Filha da atriz Marieta Severo e do cantor e compositor Chico Buarque, Silvia Buarque nasceu, literalmente, em berço privilegiado – ao menos culturalmente falando. Inquieta, acabou seguindo a carreira da mãe, tornando-se uma das intérpretes mais versáteis do país. Ela estreou na telinha com pouco mais de quinze anos na novela Dona Beija (1986), e dois anos depois já estava em cartaz nos cinemas no juvenil O Mistério no Colégio Brasil (1988). De lá para cá foram dezenas de novelas, seriados e peças de teatro. Para a telona, no entanto, custou a retornar. Ao todo seu nome está nos créditos de pouco mais de dez títulos, a maior parte em participações especiais. Em Os Pobres Diabos, longa de 2013 premiado no Festival de Brasília que está chegando somente agora ao circuito comercial, ela aparece como uma das protagonistas, e ao lado do marido, o também ator Chico Diaz. E foi sobre esse trabalho que ela conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Olá, Silvia. Tudo bem? Pois então, que jornada para Os Pobres Diabos chegar aos cinemas, não? Você acompanhou esse processo?
Pois então, estar entrando agora em cartaz, mesmo que quase cinco anos após a primeira exibição, é uma vitória. Naquela época, quando o filme ficou pronto e participou primeiro do Festival de Brasília, e depois do Cine Ceará, foi como um intensivo, uma maratona muito feliz para todos nós. Temos, todos, tanto no elenco quanto na equipe, uma ligação muito forte com o filme. Não é à toa que, nestas quatro pré-estreias que fizemos agora, nas duas últimas semanas, a maior parte dos profissionais envolvidos largou tudo que estava fazendo e se reuniu novamente. Foi confirmado o amor que temos por Os Pobres Diabos. Até porque, quatro anos depois, seria até normal não ter disponibilidade para todos esses novos compromissos. Mas estava todo mundo junto de novo. A Georgina Castro, por exemplo, é uma atriz que não conhecia, e hoje somos boas amigas! Nós somos os pobres diabos, entende? Este é um filme de baixo orçamento, que todo mundo colaborou muito.
Você parece, realmente, bastante empolgada com este filme…
Cinema sempre foi uma paixão antiga, mas que mantinha à distância. Comigo, especificamente, posso dizer que foi através do Chico (Diaz, marido dela) que esse casamento, de fato, aconteceu. Brinco com ele que entrei no cinema de um jeito muito mais sólido por conta dele. Estive no Ceará, nos últimos anos, no mínimo três vezes. Só o Cine Ceará, que é um festival que gostamos muito, sempre que é possível estamos por lá. E o Chico viaja muito por causa do cinema, e sempre que posso, vou com ele. Não perdi contato com ninguém do filme durante todos esses anos. Quando estamos na mesma cidade, a gente se fala, fazemos questão de nos encontrar. Seja com a Barbara Cariry, a produtora, ou o Petrus Cariry, que assina a fotografia, e, claro, o Rosemberg, nosso grande mestre. Aproveitamos para jantar juntos, vamos nos falamos. Sempre muito presente! A Zezita Matos foi outra, que quando nos encontramos novamente no set do Reza a Lenda (2016), foi uma alegria só. Criamos uma irmandade.
Aliás, como foram as filmagens? Atores geralmente só participam dessa etapa. Qual tua melhor lembrança?
Eu só estive diretamente envolvida nas filmagens, mesmo. É um filme realmente barato, que contou com um orçamento de R$ 1 milhão. Isso, para o cinema brasileiro, é baixíssimo. Então não tivemos muito tempo. Chegamos bem perto das filmagens, alguns dias antes. Foi quando todo mundo se conheceu, e deu para se aprofundar nos nossos personagens. Pra você ter uma ideia, eu tinha que preparar o Auto que a gente representa em cena, e foi tudo muito rápido, era um trabalho árduo pra caramba. Pra mim até que nem tanto, porque a Maria Bonita não aparece tanto nesta cena em especial. Mas era todo mundo pegando junto. Sem falar dos números musicais – por mais que eles sejam propositalmente ruins, é preciso trabalhar muito até chegarmos no ponto que o diretor desejava. E foi feito com muito afinco, trabalhando duro. Essa preparação foi em poucos dias, e continuou durante as filmagens. A gente filmava doze horas, das seis da manhã até às 18h, quando voltávamos para o hotel e seguíamos juntos, trabalhando o que faríamos no dia seguinte. Vivendo aquilo o tempo todo.
