Desde as primeiras exibições em festivais de cinema, Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu (2019) tem provocado reações fortes pela maneira como mistura a linguagem documental, o drama familiar e a ficção científica. O projeto dirigido por Bruno Risas foi eleito o melhor work in progress no Festival de Brasília, e venceu o prêmio de melhor filme de estreia no prestigioso Cinéma du Réel, além das seleções em Torino, FIDMarseille, Cartagena e Mostra de Tiradentes.
No centro da trama se encontra a família real do cineasta, acompanhada ao longo de muitos anos. Risas registra a crise financeira, as brigas internas, e também a reconstrução do núcleo familiar… até a chegada de um OVNI responsável pela abdução da mãe. O Papo de Cinema conversou com o diretor sobre o projeto ousado, que chega à Netflix dia 15 de outubro:
O projeto parte de um cenário de crise econômica, mas o Brasil mudou muito desde as filmagens. Como percebe esta transformação?
A primeira imagem do filme é de 2010, quando terminam os dois mandatos do Lula e entra a Dilma. Tínhamos acabado de enfrentar a crise que afetou os Estados Unidos e a Europa em 2008. Ou seja, existia uma preparação no contexto brasileiro para esta condição socioeconômica específica, sem falar numa herança de desigualdades muito mais antiga. A minha família faz parte de um grupo de pessoas que conquistou certa ascensão econômica, e portanto de classe. Mas foi uma ascensão frágil da classe média-baixa com empregos precários, incluindo a casa da família que é fonte de conflitos com meus tios. O filme começa neste processo que leva ao Brasil de hoje. Ele acompanha a ressaca de um projeto mal elaborado de ascensão social e econômica. Foi importantíssimo o fato de tantas pessoas terem saído da miséria, mas foi terrível não se ter combatido o perigo iminente de retomada de poder por parte da elite. Hoje está tudo uma merda, como era uma merda naquela época também. Hoje os motivos da crise parecem mais evidentes, e reforçam o fato de que não é apenas uma crise financeira, ou apenas uma crise econômica. É algo mais grave.
Por que preferiu trabalhar com seus familiares de fato, ao invés de atores interpretando os papéis deles?
Na verdade, nunca houve um projeto anterior até esta tomada de decisão: o filme foi sendo descoberto enquanto era feito. Eu tenho um acúmulo de imagens desde 2010, quando ainda não tinha a menor ideia do filme que eu estava fazendo. Mas já vinha me aproximando disso, pelo meu trabalho no cinema, e pelo uso dessas ferramentas enquanto entendimento do mundo e da vida. Como esta relação familiar acontecia diante de mim na época, era encantador investigar o mundo através daquelas pessoas que carregam tantas questões. São meus familiares, mas também são outras pessoas que representam papéis sociais: a mãe, o pai provedor que de repente fica sem emprego e perde a noção de identidade… Tudo era muito doloroso, e ao mesmo tempo, era uma grande investigação através do cinema. Com a câmera, eu poderia transformar isso em imagens. Quando tive a ideia da dona de casa abduzida, pensei num curta-metragem com a Gilda Nomacce interpretando a minha mãe. Cheguei a escrever o roteiro, e mandei para um edital. Mas os anos foram passando, e durante este período, eu nunca parei de filmá-los, tentando fazer diversos filmes. Foi um acúmulo de materiais, de experiências e de vivências humanas. As imagens me permitiram ver coisas que estavam ao meu redor o tempo todo, e eu ainda não entendia muito bem.
A sua família sempre aceitou a exposição do contexto de crise? Havia alguma reticência sua, ou deles, quanto ao mergulho na intimidade?
A disposição deles sempre existiu. No início, era apenas eu filmando. Depois, tinha a Flora Dias comigo. De repente, começou a entrar algum dinheiro. Enquanto eu filmava o desemprego, o próprio filme começou a empregar pessoas, o que estabelece uma relação de poder, tensionando a representação. Existe a experiência de fazer o filme, mas ao mesmo tempo, são dez anos da nossa vida. Foi um período longo de exposição à câmera até existir a consciência de que aquilo se transformaria em algo maior. Alguns momentos eram tranquilos, enquanto outros foram mais tensos. Às vezes, o que regia era a relação de poder estabelecida pelo trabalho remunerado. A gente estava cutucando essa ferida, e via o que saía disso – e nem falo do filme. O filme era o que menos importava. Ele era o resto de um processo, e o cinema, para mim, acontece no processo, na vivência, na construção da imagem em conjunto com mais pessoas.
