Apesar de carioca, André Pellenz é de família gaúcha, e seu trânsito entre os dois estados lhe possibilitou um olhar mais amplo sobre as diferentes regiões do Brasil – uma percepção que só aumentou com as suas demandas profissionais. Atuante no mercado cinematográfico há mais de uma década, é responsável por dois dos maiores sucessos recentes de público do nosso cinema. Juntos, Minha Mãe é uma Peça: O Filme (2013) e Detetives do Prédio Azul: O Filme (2017) levaram quase seis milhões de pessoas aos cinemas. Mas ter começado com um duplo pé direito não lhe foi suficiente. Ao invés de comandar as continuações – os dois títulos já viraram trilogias – preferiu partir para outras histórias originais. Depois de comandar o gastronômico Gosto se Discute (2017), estrelado pela youtuber Kéfera Buchmann, e a comédia Tudo Acaba em Festa (2018), que tinha como protagonista o ex-Porta dos Fundos Marcos Veras, agora volta a fazer graça, porém num outro universo: o dos stand up comedies! Pois é sobre isso que trata Os Espetaculares, que estreou direto nas plataformas de streaming e em VoD após uma rápida passagem pelo circuito de drive-ins. E foi sobre esse mais recente trabalho que o cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Como surgiu a ideia do filme?
Cara, foi uma ideia que surgiu de modo engraçado. Acontece que estava trabalhando numa ideia, que poderia ou não ser filmada. Ainda não tinha com a Silvia Fraiha, que viria a ser a produtora do filme, como parceira. Quando contei pra Silvia, ela abraçou a ideia na hora. Só que tinha também essa proposta de falar sobre comediantes, gente que vive do stand up. Só não sabíamos o que fazer, se seria um documentário ou não? Acabou que nos decidimos por uma ficção, pois já tinha um financiamento armado, e seguimos por aí. Foi por isso que acabou sendo feito antes, pois o dinheiro tava na mão.
Mas já havia um roteiro, ou apenas o argumento?
Não tinha nada. Apenas a vontade de falar sobre esse pessoal que ganha a vida fazendo piada sozinho em cima do palco. Nos baseamos em quem conhecemos, essa turma que já convivemos e que passaram pelos nossos filmes. Acontece que os comediantes são muito diferentes entre si. Era sobre isso que queríamos falar, dessas dificuldades entre eles, das diferenças. Quis trazer o tema do temperamento, o quanto influencia na vida e na profissão de uma pessoa ela conseguir se relacionar com as outras ou não. Por maior que seja o talento, se não dá pra trabalhar com o indivíduo, como faz? O quanto essa imaturidade, no caso do nosso personagem, iria afetar a carreira e a vida dele?
Qual seria a trama desse outro filme que você estava envolvido antes?
Estávamos planejando aquele que poderia ser o meu próximo filme, e cujo título provisório seria 830 Litros. É baseado numa história real, mas ficção, e foi inspirado em algo que aconteceu com um tio meu. Era um cara maluco, a ovelha negra da família, sabe? Acontece que ele morreu num garimpo lá no Pará, e o meu pai morava no Rio Grande do Sul. E foi ele que teve que trazer o corpo, do Pará até Santa Rosa, onde ele foi enterrado. Passou cinco dias na estrada, e criei uma história a respeito. O bacana é que se trata de um road movie, não é uma comédia. Um choque brutal de culturas, do norte do país até as raízes da colonização alemã lá do Sul.
Como chegou ao nome do Paulo Mathias Jr para ser o protagonista de Os Especulares?
Já tinha trabalhado com ele antes, sempre tivemos uma ótima relação. Ele é quase um Wilson Grey, todo mundo o conhece. Mas, entre nós, diretores e outros atores, o consenso é de que o Paulinho é um dos melhores atores. É um cara versátil, bom de trabalhar. Enfim, o oposto do personagem. E todo mundo comentava que estava na hora dele ter um papel grande, se falava sobre isso no meio artístico. Então, chegou essa oportunidade. Também ajudou que não temos pressão comercial de ter alguém extremamente famoso – como o Marcelo Adnet, ou o Paulo Gustavo, por exemplo. Não tinha isso. Mas temos o Paulinho, que é ótimo, e muito versátil.
Vocês pensaram nele desde o primeiro momento?
