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Os cinemas brasileiros recebem a partir desta quinta-feira, dia 3, uma mistura de drama e comédia em Onde Quer Que Você Esteja (2018), história sobre uma rádio de mesmo nome, dedicada a enviar mensagens a pessoas desaparecidas. No dia a dia das gravações, parentes, maridos e amigos buscam por uma pessoa querida enquanto fazem novas amizades. O projeto conta com um elenco impressionante: Leonardo Medeiros, Débora Duboc, Gilda Nomacce, Sabrina Greve, Samuel de Assis, Rita Batata e Samya Pascotto estão entre as figuras que circulam pela rádio enquanto têm suas histórias pessoais retratadas em meio ao caos da cidade de São Paulo.

Onde Quer Que Você Esteja é o primeiro longa-metragem da dupla Bel Bechara e Sandro Serpa, que adaptam um curta-metragem pessoal, partindo da mesma premissa. Curiosamente, eles fogem ao melodrama para investigar os momentos de leveza e humor dentro destas situações. O Papo de Cinema conversou em exclusividade com a dupla sobre o projeto:

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De onde veio o interesse de retratar a história de pessoas desaparecidas pelo ponto de vista de quem fica? Que tipo de pesquisas fizeram para o filme?
Bel Bechara: O interesse nasceu da simples leitura de uma notícia sobre uma rádio colombiana que desempenha um papel parecido com o da rádio do filme, tentando colocar pessoas em contato com entes desaparecidos através de mensagens. A partir daí a gente começou a imaginar diversas histórias dentro desse contexto. Pensamos que a história de pessoas desaparecidas traria uma mistura emocional variada: a dor, o luto, o sentimento de dúvida sobre o desaparecimento involuntário ou sobre a fuga, o dilema sobre seguir adiante ou continuar as buscas… Tudo isso faz com que as pessoas ficam ansiosas, paralisadas, numa busca que preenche a vida delas. Diferentes histórias cabem dentro desse contexto. Então fizemos o curta, que era focado numa única história, mas marcado por outras histórias citadas apenas em áudio, nos alto-falantes da rádio. Mas a gente gostava dessas histórias-satélite, e tínhamos vontade de desenvolvê-las. Como o ponto de encontro principal é a rádio, o ponto de vista acaba sendo aquele das pessoas procurando, que se reúnem no mesmo local e acabam se influenciando, se transformando, com a exceção de um dos núcleos, onde mostramos o ponto de vista da pessoa que sumiu.

 

São Paulo se torna um personagem à parte nesta história.
Sandro Serpa: Isso veio da ideia de que a solidão dos personagens poderia estar relacionada tanto a espaços lotados quanto a ambientes vazios. O turbilhão da cidade grande se torna um espaço de solidão também. Além disso, a rádio ocupa um espaço longo, divulga suas mensagens a todos os cantos, mas nem sempre chegam às pessoas que deveriam chegar. A gente queria colocar isso no filme de alguma forma.
BB: A gente não faz tanta questão de situar esta trama especificamente em São Paulo, embora haja pontos paulistanos conhecidos. O mais importante era situar a trama numa cidade grande.

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Como encontrar o tom entre humor e drama para tratar de um tema tão sério?
SS: Essa questão vem desde a passagem do curta-metragem para o longa. Quando fizemos o curta, a gente considerava que o filme era muito melancólico. Os primeiros amigos que assistiram ao curta tinham achado o curta bonito, mas muito triste. Quando o exibimos no Festival de Brasília, as pessoas riam muito, para a nossa surpresa. No início, pensamos que tínhamos errado o tom, mas depois percebemos que existia uma identificação com os personagens, o que fazia com que muitas vezes o espectador risse de si mesmo. Quando fizemos o longa, já existia a consciência deste fator, então trabalhamos o humor de modo consciente em algumas cenas. As pessoas riem, ficam tristes, têm medo em uma cena determinada… Os humanos possuem algo patético, isso é algo tipicamente humano.
BB: Os personagens levam tudo muito a sério, mas dá para perceber que existe um lado meio desajeitado, algo patético naquela busca, naquele contexto. Além disso, personagens diferentes se relacionam com aquela busca de maneiras diferentes. Alguns deles estão no rádio para resolver a própria solidão, enquanto outros acreditam seriamente que vão reencontrar as pessoas desaparecidas. Então mesclamos o sério e o patético. Em uma cena, por exemplo, o Valdir e a Lúcia acabam rindo de si mesmos, o que causa certo incômodo na rádio.