Sobre a exposição, esta noção ocorreu com tranquilidade, porque meus familiares compreendiam o lugar que ocupavam ali dentro. Eu me surpreendi com a minha mãe e meu pai falando sobre o filme, pela autoconsciência sobre o papel desempenhado ali dentro. Depois do filme pronto, eu exibi em Tiradentes, algo importante pelo vínculo com o cenário brasileiro. Eu vou ao festival há alguns anos, trabalho no cinema brasileiro há anos, trabalhei na Cinemateca Brasileira. Gosto muito do cinema brasileiro, e tento compreender como a nossa História é retratada pelas imagens. Por isso, em Tiradentes eu fiquei um pouco apreensivo porque meus pais estavam expostos. É diferente comigo: eu me exponho, e tudo bem, pode doer, mas eu me viro. Mesmo assim, eu percebi que eles estavam tranquilos, e compreendiam o que a gente pretendia com o filme, que consistia em não apenas expor feridas, mas também cuidar delas. Quando se chega numa noção de fracasso, resta apenas ressignificá-lo.
Qual era a importância das cenas mais explicitamente metalinguísticas, como o instante em que sua mãe lê o roteiro em cena?
Existe um jogo de equivalências. As pessoas falam muito sobre a relação entre ficção e realidade, e acredito que estas cenas caibam neste terreno também. Existem diversas abordagens formais para responder aos acontecimentos do mundo. O filme circula por diversas formas. O filme faz muitas perguntas, para si mesmo e para os personagens. Ele não se encerra no projeto, numa certeza executada de maneira tão específica. Todas as pessoas participavam deste processo muito longo. As cenas híbridas correspondem ao que a gente vivia naquele instante, seja as cenas mais simples, ou as maiores, com mais equipe presente. Nos momentos com uma equipe um pouco maior, havia travelling, refletores, uma construção da cena. A gente chegava todos os dias de manhã, às 8h, tomava café, discutia como seria a cena e filmava mais ou menos até as 11h. Então pausava, fumava um cigarro, lia parte da cena com a minha mãe, a Flora checava o material… Então algo acontecia no mundo, ou na casa, e a gente decidia que precisava filmar. Ou seja, eram elementos que se apresentavam ao redor, organicamente.
Você aparece menos enquanto personagem do que seus familiares. Como via o papel da sua presença nas imagens?
Eu discordo. Acho que sou um dos que mais aparece. O filme começa com a minha voz, e eu logo apareço. Ele explicita a minha presença ali sempre, atrás da câmera. E também aparece a Flora. Por isso, eu sempre estou ali, inclusive discutindo com a minha mãe. Existiram versões diferentes na montagem comigo aparecendo mais em cena, mas isso me parecia um jogo narcísico. Quanto mais eu aparecia, mais eu preferia deixar escondido, porque havia a autoconsciência de quem está conduzindo todo o processo da feitura. Nunca existiria um equilíbrio pleno. A pessoa que está fazendo o filme, que trabalha com cinema, sou eu, não meu pai, mãe e irmã. A relação seria necessariamente assimétrica, e acredito que o filme busque tensionar esta questão.
Como vê a transição entre a linguagem parcialmente documental e o cinema de gênero?
Eu conversava muito com a Júlia Alves, produtora e grande amiga, sobre o absurdo da vida cotidiana que, para nós, é equivalente ao absurdo da ficção científica. Todos esses códigos que determinam as funções sociais de cada pessoa são uma invenção; o próprio Brasil é uma ficção. Não vejo distinção entre o trabalho com o gênero e o drama familiar de estilo documental. Estamos no mesmo espectro de invenção: tudo ali é invenção, é ficção, mesmo quando se desliga a câmera. Olha só o que estamos vivendo hoje: também é ficção, mas uma ficção dura. Por isso, foi fácil me aproximar do terror e da ficção científica, porque eles tentam dialogar, através de metáforas, com questões sociais e históricas. Neste sentido, talvez exista alguma referência de cunho cinefílico, embora eu nunca tenha sido um grande cinéfilo de ficção científica. No meio do processo, conheci a literatura da Octavia Butler, que fala sobre questões raciais através do uso da ficção científica. É um jogo de travessia de tempos, o que o filme também propõe. Nosso OVNI é feito de pedra, ele é rústico, e se encontra à beira do rio Tamanduateí, onde nasceu a cidade de São Paulo. O filme é feito do encontro entre 2010 e 2017, efetuando uma travessia no tempo. O gênero que melhor viaja no tempo, no cinema, é a ficção científica, mas nem precisaria ser apenas ela. Quando você ingere uma substância alucinógena, também efetua uma travessia do tempo através de imagens, por exemplo.