Ele foi o primeiro nome que pensamos para esse elenco, junto com o Rafael Portugal. A nossa dúvida, nesse momento, era quem faria qual dos papeis? Pegar um humorista que está surfando no seu melhor momento – afinal, o Portugal está no topo nesse momento – e fazer um filme no qual ele aparece como um personagem que nega o humor, que não gosta de comédia, é genial. Era muito tentador. E era uma proposta como qualquer outra, que poderia resultar num “sim” ou “não”. Acontece que ele amou, se apaixonou por essa oportunidade que lhe ofereci de sair da zona de conforto e de falar de uma coisa que ele próprio sente. Sabe aquilo, de dizer pro mundo que “não sou só um comediante”? E não há mal nenhum nisso, mas ele queria diversificar. Então, como já havia essa vontade, foi um casamento perfeito. Aproveitamos e fomos em diante.
E como foi a composição dos demais nomes do elenco, que apresenta desde veteranos até gente que está começando?
Exatamente como você falou: a ideia era fazer uma junção, de promover essa mistura. Desde gente mais experimente, como o Rocco Pitanga, que é incrível, ou a Elisa Pinheiro, que faz a mãe do menino. E indo até o Victor Meyniel, que é um fenômeno da internet, fala direto com um público específico. Ele é mais ou menos como o personagem dele, um cara em estado bruto. E tem a Luísa Perissé, filha da Heloisa Perissé e neta do Chico Anysio – ou seja, tem pedigree de sobra! Desde que nasceu, viu o avô, um dos maiores gênios que já tivemos, ali do lado. Junta ela com um garoto que nunca teve acesso, nunca conheceu nenhum artista, e coloca os dois no mesmo filme. É uma combinação bacana, e gosto disso.
Como você vê o atual cenário do humor no cinema brasileiro?
Acho que a comédia brasileira cresceu, podemos dizer. Sou fanático pelo cinema italiano, para você ter uma ideia. Minha Mãe é Uma Peça é totalmente influenciado pelo cinema da Itália, tem mil referências. Outros atores e diretores podem ter outras fontes, é claro. Mas o que tem sido feito no Brasil é muito diverso, e isso é muito legal. Não é mais só um tipo de comédia. Havia uma visão um pouco distorcida, como se todos os filmes fossem gestados numa sala secreta lá na Rede Globo. Não tenho nada a ver com o Paulo Cursino – muito pelo contrário, aliás. Nem conheço o Daniel Filho, pra você ver. Há também uma falsa premissa de que qualquer comédia dá certo, e não é assim que funciona. Por tudo isso que tem ao nosso redor, podemos ter diferentes tipos de humor. Cada dia mais deixando de ser uma coisa única. Vai desde algo como Os Parças (2017), que é bem mais popular, passando pelos Os Espetaculares, que é mais sofisticado – sem julgamento de valor – até comédias de costumes. Essa é a grande novidade.
O humor stand up parece ser a bola da vez na comédia nacional. Você tem essa mesma impressão?
Uma das nossas preocupações era não ser apenas uma apresentação filmada. O filme do Leandro Hassum, Chorar de Rir (2019), acho até que era uma refilmagem. Então, era outra pegada. E a gente não queria surfar no fenômeno do stand up. Não vamos aproveitar esse sucesso, queria fazer outra coisa. Não me iludo, não acredito que o cara vá ver o filme só porque gosta de stand up. Também por isso, não pensei em fazer uma colagem de apresentações. Mas queria conhecer melhor essa realidade. Então, é também um mergulho da minha parte, mas nada profundo. É quase periférico.
Como foi inserir a comédia stand up dentro da história do filme?
O stand up é a forma mais pura de humor para um comediante. É trabalhar com o mínimo. Nem pode ter cenário, sem personagens, é apenas ele. É a comédia reduzida ao seu mínimo. Isso me fascinou mais do que qualquer fenômeno. Sem falar que filmar stand up é muito difícil. Veja, nas cenas do concurso, no final do filme, os concorrentes são todos de stand up de verdade. E ninguém famoso, artistas de rua mesmo, de ralação, que fazem sucesso dentro desse nicho. O teatro estava cheio, e filmei várias apresentações.
É fácil filmar comédia stand up?