 

Vocês trabalham com um elenco impressionante em cena, juntos. Essa configuração deve ter aumentado as possibilidades de encenação.
BB: Primeiro, trabalhamos muito com os atores, discutindo cada personagem e cada situação. Depois, no estúdio existem camadas, e cada vez o nosso foco se volta a um deles. A trama precisava amadurecer para todos, inclusive para nós: esta era uma troca, uma parceria. Qual o significado da história para cada personagem, o arco dramático de cada um? Uma vez que isso era compreendido por todos, eles tinham total liberdade cênica, a atuação nunca precisava ser literal. Eles trouxeram muitas coisas novas às cenas, ainda que ficassem dentro da estrutura do texto.
SS: Em termos de produção, é importante dizer que esta é uma produção de baixo orçamento. Todo mundo foi pago, mas os valores não eram altos. Por isso, quem topou participar o fez porque gostou muito do roteiro. Como a relação com o filme não era ditada pela grana, o envolvimento é outro: as fronteiras são mais abertas entre as pessoas, e todos estavam ali para criar aquela obra juntos. Filmamos uma primeira semana em estúdio, com todos reunidos, e depois filmamos como curtas a história de cada um. Foi um verdadeiro quebra-cabeça nesta primeira semana para juntar as agendas de todos. São muitos atores, cada um envolvido em outros filmes, outras peças…
BB: É muito gostoso encher a sala com atores bons. Mesmo quando o foco está numa dupla específica, os outros estão ali no fundo interagindo, compenetrados, dentro dos personagens. Você percebe o comprometimento de cada um.
SS: Tem uma cena da Gilda Nomacce com a Sabrina Greve, fazendo barulho ao puxar um copo plástico, que foi criado ali na hora pelas duas, aquilo não existia no roteiro. Atrás da câmera, a gente se segurava para não rir. Mas é assim mesmo, a Gilda é genial.

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É curioso ter um filme sobre a empatia, sobre a união entre desconhecidos, em tempos de polaridade política e sociedade dividida.
SS: Nós conversamos muito sobre isso. Este filme parece não se encaixar na produção atual, quando você compara com títulos como Bacurau (2019) ou Divino Amor (2019). Estes dois lidam diretamente com a crise social e política que atravessamos desde 2014 ou 2015. Mas o que nós dois fazemos diz respeito à possibilidade de olhar o outro, de se entender. Talvez esta seja uma saída para o momento muito ruim em que estamos, para construir um país e uma noção de cultura, em oposição a este “governo da morte” que não constrói nada. A empatia é o caminho que temos para mudanças.
BB: Esta questão era uma preocupação nossa, mas a verdade é que nenhuma obra é apolítica. Falar de afeto e de relações humanas, de individualidades, é um posicionamento político, e muito importante nesse momento. Os afetos são atropelados hoje em dia, de modo que resgatá-los é algo importante.
SS: Além disso, existe espaço para todas essas linguagens e posicionamentos na formação de uma indústria. O nosso filme, mesmo em menor escala, terá seu espaço ao lado de um filme grande. O mais importante é não deixar a produção parar de novo. Se a Ancine se esgotar, precisaremos de mais vinte anos para reconstruir o nosso audiovisual. Temos três anos difíceis à frente, mas precisamos manter o mínimo em funcionamento para o nosso cinema não morrer. 2019 está sendo um ano excelente para os filmes brasileiros, e 2020 ainda deve ser um ano bom porque ele vai trazer a conclusão de projetos que começaram anos atrás. Mas daqui a dois ou três anos, a produção deve cair, e precisamos lutar muito para segurar essa onda.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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