Quem é a Creuza, tua personagem?
Pois é, a Creuza. Esses quatro anos foram interessantes, para mim, especialmente, porque somente agora consegui ver o filme direito. Precisava desse distanciamento, pois sou muito crítica. Na época, com tudo muito próximo, não conseguia curtir. Não gosto nem de me ver na tela. Agora não, consigo perceber melhor quem ela é. A Creuza é uma impostora, desconectada da realidade. Se acha uma rainha, num meio de pobres diabos, daquela miséria toda. Um bom exemplo é a cena que eles tiram o figurino, estão se trocando para outro número. É quando o personagem do Chico vai transar com a beata. E ela fica ali, esperando que as outras pessoas venham lhe ajudar a se despir. Ela faz os outros de camareiras. Acho que isso mostra bem quem ela é. Faço muito teatro, e ninguém tira minha roupa. Eu tiro sozinha. Só que a Creuza, mesmo naquele ambiente desgraçado, precisa disso. Fora uma outra coisa que percebi depois, que imprimi nela, e não de propósito: ela é muito mal-humorada. Tem um mau humor terrível, tá sempre desconfiada. Não sabe tratar bem nem a filha, para se ter uma ideia. E isso surgiu naturalmente. O Rosemberg, quando viu, gostou. E assim ficou.
No mesmo ano de Os Pobres Diabos você esteve na comédia Vendo ou Alugo e depois participou da ação Reza a Lenda. São três personagens bem diferentes. O que te atrai mais no cinema?
Olha, essa é uma contradição que tenho. Não me dou ao luxo de escolher tanto os trabalhos que vou fazer, principalmente no cinema – até porque, vamos combinar, não recebo tantos convites assim! Poucos atores no Brasil recebem. É claro que recuso alguns, mas a primeira coisa que me leva a aceitar, ou não, é a personagem. O diretor também conta muito, pois mesmo com trinta anos de carreira, ainda sou bastante insegura, dependo muito da direção. Quando acho que o projeto é bacana, tipo o Reza a Lenda, que foi um que acreditei bastante, aceito, mesmo que seja uma participação muito pequena – como foi o caso. Acontece que meus melhores convites são para o teatro. A gente trata bem quem trata bem a gente, não é mesmo? Porém, como espectadora, sou muito mais apaixonada pelo cinema! Isso que é surreal! Sou muito facinha para aceitar (risos)! Fora que o cinema tem a coisa da vaidade, de estar perpetuada, meus netos vão poder ver esse filme, sabe? Acho bonito ter a minha filha também no filme, com o Chico ali ao lado. Tem uma satisfação, confesso!
Os Pobres Diabos marca também a volta do Rosemberg Cariry. Como foi trabalhar com ele?
A gente tá tão feliz! O Rosemberg é um encantador de atores! Primeiro, acho que não sou, graças a Deus, uma atriz com estigma – como muitos dos meus colegas carregam. Acho até uma sorte ser assim. Digo isso no sentido que não faço sempre o mesmo papel, não pensam em mim apenas para a rica, ou a pobre, a mocinha, ou a vilã. Não tenho exatamente a cara de um só tipo. Não pareço ser nordestina, por exemplo, mas também posso ser. Isso dos laços familiares é muito forte para mim. Em Vendo ou Alugo estava ao lado da minha mãe, aqui em Os Pobres Diabos divido a cena com o Chico… isso é muito legal. No mesmo ano, tive a oportunidade de fazer uma riponga, de cabeça nas alturas, e uma quase-vilã.
