Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em versão online, Os Nomes das Flores (2019) apresenta um período muito específico da história da Bolívia: o assassinato de Ernesto Che Guevara, em 1967. Na trama fictícia, uma professora idosa é convidada pelas autoridades locais ao aniversário dos 50 anos da morte do líder revolucionário. Ela teria entregue um prato de sopa ao Che que, em agradecimento, teria recitado um poema sobre flores.
No entanto, quando a notícia da homenagem se espalha pela cidade, outras mulheres aparecem, reivindicando o status da verdadeira professora. Quem estaria falando a verdade? A lenda da sopa e das flores seria real? Com imagens deslumbrantes do cenário boliviano, inspiradas no cinema iraniano dos anos 1990, o cineasta Bahman Tavoosi explora a ascensão e queda das lendas, e a maneira como se sobrepõem aos fatos. Leia a nossa crítica. Em entrevista exclusiva ao Papo de Cinema, o diretor iraniano explica como desenvolveu o projeto:
Fiquei interessado ao descobrir que você é um diretor iraniano, morando no Canadá, e fazendo um filme sobre a Bolívia.
Na verdade, esse nem era um interesse específico na história sul-americana, e sim uma história que eu já tinha em mente. Eu estava procurando pelo local perfeito e o país perfeito para contar essa narrativa. Cheguei a pesquisar pela Europa, e cogitei algumas cidades na Ásia. No fim, foi na Bolívia que encontrei o contexto ideal. Buscava um local que pudesse ser simbólico do século XX, que é o foco de toda a minha pesquisa. Era isso que me interessava, desde quando morava no Irã: os símbolos capazes de representarem o século XX. Eu me deparei então com a trajetória de Che Guevara, com o papel que ele desempenhava naquele vilarejo, e com o conceito muito interessante de turismo histórico-cultural. Os turistas vão até a Bolívia hoje para encontrarem onde Che Guevara foi morto e conhecerem os moradores da região. Eles buscam encontrar as reminiscências de Che naquele lugar. Isso me interessou muito, e comecei a frequentar a cidade a partir 2014 para conhecer o país melhor. Era o regime de Evo Morales, em circunstâncias muito particulares. Continuei desenvolvendo a ideia até filmar em 2017.
Como enxerga o papel contemporâneo dos mitos em torno de Che Guevara?
Este é um muito que não pertence mais à contemporaneidade. Che Guevara, enquanto símbolo, pertencia ao século XX. A imagem sagrada que ele representava já foi desconstruída em músicas e imagens. Não acredito que ninguém ainda leve esta simbologia a sério: ela representa uma das últimas mitologias do século XX. Quando você visita o lugar, ainda encontra uma idealização típica de Jesus Cristo, uma iconografia ligada a este passado glorioso. No fundo, este não é um filme sobre Che Guevara, mas sobre a desconstrução dele enquanto mitologia política. No funcionamento muito específico do século XXI, não precisamos mais de mitologias como essa. Elas pertencem a um tempo anterior.
Acredita que tenhamos construído mitologias novas para substituir aquelas do passado?
As ideologias mudaram, na verdade. Seria uma afirmação exagerada sugerir que a esquerda morreu, ou que não existe nenhuma mitologia hoje. Com a tecnologia, com o acesso diferenciado à informação e o fenômeno das redes sociais, estas mitologias do século XX não se reproduziriam mais hoje. Mesmo assim, se você visitar países como o Irã, encontrará representações semelhantes, assim como na Coreia do Sul. Ainda restam adorações comparáveis.
Por que optou por uma história em forma de fábula, sobre uma personagem que não pronuncia uma palavra sequer, a respeito de um poema que não escutamos?
Eu estava interessado há muito tempo neste tipo específico de histórias. Minha vontade idealmente seria não mostrar coisa nenhuma ao espectador, mas sei que isso é impossível. Tenho um apreço muito grande por esta abordagem particular da narrativa e das imagens. Queria explicar o mínimo possível via narrativa, privilegiando as informações visuais, até porque a invisibilidade desempenhava um papel fundamental neste caso. Para mim, esta é uma maneira muito mais sofisticada de contar uma história. Eu buscava empregar esta abordagem com a noção de um personagem invisível, de um ensino que não se enxerga etc. Condicionei toda a direção a este princípio narrativo.
Como escolheu sua atriz principal e trabalhou o roteiro com ela?