A dinâmica do ao vivo muda por completo quando passa pela câmera. Teve piada que, durante a apresentação, as pessoas riam de passar mal – e quando coloquei no filme, não funcionava. A tela altera a percepção das coisas. Tem que ter um feeling, e isso é fascinante. É muito sofrida a vida de um humorista – se não faz rir, é mortal. No drama, você não sabe se gostaram ou não, só vai ter essa sensação depois. Já com o humor é na hora, se funcionou ou não. E quando dá certo, ganha status de arte. Estamos, nesse filme, evitando piadas antigas, deboches, gordofobia, homofobia. Coisas que dominaram por tanto tempo. Estamos evoluindo junto.
O lançamento do filme foi afetado pela pandemia?
Com certeza. Esse era um filme para ser visto no cinema. Já teria sido lançado, aliás, se tudo isso não tivesse acontecido com o mundo. A data original de lançamento era pra junho ou julho. Bem tradicional mesmo, com pré-estreias e tal. Mas a pandemia veio e adiou tudo. Acabou que decidimos, em comum acordo, não atrasar mais. Fazer uma estreia direto no streaming, e não esperar pelos cinemas. É uma situação que me traz sentimentos conflitantes. Não lançar nos cinemas, para um filme que foi feito para esse formato, frustra. Por outro lado, é uma novidade, um mundo inédito de possibilidades. Todo mundo vai poder ver, junto e ao mesmo tempo. Das capitais ao interior. De outra maneira, isso seria impossível. Não foi planejado, houve uma decepção inicial, mas estamos satisfeitos com o cenário que estamos lidando agora.
Os Espetaculares chegou a algumas salas de cinema, certo?
Como já tínhamos a cópia em DCP, conseguimos aproveitar um pouco a retomada das salas de cinema lá em Manaus. Mas cada caso é um caso, as realidades nesse país são muito diferentes, não sei se é o momento de voltar com todos os cinemas pelo Brasil. Não diria para abrir aqui no Rio de Janeiro, onde eu moro, por exemplo. Mas lá havia condições. Só pode abrir se for seguro, creio. E Os Espetaculares foi o primeiro a estrear no novo formato velho. Porém, até chegar no resto do Brasil ia demorar muito. Por isso o streaming.
Como diretor de alguns dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional, qual a sua percepção da relação do público com a produção cinematográfica brasileira?
Acho que o público em geral já fez as pazes. O espectador está amadurecido em relação ao cinema nacional. Não tem mais aquela visão de que eram filmes inferiores, por exemplo. Mas é uma audiência que vai continuar seletiva. O problema é a concorrência. Estou fazendo um filme, ele vai estrear nos cinemas, e pelo mesmo preço do ingresso vai ter outro em cartaz na sala ao lado que custou dez vezes mais. Acho errado aceitar esse discurso de que o público brasileiro não gosta de filme brasileiro. Muita gente concorda com isso como se fosse uma grande verdade, e não é por aí. Dizem que só se vê comédia por aqui, mas daí surge Bacurau (2019) e faz 800 mil espectadores, mais do que várias comédias. Então, é tudo uma questão de venda, de marketing, de entender o público e não aceitar que somos inferiores. Por muitos anos engolimos isso. Veja só: Tropa de Elite (2007) não é comédia. Bruna Surfistinha (2011) também não? E 2 Filhos de Francisco (2005)? Central do Brasil (1998)? Nada disso é comédia. Então, não vamos comprar essa história, isso é papo dessa coisa que tomou o poder agora. Nós temos que mudar esse discurso.
Você já tem outro projeto engatilhado?
Então, o 830 Litros vai ser filmado. Só que é um filme que precisa ser feito na rua, na estrada, e agora não tem como. Vai ter que esperar. Mas durante a quarentena já filmei outra história. Se chama Fluxo, e foi inteiramente feito durante a pandemia. Cada uma das suas casas – eu dirigi inteiramente pelo zoom, pra ter ideia. Aqui do Rio de Janeiro, e os atores em um apartamento em São Paulo, eles próprio operando as máquinas, nem nos encontramos. Esse, no entanto, ao contrário do Os Espetaculares, é um filme de cinema, pensado para ser visto na tela grande. A ideia é inscrever em festivais, e lançar nos cinemas no ano que vem. Fala sobre relacionamentos de casais, e tem um elenco bacana, um monte de gente legal, como Cássio Gabus Mendes, o Silvero Pereira. Cada um na sua casa. É o cinema pós-coronavírus! (risos)
(entrevista feita por telefone em setembro de 2020)
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