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Nesta quinta-feira, dia 3, chega aos cinemas um filme destinado a levantar um tema tabu: a questão dos desaparecidos nas grandes cidades. Onde Quer Que Você Esteja (2018) é o nome da comédia dramática dirigida por Bel Bechara e Sandro Serpa, e também é o nome de uma rádio onde diversas pessoas se encontram para enviar mensagens aos maridos e filhos desaparecidos, na esperança de uma resposta.

Assim, Leonardo Medeiros, Débora Duboc, Gilda Nomacce, Sabrina Greve, Samuel de Assis frequentam este espaço, cada um carregando uma história distinta: Débora Duboc interpreta a mulher em busca do marido, Sabrina Greve vive a jovem em busca de sua babá, Gilda Nomacce encarna a mãe cuja filha fugiu de casa novamente…

O Papo de Cinema conversou com Duboc e Nomacce sobre este curioso encontro entre poesia e comentário social:

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Gilda Nomacce e Débora Duboc posam diante do cartaz de Onde Quer Que Você Esteja

Vocês tinham algum conhecimento específico sobre a questão dos desaparecidos antes deste filme? Fizeram pesquisas para abordar o tema?
Débora Duboc: Eu não tinha nenhum conhecimento, porque este é um tema sobre o qual não costumamos falar. Tem coisas que preferimos não ver, não olhar. Existe um desespero tão grande que isso aconteça com a gente que preferimos não olhar para o tema. Além disso, não existe uma política presente para buscar estas pessoas, embora a sociedade civil tenha se organizado bastante para tentar resolver este hiato entre as pessoas e seus desaparecidos. É lógico que me veio à cabeça a questão da ditadura, porque se tratava de desaparecidos para os quais a gente não olhava, e que produziu um lugar de doença na sociedade, dando origem à brutalidade que vivemos hoje. Mas eu gostei muito da forma como a Bel e o Sandro olharam para este universo. Eles foram muito felizes em pinçar cada ser humano na sua singularidade, trazendo a relação de cada um com seu desaparecido. O roteiro é um bordado, por ser um filme extremamente coral. Nós escutamos a voz e a história de cada um, algo difícil de fazer. Diversos filmes corais se perdem, mas aqui existe o lugar da escuta de cada personagem. Neste sentido, os diretores conseguem, através das ausências, fazer com que as pessoas buscando os outros criem uma renda de grande delicadeza.
Gilda Nomacce: O primeiro contato que eu tive não foi com o roteiro. Às vezes os criadores nos mandam o roteiro antes, mas neste caso, o meu contato foi com os roteiristas e diretores. Eles pediram para conversar comigo e me apaixonei por eles. Decidi que faria qualquer coisa com eles, por serem muito especiais. Isso vem também do povo mineiro, dos novos cineastas mineiros que estão surgindo com bastante força, e tocando em temas necessários. Eles me disseram que a Sabrina Greve estaria no filme, e ela é uma grande amiga minha desde os primórdios das nossas carreiras no Antunes Filho, o que me deixou ainda mais interessada em participar. Sobre o tema, imagino que o desaparecimento seja algo enlouquecedor. A morte é terrível, mas incontestável. Já o desaparecimento é algo sem conclusão, que não pode ser aceito. Você passa a não existir, você se torna um ausenta também, porque a sua vida se limita à busca deste ausente. A Débora tem razão: a gente evita estes temas indelicados. Por isso os familiares de desaparecidos se unem tanto em grupos: de alguma forma, eles precisam do acolhimento de quem entende a sua dor. Esta deve ser uma dor tão profunda que só outra pessoa na mesma circunstância deve ser capaz de entender. A Bel e o Sandro não possuem essa vivência, mas eles se sensibilizaram muito com histórias reais e transformaram este material em suas histórias próprias. Eles tiveram uma sintonia muito grande com os atores que escolheram. Naquele set grande, com uns dos maiores elencos que eu já vi, não havia um único problema de egos. Foi um filme de muito afeto.