O cinema brasileiro recente tem usado a ficção científica e a fantasia de modo não espetacular, incluindo fenômenos sobrenaturais que não rompem com o real. Penso no Quintal (2015), do André Novais Oliveira, O Jardim Fantástico (2020), do Fábio Baldo e Tico Dias, nos filmes do Adirley Queirós. Como percebe esta abordagem?
Você cita algumas pessoas muito próximas, que participaram do processo de alguma forma. Eu já filmei com o Adirley, e aprendi muito com ele sobre o método de filmar. O André é um grande parceiro: fotografei um filme dele, e mandei o primeiro roteiro deste filme para ele, ainda em 2011, quando deveria ser um curta-metragem. Ele inclusive me deu várias sugestões sobre os diálogos. Eu também fiz a cor de Quintal. E o Fábio operou o nosso som. Este é um recorte de figuras que estão vivendo este momento do Brasil agora, fora de um grupo de elite que costumava fazer o cinema antigamente. Qual é a diferença de um rico e de um alienígena? Nenhuma. Ou talvez uma: o alienígena pode ser bonzinho. O que é a realidade brasileira hoje? Tenho outro roteiro, de seis anos atrás, em que todas pessoas usam máscaras e não podem ficar perto uns dos outros. O que vivemos hoje é uma loucura.
O espetáculo constitui um desejo de poder. Mas eu não gosto do poder, nas mãos de quem quer que seja. Ele é o mal de tudo. No nosso caso, por mais que a gente tenha ganhado um dinheirinho e entrado no jogo institucional, nunca deixamos de fazer um filme completamente artesanal. O artista é chato: sabe aqueles caras que ficam no meio da praça, pintando uns quadros e azulejos? Aquele cara é legal. Ele tem conhecimento prático, manual, e cria algo. Este modo de produção me interessava muito mais, e ele é completamente antiespetacular. O absurdo está aqui, ao redor da gente. O que são os eleitores de classe média-baixa do Bolsonaro? Gente que ganhou uma casa porque o pai fez uns esquemas no jogo do bicho, mas esconde este fato para parecer o defensor da moral, gente letrada. Tem muita gente dizendo absurdos. Isso sim é o fim do mundo!
Como vê a questão do lançamento virtual do filme, após passar por festivais presenciais?
Tenho pensado nisso há muito tempo, desde que trabalhava com preservação na Cinemateca. Também tenho me aproximado da galera dos cineclubes. A época do Fundo Setorial permitiu às pequenas empresas de cinema entrarem num ritmo de trabalho impressionante. A maior parte das novas produtoras e dos realizadores abriram mão de pensar melhor as formas de difusão. Há muito tempo, não é mais suficiente estrear no circuito tradicional: as pessoas não vão aos cinemas, o ingresso custa caro. Este lugar é pouco acessível. Poder estar dentro de uma plataforma popular, à qual bastante gente tem acesso, possui um valor. As pessoas podem assistir no computador, ou no celular quando estão voltando do trabalho. Mesmo assim, tenho meus questionamentos com esta questão do cardápio. Além disso, sou um defensor da imagem grande. Parei no século XX: gosto da questão do teto de Igreja, quando você entra, olha para o alto e diz: “Deus existe”. Gosto dessa relação da imagem gigante, e nunca vou abrir mão disso.
Ao mesmo tempo, oferecer a possibilidade de ver o filme a pessoas como a minha mãe, em tantos lugares, me parece algo muito bonito. No momento da pandemia, quando a realidade se torna cada vez mais mediada por telas, existe a possibilidade de transitar em temporalidades não cronológicas. São fenômenos de reconfiguração da nossa relação com o tempo. Gosto muito que o filme esteja na plataforma, e espero que a gente faça um bom trabalho de divulgação, para ser visto inclusive por pessoas que eu não esperava que vissem. Isso nos alimenta para que, quando a gente for ao cinema, não seja necessário nos submeter a uma regra da exibição. Não existe apenas um modo de acessar os filmes: existem os cineclubes, os aparelhos públicos das periferias. O filme foi feito par ser visto por pessoas comuns, por nossos vizinhos, mesmo que seja diferente quando o rosto da minha mãe é visto na tela do celular, ou quando se torna uma imagem de 30 metros.
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