Você acha que foi por isso que o Rosemberg lhe convidou para esse papel?
O Rosemberg reconhece esse espectro mais amplo em mim, com certeza. Ele conseguiu me ver nesse filme como uma nordestina vulgar, gostosa – não que eu seja, mas ela se acha. Poucas vezes tive a chance de explorar esse lado sexual, esse tipo de personagem, pois ele não é óbvio para Silvia Buarque! Não é mesmo, nunca tinha feito antes, nem fiz depois. Então, acho que o Rosemberg fez uma aposta, e tive muita sorte de ter contado com essa confiança. Foi um processo que construímos juntos. Ele teve que vir muitas vezes no meu ouvido pra me corrigir, me chamou atenção no sotaque, por exemplo, que estava carregado demais. Dei trabalho para ele! Não cheguei com essa Creusa pronta, do jeito que ficou! Ele me conduziu muito. Essa que está agora na tela é uma feita a partir daquela que eu já tinha comigo. E ele foi muito paciente, um verdadeiro doce. Porém, depois que achamos o tom, foi liberdade total! Não precisou me dizer mais “quero que você faça parecido com isso, sei lá o que”. Não, virou uma outra coisa! Quando percebi que não estava agradando, me coloquei à disposição dele para os ajustes necessários. Mas depois disso, nunca mais falou nada, tudo rolou!
No centro da ação de Os Pobres Diabos está o universo do circo, que é uma arte que parece estar em extinção. Qual você acredita ser a maior mensagem do filme?
E foi em um circo de verdade, sabia? A produção comprou aquele circo, porque precisavam de um para a história – você, que sabe como a história termina, está me entendendo, mas não vamos dar spoilers para o leitor! Os donos aceitaram, porque com o dinheiro que ganharam puderam pagar suas dívidas e remontar o próprio circo. Muitos dos atores do filme, aliás, era artistas circenses de verdade. O circo que mostramos é um sem maquiagem. Pegaram algo real. Acho que a mensagem, e percebi isso somente agora, na pré-estreia, é “resistência”. O circo é a arte mais pobre, me remete muito a teatro. Quando comecei, anos atrás, nos apresentávamos de quarta a domingo, hoje é só no fim de semana. A gente é teimosa, porque faz o que gosta. Pra mim, estar de novo nesse universo foi muito legal, pois lembrou bastante minha infância. Nos anos 1970, tinha um circo que volta em meia vinha para a Gávea, e meu pai me levava sempre que sobrava um tempo. Lembro, por exemplo, que não gostava do palhaço – não era medo, só não achava graça! Mas adorava corda bamba, trapézio… era tudo muito mágico!
Os Pobres Diabos ganhou o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular no Festival de Brasília. Ou seja, comunicação com o público existe. Como está a expectativa para agora, com o filme finalmente entrando em cartaz?
Pois é, foi lindo! Eu estava presente nas duas sessões que tivemos lá em Brasília. A primeira, com todos os problemas, ao ponto que acabou sendo cancelada, e a segunda, quando tudo deu certo, mas foi num horário alternativo, tarde, atrasando todo mundo. A gente se sentiu super prejudicado com tudo aquilo. Mas daí acabamos premiados. E isso foi uma grande surpresa. Torço muito para esse filme, mesmo ele estando sendo lançado em poucas salas – na região Sul ele nem vai entrar em cartaz, no Rio de Janeiro e em São Paulo são em horários limitados. O que espero é o mesmo que falamos antes, que ele resista em cartaz! Que comece a ser visto, mesmo que aos poucos, e se mantenha, que vá aumentando sua oferta, até que as pessoas o descubram. Enfim, é o que todo mundo quer, que seja visto. Se isto acontecer, a missão estará cumprida.
(Entrevista feita com a atriz direto do Rio de Janeiro em 05 de julho de 2017)