 50 anos, o levou a pensar no suicídio. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o diretor sobre o filme, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, dia 26:
Vincent Lindon se ofereceu para o papel. Como isso ocorreu, e por que acreditou que ele seria a escolha certa para Casanova?
Na verdade, eu não tinha pensado nele para esse papel, de modo algum, mesmo já tendo feito alguns filmes com ele. A ideia nunca teria passado pela minha cabeça se Vincent não tivesse descoberto que eu estava preparando um projeto sobre a vida de Casanova, e tivesse se oferecido de maneira obsessiva. Um dia, ele entrou no meu escritório de manhã e declarou que, se ele não fosse Casanova, o filme não aconteceria! Então posso dizer que ele não me deixou dizer não! Esta maneira única de se apropriar do personagem pode ter me parecido preocupante a princípio, mas eu conheço bem Vincent, e sei lidar com ele. Ao mesmo tempo, esta impulsividade me parecia muito própria de Casanova. Ele queria algo com tanta intensidade que estava disposto a fazer de tudo para conquistá-lo, mesmo que de maneira pouco habitual. Eu inclusive cogitava me dedicar a outros momentos da vida de Casanova para o filme, com outros atores. Mas no final, foi Vincent.
Casanova já foi retratado diversas vezes no cinema e na televisão. O que o projeto trazia de diferente em relação a estas versões?
Aproveitando do fato que Vincent se impôs ao filme, eu descartei a possibilidade de retratar algum episódio da juventude de Casanova. Fiquei mais interessado em abordar o envelhecimento do personagem, em especial este momento que destoa completamente do resto da vida de Casanova. Fui muito particular, quando um fracasso amoroso completo o deixou à beira do suicídio. Isso serve de prenúncio a uma literatura que não pertencia ainda ao século XVIII, mas se tornaria o romantismo típico do século XIX.
Acredita que o amor de Casanova pela Charpillon se deva à recusa dela?
É muito difícil de dizer, porque nunca se sabe ao certo o que motiva uma pessoa a se apaixonar pela outra. Neste caso particular, a jovem mulher desperta nele algo crepuscular, sem dúvida. A princípio, acredito que, se fosse dez anos antes, ele saberia muito bem se virar, através de suas manobras habituais, para conquistá-la. Mas na idade em que ele estava, Casanova enfrentava dúvidas sobre si mesmo e sobre a imagem que projetava nas mulheres. Isso produz um efeito muito melancólico.
A diferença de idade entre os atores é surpreendente. Isso corresponde à diferença real entre Casanova e Charpillon?
Sim, era muito próximo disso. Na verdade, a Charpillon era ainda mais jovem do que Stacy Martin, que a interpreta no filme. Stacy tem 25 anos, enquanto a Charpillon tinha 18 anos. Casanova também era um pouquinho mais jovem que Vincent Lindon, mas não muito. De qualquer modo, a diferença de idade se mantém.
O mais interessante nesta relação é ver que o controle parte da mulher. Casanova não controla o jogo de sedução.
É muito difícil saber, tanto lendo o livro quanto assistindo ao filme – pelo menos, é isso que busquei fazer – se Charpillon se apaixonou por ele de verdade, ou não. Talvez ela o tenha amado de fato, e justamente por isso que ela o aprisione desta maneira, apesar de todo o sofrimento que provocou nele. Mesmo depois de todas as minhas pesquisas, os sentimentos dela por Casanova permanecem ambíguos. É isso que me interessa, afinal, uma vez que os sentimentos dele por ela são igualmente misteriosos. A cada vez que tentamos abordar com seriedade o sentimento amoroso, é esta complexidade que encontramos, na minha opinião.
Casanova costuma ser associado ao sexo, mas o filme privilegia o sofrimento amoroso.
Exato. Este é o sentimento que tenho enquanto leitor, diante dos escritos de Casanova. A maior parte do que ele escreveu está muito distante do clichê popular. Eu não o descreveria como um caçador de mulheres, no sentido que se poderia pensar em Don Juan, por exemplo. Ele considerava que o mundo pertencia sobretudo às mulheres, então cabia aos homens viver dentro dele da melhor maneira possível, reconhecendo seu papel de homem. Até por isso eu jamais poderia trazer qualquer forma de julgamento moral, nem sobre ele, nem sobre ela. Casanova descreve sua vivência no diário com uma sinceridade exemplar, e para mim, era fundamental que o filme tivesse esta mesma sinceridade.
O filme apresenta grande cuidado em reproduzir cenários, figurinos e acessórios da época. Você buscava a abordagem mais realista possível?
Não diria realista, mas queria o máximo possível trazer aquele tempo ao presente, para que se compreendesse essa sociedade do passado. Primeiro, isso passava pela luz. Nesta época, assim que caía a noite – ou mesmo durante o dia, dependendo da abertura que o cômodo tivesse à luz – não se via mais nada à frente. Com meu diretor de fotografia, eu busquei retratar a sensação do mundo pré-energia elétrica. Não se poderia sair nas ruas à noite sem correr o risco de um acidente grave. Sempre que faço um filme dito “de época”, procuro trazer este universo o mais próximo possível do presente.
Justamente, você fez diversos filmes de época. O que lhe interessa tanto nestes projetos?
Essas histórias nunca são distantes do presente para mim. Busco capturar algo que ainda interessa a todos nós hoje em dia, mas pelo viés do passado. Essa época funciona como um atalho para pensar o presente. Minhas histórias antigas são o mais presentes possível. Esse é um dos méritos do cinema: a relação quase natural entre o passado e o presente. O cinema é uma máquina do tempo, ele é ideal para se apropriar do que já passou.
A propósito desta relação entre presente e passado, de que maneira o relacionamento particular entre Casanova e Charpillon reflete as relações entre homens e mulheres atualmente?
Nos últimos dois anos, em especial, os movimentos feministas trouxeram transformações profundas na sociedade quanto aos relacionamentos entre homens e mulheres. Trata-se do que sempre chamamos da guerra dos sexos, embora os termos tenham mudado muito. Histórias como a de Casanova e Charpillon acontecem todos os dias, porém sob aspectos distintos. Hoje, as mulheres reivindicam, com razão, o direito de não se tornarem nem o objeto nem a vítima da relação amorosa.
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