“O cinema é do diretor, e a televisão é do editor. O teatro, esse sim, é do ator. Quando as cortinas se abrem, mais nada importa. O que há, ali, é apenas a relação entre o artista e o público. E essa é a melhor sensação do mundo”.
Othon Bastos está explodindo de felicidade. Aos 91 anos, tem lotado sessões com o monólogo Não Me Entrego, Não, de Flavio Marinho, em cartaz no Teatro Vanucci, no Rio de Janeiro. A peça foi feita especialmente para ele, em comemoração aos seus 70 anos de carreira.
Mas também está satisfeito por estar de volta aos cinemas, a partir do dia 24 de outubro, com o drama O Voo do Anjo, de Alberto Araújo. Este é o segundo longa do diretor que ele participa – o anterior, Vazio Coração (2013), foi lançado há mais de uma década e deu início a uma parceria que agora se repete.
“O que quero é ter a alegria de viver, e seguir vivendo assim, com realizações como essas”, sinaliza o ator.
Othon, que alegria poder conversar contigo. Imagino que esteja cansado de falar sobre isso, mas essa coincidência não pode ser ignorada. Nessa semana voltou aos cinemas, em cópia restaurada, o clássico Corisco & Dadá (1996), de Rosemberg Cariry. E agora estou aqui falando com o maior Corisco de todos os tempos. Que lembranças você tem de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964)?
(Risos) O Corisco que nós fizemos, o que criei com o Glauber Rocha, era um cangaceiro totalmente diferente daquele que costumava ser apresentado no cinema brasileiro. Aquela coisa realista, forte, de falas ensaiadas. O meu Corisco, não. Era um Corisco moderno, que pula, corre, fala. Ele não grita. Se você grita, perde a autoridade. Gandhi dizia isso. Não precisa se exaltar, basta falar ao coração da pessoa que tudo se resolve.
Depois de tantos trabalhos marcantes no cinema, agora está consolidando uma parceria com o diretor Alberto Araújo. Fale um pouco dessa relação.
Acho que esse filme representa o voo dele como poeta. Em busca do éden dele, do paraíso particular que só ele sabe qual é. O protagonista do filme é o Emilio Orciollo Netto. Tudo é em torno da tragédia que aconteceu com o personagem dele.
Entro no filme como uma pessoa que passa por você, que cruza pela vida dele para provocar uma transformação. Por meio desse contato, as pessoas vão se tornando conhecidas e amigas. É sobre isso que a história se desenvolve.
Você e o Emilio Orciollo possuem uma relação antiga, com vários trabalhos em conjunto.
Tanto que ele me chama de ‘babo’, hehe. Já fizemos pai e filho várias vezes. Além disso, é um belíssimo ator jovem. É gratificante vê-lo em cena. Eu, pelo menos, tenho prazer em admirar o trabalho de um colega.
Outro dia fui assistir a um desempenho impressionante do Odilon Wagner, na peça A Última Sessão de Freud. Foi lindo. Fiquei encantado com a atuação dele, depois fui cumprimentá-lo. Estava emocionado. Conheço o Odilon há anos, e mesmo assim me surpreendeu. O palco transforma a pessoa. A minha geração está acabando, então precisamos nos agarrar nestes que ainda estão por aqui.
É verdade que você recomendou o Emilio ao diretor Alberto Araújo para estar em O Voo do Anjo? O que você viu nesse personagem que o fez lembrar dele?
Primeiro, o Alberto me procurou dizendo que estava com dificuldade para escalar o ator certo para o personagem. Nesse momento, pensei imediatamente no Emilio. “Você conhece esse rapaz? Já trabalhei várias vezes com ele, penso que pode ser uma possibilidade”, comentei com o diretor. Engraçado que sigo chamando-o de “excelente ator jovem”, mesmo ele já tendo feito mais de 50 anos. Mas, pra mim, segue sendo um garoto (risos).
Mais do que colegas, somos amigos. E isso foi suficiente para o Alberto fazer o convite para um teste, os dois se encontraram e deu tudo certo. É muito importante carregar para o filme, ou para a peça, essa amizade que você tem com quem está trabalhando. Não tem coisa melhor do que isso. Mas que fique claro: eu só indiquei, a decisão se deu entre eles. Sempre tive certeza de que ele faria muito bem esse papel.
O que te atrai diante de um novo convite, seja no cinema, teatro ou televisão?
O que desperta o meu interesse é sempre o texto. Tudo começa por ali. Depois, são as pessoas com quem irei trabalhar. Se gostar do que for ser dito, com certeza iremos conversar sobre o projeto.
São importantes essas trocas, ainda mais no cinema, porque às vezes a nossa visão é completamente diferente daquela do diretor. E quando acontece esse tipo de embate, é preciso que as coisas fiquem claras. Mas, na verdade, não chego impondo condições. Primeiro ouço, para depois poder falar.
Assim foi com todos os diretores com quem trabalhei. Com o Leon Hirszman, com quem fiz São Bernardo (1972), foi a mesma coisa. Aquela experiência foi quase como num monólogo, meu personagem está sempre sozinho, falando consigo mesmo. E foi algo que nasceu nessas trocas antes das filmagens. Acho que foi um dos mais importantes filmes que fiz, indiscutivelmente.
Por São Bernardo você ganhou o kikito no Festival de Gramado. Por Os Deuses e os Mortos (1970), recebeu o candango no Festival de Brasília. Já o Grande Otelo, da Academia Brasileira de Cinema, veio por sua atuação em Bicho de Sete Cabeças (2000). O que falta ainda?
Tudo o que ainda puder fazer. O que falta é ter condições de seguir atuando. Enquanto conseguir, lá estarei. Você chega a uma idade que sabe bem o que quer fazer, e mais importante, como fazer isso acontecer.
Por exemplo, essa peça que estou fazendo, é sem patrocinador. O diretor e o autor decidiram produzir por conta própria, de tão entusiasmados que ficaram com o projeto.
Ou seja, a gente depende da venda dos ingressos. O grande produtor é o público, que, felizmente, está respondendo à altura. Cada vez que abro a cortina e a plateia está com 300, 400 pessoas me esperando, para mim é uma experiência incomparável.
O que um filme como O Voo do Anjo tem a dizer ao público que for ao cinema?
Acho que é o contrário: o que o espectador tem a dizer do nosso filme? Aqueles que forem ver, peço que estejam de corações abertos para não apenas assistir, mas sentir o filme.
É difícil a gente prever o que o público vai achar. Em cada cena, em cada ligação, em cada personagem podem se ver e sentir emoções diferentes. Mas como não vi o filme pronto ainda, não sei o que dizer. Só fiz, não tenho a menor ideia de como ficou.
Por isso que digo: esse é o momento de cada um. A plateia olha e vê o seu filme, o impacto é direto. E este é um filme para ser descoberto. Eu sei que no dia 24 de outubro vou ao cinema mais perto aqui de casa, comprarei um ingresso e assistirei a O Voo do Anjo. E vai ser lindo!
Entrevista feita por telefone em outubro de 2024