Desde que comecei a desenvolver no projeto, sabia que queria trabalhar com não-atores, ou atores não profissionais. Não queria que este filme tivesse a representação típica dos profissionais, com exceção de um ou dois atores experientes em cena. Eu preferia a energia crua e autêntica que encontrava na região. Isso vem muito da minha admiração pelo cinema iraniano. Como você sabe, nasci no Irã e morei lá até a minha adolescência. Queria de certo modo homenagear esta essência do cinema iraniano, com a mesma autenticidade dos filmes que eu amava. Por isso, toda a produção foi centrada nestas escolhas. Quando você trabalha com não-atores, a metodologia precisa ter uma natureza diferente. Com atores profissionais, você apresenta o roteiro, faz leituras, ensaios etc. Mas nada disso existe ao dirigir não-profissionais.
De que maneira enxerga as comparações dos críticos entre seu filme e o cinema de Abbas Kiarostami e Mohsen Makhmalbaf?
Tenho consciência de que os cenários usados no filme se relacionam com o estilo específico do cinema iraniano dos anos 1990 – por Kiarostami, por exemplo. Gosto do espírito deste cinema, e do papel que ele desempenhou. Mas acredito que seja apenas isso. O nosso tipo de história é completamente diferente daquele contado pelos cineastas iranianos da época. Esta é uma narrativa específica, com uma maneira de contar que a diferencia do cinema iraniano clássico. Mesmo assim, fico feliz que o resultado tenha conseguido captar a essência destes filmes que me agradam muito.
Que relação os atores escolhidos tinham com a história de Che Guevara?
Essa é uma questão comum aos não-atores: eles nem sempre têm acesso ao filme como um todo, não conseguem entender o projeto mais amplo. Com eles, é preciso abordar pontualmente as necessidades de cada cena, de cada tomada. A equipe ficou surpresa ao descobrir que grande parte destes atores não tinha a menor ideia de quem foi Che Guevara. A minha protagonista, Barbara Cameo de las Flores, não sabia quem era Che Guevara. Se eu fosse realmente mergulhar nesta história com ela, teria que explicar todo o contexto sociopolítico da época, explicar o papel da CIA e assim por diante. Era inviável, então nos concentramos nas necessidades do momento. Muitos atores não tiveram o mesmo acesso ao filme que o espectador acaba tendo no final.
Você trabalha com muitas imagens fixas e enquadramentos dentro de enquadramentos.
Isso decorre do contexto: quando você decide fazer um filme num país e numa cultura muito diferentes dos seus, o perigo de ficar preso aos clichês é muito maior. Ao visitar outro país, sempre existe o risco da superficialidade, ou então de se ater ao olhar antropológico de uma cultura alheia. Cada representação existe sua própria abordagem. Por isso, uma das minhas preocupações era não me deixar levar por este olhar da alteridade, conseguindo levar meu próprio cinema para lá, adaptando-o as tradições locais, mas sempre pelo filtro do meu cinema. A composição das imagens desempenhava um papel fundamental nisso. Passei bastante tempo percorrendo o país, conhecendo diversas cidades. A Bolívia é um país de diversidade impressionante, e não se parece com nenhum país vizinho da América Latina. Por isso, juntei os materiais que encontrei e discuti com o diretor de fotografia, que é boliviano. Juntos, decidimos como retrabalhar este material de pesquisa dentro daquele contexto específico.
Os bolivianos já assistiram ao filme? Como reagiram a este retrato da história local?
Nós tínhamos planejado uma estreia na Bolívia este ano, mas por causa da Covid-19, os planos tiveram que ser abandonados. Acredito que a estreia por lá aconteça em 2021. Estou bastante curioso para saber como vão reagir ao filme, afinal, esta é uma representação do país e da cultura deles. Então a reação vai ser importante para mim. Além disso, Os Nomes das Flores foi apresentado no Bogocine – Festival de Cinema de Bogotá, na Colômbia, e na Mostra de São Paulo. Os retornos, por enquanto, foram muito bons. Acredito que o filme tenha se conectado bem com os públicos locais.
Como interpreta o fato de o trabalho de som e imagem ser apreciado pelos espectadores em exibições online?
É triste, tenho que ser honesto. Não consigo ficar feliz com isso enquanto diretor. Conversei com um amigo recentemente, e ele me falava sobre John Ford. Ele dizia que se você nunca assistiu a um filme dele na tela grande dos cinemas, então não conhece quem John Ford foi, porque o trabalho de som e de paisagens era fundamental no cinema dela. Isso também vale para qualquer filme. Os Nomes das Flores foi feito para ser projetado na tela grande, com uma experiência de som proporcionada apenas pelo sistema dos cinemas. Parte da experiência se perde, com certeza. Mesmo assim, diante da possibilidade de ignorar sessões virtuais e não mostrar o filme, eu prefiro que ele seja visto, mantendo a conexão com o público, da melhor maneira que pudermos.
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