A conversa da vez é com o crítico Daniel Feix, a quem aproveito para agradecer pela estimada contribuição. Daniel Feix nasceu na fronteira do Rio Grande do Sul com a Argentina, chegando a Porto Alegre com 11 anos de idade. Trabalha como crítico do jornal Zero Hora há quatro anos. Antes, foi editor da Revista Aplauso e também trabalhou na RBS TV, além de ser colaborador em publicações diversas, revistas e também alguns livros. É membro da ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul) e da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).
Como nasceu em você a paixão pelo cinema?
A primeira lembrança de cinéfilo que tenho é a de um período, lá pelos 10, 12 anos de idade, de paixão pelos filmes de guerra. Consumi compulsivamente todas as fitas (em VHS) da prateleira dedicada ao gênero na locadora mais próxima de casa, aí incluindo Cruz de Ferro, do Peckinpah, e outros títulos de classificação etária certamente impeditiva. Mas acho que a paixão despertou mesmo com a descoberta do cinema europeu dos anos 1960 e de diretores como Buñuel e Godard, quando eu já era um estudante de jornalismo e tinha uns 18, 19 anos. Foi a partir dali que consumir filmes e informações acerca do cinema passou a ser algo regular e ininterrupto até hoje.
Qual é o sentido de ser crítico nos dias de hoje?
O mesmo desde sempre: a reflexão sobre a produção cultural é uma etapa fundamental para o fortalecimento e o próprio estabelecimento de um sistema – artístico, literário, cinematográfico etc. Uma resposta mais pessoal: reencontro o sentido de produzir crítica cada vez que constato a dificuldade de circulação de algum bom filme e a facilidade de circulação de outro péssimo. Incentivar o leitor a dar uma chance ao que tem qualidade mas está escondido, chamar a atenção para o que merece receber esta atenção mas encontra obstáculos para sua difusão pelas idiossincrasias do mercado – isso sempre deu e sempre dará sentido à crítica.
Qual sua posição frente a nova crítica de cinema, que germinou na era dos blogs e das revistas virtuais?
Quanto mais meios para compartilhar ideias, melhor. De certo modo, o meio determina a forma da crítica. Não escrevo no mesmo tom para o jornal e para um blog, por exemplo, assim como mudo o tipo de abordagem quando produzo algo para uma revista ou uma publicação que admite material de mais fôlego. De todo modo, quando se trata de crítica, no fundo, a forma importa menos do que as ideias em si. Hoje me parece haver críticas melhores e piores, mais ou menos inspiradas em todos os meios, em blogs e em jornais, em livros e em revistas especializadas. Dizer que um dos meios é mais ou menos interessante ou mais ou menos relevante apenas considerando apenas o próprio meio não me parece fazer sentido.
Como vê o academicismo de certas linhas de pensamento na crítica cultural? Acredita que a dissecação de um filme, tornando a análise o mais objetiva possível, tende a enfraquecer a importância da análise subjetiva?
Acho que clareza e profundidade não são excludentes: pode-se ser claro sendo profundo. A produção acadêmica contém vícios, mas a produção jornalística também os têm, assim como a produção dos blogs mais despreocupados com formalidades de linguagem. O bom texto é aquele que os evita e consegue ser profundo se comunicando bem com o leitor.
Quais são seus críticos de cinema favoritos? Os de outrora, que influenciaram ou ainda influenciam seu trabalho, e os de agora, que acredita sustentarem com talento a causa da crítica de cinema.
Já senti profunda admiração ao tomar contato com a produção de muita gente, de André Bazin a Jairo Ferreira, mas ao escrever sobre algum filme no dia a dia das estreias do circuito as referências críticas parecem muito vagas, distantes. A bagagem de cinéfilo e o próprio consumo de cultura e informação de uma maneira mais ampla conta mais, mesmo no exercício da crítica desconectada desse dia a dia do mercado.
É célebre a história de Antonio Moniz Vianna parou de escrever quando da morte de seu maior ídolo, John Ford, pois acreditava que nada tinha mais a acrescentar como pensador diante da crise criativa contemporânea. Qual diretor cuja morte já lhe provocou semelhante desalento?
Nenhum, na verdade, muito embora algumas mortes sejam marcantes – não só no campo do cinema, mas de outras áreas da criação artística. As mortes de Bergman e Antonioni, juntas, causaram uma péssima sensação, assim como, mais recentemente, Rohmer. Este, de maneira especial, porque acredito que ele não teve, ao menos nos últimos tempos, um reconhecimento à altura dos seus filmes. Mas aí o efeito é o contrário: sinto como se tivesse sido chamado a difundir a obra dele e de outros cineastas em situação semelhante.
A perda de espaço de textos críticos nos veículos impressos é sintoma da falta de interesse público, ou a busca ávida dos veículos pela adequação a tempos de pouca reflexão?
A crise dos veículos impressos é mais ampla, não diz respeito apenas à diminuição do espaço para a crítica cultural. Mas acho que o momento é de transição. Quando os números que indicam o real consumo/vendagem dos veículos impressos se estabilizarem, o perfil dos jornais e das revistas vai ficar mais claro, melhor definido. E, parece-me, pendendo à reflexão, que é aquilo que esses veículos podem oferecer de melhor.
Discutir “comércio versus arte” ainda é válido quando percebemos qualquer cinematografia?
Talvez não com o “versus”. É fato que um país tão plural como o Brasil, botando no seu mercado interno cerca de cem longas-metragens por ano, vai se destacar pela pluralidade. Há espaço para a pesquisa de linguagem e há espaço para os produtos que visam ao consumo mais amplo neste mercado. Ambos têm de conviver harmonicamente, e a crítica precisa entender isso na hora de exercitar a reflexão sobre esses produtos: não dá para escrever sobre Chico Xavier tendo como parâmetro Pan-Cinema Permanente. Mas dá para ser competente fazendo as duas coisas. É por isso que o fundamental, na crítica, é entender a natureza do projeto e as intenções de seus realizadores.
Como vê o cinema brasileiro atual?
Com otimismo sob certo aspecto, e com pessimismo por outro lado. Com otimismo pelo surgimento de ideias muito interessantes das novíssimas gerações, que incorporam referências contemporâneas e buscam o avanço da linguagem num sentido até então inexplorado no país. Com pessimismo porque, apesar da oxigenação que essas gerações estão trazendo, grande parte da produção nacional segue atrelada aos mesmos vícios há muitos anos: há filmes muito caros que não são vistos por ninguém, há filmes claramente “de mercado” que não são sustentados pelo mercado e sim pelo dinheiro público (que deveria ser, prioritariamente, destinado aos projetos que priorizam a pesquisa de linguagem), há filmes que pedem um set mais enxuto e equipamentos portáteis mas dependem da parafernália das grandes produções em 35mm simplesmente pelo apego de seus autores aos velhos sistemas de produção, há filmes com ideias inventivas e às vezes inovadoras que no entanto patinam e não conseguem sair do papel devido à má formação técnica de sua equipe (em todas as pontas, do roteiro à finalização) etc. Em outras palavras, há motivo para festejar, mas deveria haver mais.