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Quando foi apresentado pela primeira vez, no Festival de Cannes, o drama Os Miseráveis (2019) provocou um choque na plateia. Apesar do título em diálogo direto com o clássico de Victor Hugo, o filme dirigido por Ladj Ly retrata a França de hoje, especialmente os bairros populares onde gangues formadas por filhos de imigrantes disputam o espaço. Três policiais tentam gerenciar os conflitos, com práticas muitas vezes abusivas.

O filme, que venceu o prêmio do júri (empatado com o brasileiro Bacurau), pretende mostrar o avesso da imagem turística e romântica da França, escancarando a pobreza, o racismo e o abuso policial encorajado pelo governo. O Papo de Cinema conversou com Alexis Manenti, protagonista e roteirista de Os Miseráveis, durante a sua passagem pelo Festival do Rio:

 

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Alexis Manenti. Foto: Pier Marco Tacca/Getty Images

 

Os Miseráveis está repleto de conflitos, mas começa com um momento de união, durante a Copa do Mundo.
Na verdade, esta cena não constava no roteiro, e só decidimos inclui-la pouco antes do início das filmagens. Era o final da Copa do Mundo, com a França participando, e nos pareceu óbvia a necessidade de incluir este instante em que todos estão contentes, se abraçando. Mas 48h mais tarde, as brigas continuam entre aquelas mesmas pessoas que se abraçavam antes. Era uma imagem importante para falar dos tempos de hoje.

De que maneira o filme dialoga com o sonho francês da integração racial?
No que diz respeito à integração, o filme corresponde à realidade da grande maioria dos franceses. A imagem constante da periferia funciona como mais do que uma metáfora: a França não se limita ao Arco do Triunfo, nem à Torre Eiffel. Não é nestes espaços que a maioria das pessoas circula. Existem muitos bairros populares de densidade populacional imensa, que foram povoados um tempo atrás por descendentes de imigrantes. Hoje, estas culturas de origem diversa representam mais de 50% da população francesa. Hoje, nossa cultura é marcada por esta diversidade de origens. Isso gerou uma configuração social muito específica que o governo francês ainda tem dificuldade de compreender.

Podemos considerar os três policiais como os heróis da história?
Eu não usaria exatamente a ideia de heroísmo, porque fugimos à oposição entre heróis e de bandidos. Os personagens são muito mais complexos do que isso, eles têm personalidades contraditórias, e o mesmo vale para os moradores. Os três protagonistas apenas tentam sobreviver num meio muito difícil. Então não é possível falar em heroísmo.

 

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Damien Bonnard, Djebril Didier Zonga, o diretor Ladj Ly e Alexis Manenti. Foto: Vianney Le Caer/Invision/AP

 

O título evoca o livro clássico de Victor Hugo. Qual a relação entre aquele período e a França de hoje?
Existe o fator importante que o romance se passa no mesmo bairro do filme: Montfermeil. Victor Hugo discutia no romance a formação de uma identidade francesa, e o filme busca entender o que restou daquela idealização da nossa identidade. O mais interessante é perceber que tanto tempo se passou, mas diversos problemas continuam os mesmos. Victor Hugo foi um visionário, porque conseguiu captar uma essência da França que atravessou séculos e se mantém até hoje.

De que maneira o longa-metragem continua a ideia do curta-metragem de mesmo nome?
O tema é o mesmo: a tensão social na periferia, a violência policial, a chegada de um policial novato num bairro dito “sensível”, marcado por disputas. Mas no longa-metragem o policial não tem tanta experiência neste bairro, nem sabe como gerenciar os conflitos no dia a dia. Isso torna a história ainda mais complexa. Além disso, a trama agora envolve a presença de jovens e crianças que se tornam vítimas diretas das ações policiais, o que certamente aumenta a tensão.

O espectador é colocado no meio da briga, entre as lutas e tiros. Como foi esta experiência para os atores?
Enquanto ator, não posso diferenciar uma pequena cena com dois personagens de uma cena maior com dez pessoas envolvidas. Durante as filmagens, nós parávamos sempre para discutir cada intenção, o objetivo de cada cena, então este sentimento de urgência não chegava até nós. Isso vem principalmente na montagem, é a magia do cinema que nos permite ter esses efeitos de imagem e de som, com a câmera na mão, o que cria uma bela sensação de imersão.

 

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Damien Bonnard, Alexis Manenti e Djebril Didier Zonga. Foto: Divulgação

 

Gosto da imagem do pequeno leão como algo selvagem e incontrolável ali dentro.
Essa metáfora vem de fatos que ocorreram de verdade. Em Montfermeil, um filhote de leão realmente foi roubado no bairro, e quisemos incorporar a história curiosa ao roteiro. Só depois o leão acabou se transformando num símbolo ali dentro. Percebemos que mesmo diante de um caso banal, como um pequeno roubo sem consequências graves, o bairro inteiro se inflama, as brigas estouram. Uma pequena faísca é capaz de destruir aquele equilíbrio precário.

Podemos falar de Os Miseráveis como um filme pessimista?
Não, de modo algum. É importante não confundir o realismo e a urgência com o pessimismo. Victor Hugo já denunciava os problemas sociais na esperança de que fossem consertados, e Ladj Ly conhece esses espaços, e tem carinho por estes bairros. Esta é a radiografia de um pequeno bairro na França que no entanto dialoga com os outros, e precisa ser colocado em contexto ao lado dos outros. Acredito que Os Miseráveis seja capaz de despertar debate e promover reflexão, de modo adulto. Às vezes essas questões se tornam caricaturas na mídia. Mas nosso mundo adulto é violento de verdade, e vale a pena questionar o que vamos deixar para as próximas gerações. Pela preocupação em apontar mecanismos e reformar o funcionamento social, acredito que se trate de uma obra otimista, para falar a verdade.

Os Miseráveis mostra uma realidade tipicamente francesa. Como percebeu a reação dos espectadores estrangeiros a este retrato?
Em relação ao olhar estrangeiro, as pessoas parecem ter compreendido que esse é um recorte relativo, que precisa ser entendido dentro do seu contexto. Mesmo assim, estabeleceram uma relação com sua própria realidade, porque a pobreza não tem cor nem nacionalidade. Por mais específico que seja, o abuso policial e o abandono dos moradores mais pobres pode ser encontrado em qualquer lugar.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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