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Parece ser um grande desafio aos atores construir a personagem inteiramente através da espera, além de abordar um tema difícil pelo viés do humor.
D.D.: Nesse lugar, a espera sempre é carregada de expectativa. Muitas vezes, ela não se concretiza. Este é um filme construído na espera, o que é um lugar muito específico do cinema – o que mais fazemos, enquanto atores, é esperar! Quem é do ofício sabe que às vezes a gente espera horas para fazer uma pequena cena, que muitas vezes leva menos tempo que a própria espera. Mesmo assim, o final traz um chamado à vida, um chamado para se desfazer do que é dispensável. A minha personagem consegue efetuar este caminho. Já a personagem da Gilda tem o título de “a menos sofredora”!. No caso da Lúcia, ela concretiza na rádio um sentido para viver. Diante da ausência do marido, ela começa a buscá-lo na rádio, neste lugar que o Sandro chamou de “palco”. Ela passa a respirar este ambiente, que se torna fundamental na vida dela. Ela é uma personagem que se relaciona com os outros, que dá conselhos, que se assume como uma espécie de psicóloga para os demais. O mais importante ainda é o encontro, o contato com os outros frequentadores da rádio. Ela se prepara a ponto de levar músicas para cantar – isso passa a ser uma performance que ela faz ao marido desaparecido. Acho incrível este lugar criado pelos diretores, que inclui o humor. A cena da Sabrina e da Gilda, retirando o copo plástico, é algo simples e muito engraçado. Numa projeção que eu acompanhei, as pessoas riam muito, mas choravam também.

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É curioso que, em tempos de Internet e redes sociais, o local de encontro seja uma rádio.
D.D
: Nós vivemos essa necessidade hoje de sair de casa e criar encontros reais. Nesse sentido, esta rádio é um pouco mítica, um espaço quase surreal. Nós precisamos falar, nos ver, nos tocar, contar as nossas histórias um ao outro.
G.N.: Eu gosto muito de trabalhar com este lugar do humor na tragédia. Quando você coloca pelo avesso aquilo que esconde na vida, isso se torna engraçado. O espectador pode se identificar, pensar “Eu também faço isso”. Ele se sente pego em flagrante, por ter sido exposto em algo que se supõe que ninguém mais faz. Sempre penso em como mostrar aquilo que costumamos esconder. Em algum momento, esquecemos um pouco das regras, esquecemos de nos proteger. Como atriz e personagem, ali dentro da rádio, eu olhava para a Lúcia dando vários palpites, e isso me distraía em relação à filha da minha personagem, que estava perdida. Por isso precisamos sair de casa para sair de dentro de nós, para ter relação com o mundo, com um filme. Nós nos escondemos de nós mesmos, com medo do afeto, de não ser queridos e abraçados. Mas todas as pessoas são interessantes – esta é a ideia do filme, aliás. Nenhum personagem deste filme é menos interessante do que outro, porque cada um tem a sua particularidade. Quem assistir a Onde Quer Que Você Esteja vai se encontrar. Ele pode não estar passando por uma situação semelhante, mas ele vai se identificar com a questão do encontro. As nossas vidas estão corridas demais, e as pessoas andam muito hostis. O mundo tem nos separado, colocado uns contra aos outros. Aqui, neste projeto, quando uma pessoa olha para a dor da outra, ela compartilha desse sentimento, enquanto se liberta do peso da própria dor. É isso que o cinema faz ao contar estas histórias, que não podem deixar de ser contadas.
D.D.: Enquanto trabalhadora do audiovisual, posso dizer que estamos vivendo um momento muito difícil. Chegamos a construir o início de uma indústria, e queria que as pessoas que ainda não entenderam, percebam que somos todos trabalhadores. O glamour aparece apenas no dia da estreia, quando a gente se pinta e se arruma. Trabalhamos como qualquer outro. A indústria do cinema estava crescendo muito, e os cortes no Fundo Setorial e na Ancine são violentos. O impacto será muito forte na vida destes trabalhadores. São famílias com filhos, mães, avós, famílias que pagam escola, pagam aluguel. Eu peço que as pessoas olhem de uma outra forma ao cinema nacional, e enxerguem os artistas neste lugar de ofício. O cinema nacional é muito importante para criar a aura da soberania de uma nação. É muito importante se ver em tela. Peço que as pessoas vejam Onde Quer Que Você Esteja para levantarem com a gente a bandeira do cinema nacional. Esta é uma indústria que precisa permanecer. Todas essas séries, esses filmes são fruto de um empenho que existe há décadas, e não pode ser destruído. Não podemos deixar que isso seja destruído.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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