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Os Primeiros Soldados :: “O estigma da AIDS está na raiz da homofobia que a gente sofre hoje em dia”, afirma Rodrigo de Oliveira

Publicado por
Bruno Carmelo

A edição 2021 do Festival do Rio abriga as primeiras exibições no Brasil de Os Primeiros Soldados (2021), drama dirigido por Rodrigo de Oliveira. A trama se passa entre os anos de 1982 e 1984, quando a epidemia de HIV e AIDS chegou ao Brasil. Dois amigos gays (interpretados por Johnny Massaro e Vitor Camilo) e uma amiga travesti (Renata Carvalho) descobrem estar contaminados, e se afastam num sítio onde catalogam a evolução da doença e oferecem apoio um ao outro.
Ao mesmo tempo, eles têm a preocupação de alertar o resto da comunidade sobre este perigo ainda sem nome, convenientemente ignorado pelas autoridades. Leia a nossa crítica. O Papo de Cinema conversou com o cineasta sobre o projeto comovente, repleto de belas atuações, que coloca os indivíduos soropositivos em posição de autonomia, ao invés de enxergá-los como vítimas. Oliveira ainda explica a importância deste filme no Brasil conservador e reacionário do atual presidente:

O diretor Rodrigo de Oliveira no 52º International Film Festival of India (2021)

Por que decidiu abordar o HIV/AIDS pela metáfora da guerra?
Essa é uma escolha tradicional quando se pensa nos primeiros momentos da AIDS, principalmente pelo que a Susan Sontag fala em Doença como Metáfora (1984), e depois em AIDS e Suas Metáforas (1989). As metáforas militaristas foram utilizadas para tratar questões médicas, porque isso desloca o lugar da vítima para o lugar de combatente. Como o filme fala desse primeiro momento, me parecia justo utilizar esta simbologia neste Brasil de 2021, onde qualquer metáfora militarista é malvista por causa da militarização do cotidiano e da política. Reclamamos de volta o lugar de combatente numa tradição muito cis hétero masculina. Os nossos soldados são os homens gays e as travestis. Isso fazia sentido para mim não apenas pelos estudos históricos, mas no tempo presente, enquanto maneira de reclamar de volta este lugar de ataque, ao invés de defesa, de vítima.

Os nossos soldados são os homens gays e as travestis.

Por isso decide colocar Suzano literalmente vestido como soldado? Era importante que a metáfora militar impregnasse as imagens?
O começo é um resumo do filme inteiro. No final, Suzano fala da história de um homem obcecado por uma imagem da infância, o que vem de Chris Marker com La Jetée (1962). Para mim, é uma tentativa de expurgar alguma ideia de masculinidade que nos foi imposta de alguma forma. Esse filme tenta contar uma história paralela à narrativa oficial. A versão oficial é aquela dos soldados que vão para o front sustentados pelo Estado, representando os verdadeiros patriotas. Já esses que lutam outras batalhas estão do lado de fora da História, não contamos a trajetória deles. A decisão de colocar Suzano traz esta ideia: o que vocês estão prestes a ver, sobre as primeiras pessoas que viveram com HIV, deveria ser o discurso oficial. Isso deveria fazer parte da História oficial tanto quanto qualquer guerra ou batalha na história do mundo.

A linguagem tem um papel fundamental: não se fala em HIV, seja por medo ou desconhecimento. Mesmo assim, os personagens pensam no vírus e na doença sempre.
A palavra AIDS é dita pela primeira vez nos últimos cinco minutos do filme, numa frase surpreendente. O Suzano diz: “Hoje acordei com a sensação estranha de que a AIDS pode ser uma coisa maravilhosa”. O filme propõe um pacto de ignorância com o espectador: sempre sabemos apenas aquilo que os personagens também sabem. Já vimos muitos filmes sobre AIDS, e 100% deles contam a narrativa europeia e norte-americana da crise. Temos uma imagem pronta do que é um filme de AIDS: ele se passa basicamente em hospitais, com uma rede de apoio heterossexual em torno das vítimas gays. Em casos recentes, de Hollywood, o caso gira em torno do personagem heterossexual, e os personagens LGBTQ ficam à margem. Alguns valores no filme me são muito caros. A gente entende a AIDS como uma doença que interrompeu muitos sonhos, mas nunca temos acesso a que sonhos são esses. Queria que os três personagens estivessem num dos dias mais feliz do mundo, no Ano Novo, quando se tem grande crença no futuro, além da fé, da esperança.
A experiência que eu tive com o HIV/AIDS quando estava crescendo tinha a ver com o desaparecimento. Já era no meio dos anos 1990, mas você ia à boate num dia, e dois meses depois, a pessoa não estava mais ali, e você sabia o que tinha acontecido. A história da crise da AIDS envolve uma crise de nomenclatura. O governo brasileiro falou a palavra AIDS pela primeira vez em 1986, mas a AIDS matava pessoas há quatro anos. No governo americano, foi em 1985, e a crise lá era muito maior. Ronald Reagan falou disso pela primeira vez três anos depois da primeira morte. Então, começaram a dar nomes alternativos, principalmente a “peste gay”. Se tanto os personagens quanto os espectadores não souberem o que está acontecendo, a descoberta coletiva me parece mais interessante. A gente vê os sintomas explícitos: o Suzano torna as marcas públicas, quando expõe para todo mundo. Mesmo assim, ali ainda não tinha nome, era apenas a imagem das coisas. As imagens das coisas vêm antes dos nomes.

A gente entende a AIDS como uma doença que interrompeu muitos sonhos,
mas nunca temos acesso a que sonhos são esses.

A imagem de corpos gays, trans e soropositivos é carregada de valor. Que cuidados tomou para filmar estes corpos?
Existe uma cena no filme quando Suzano recebe uma massagem da Rose e do Humberto, neste processo de autotratamento que eles se fazem. A Rose diz: “Suzano, tem uma manchinha nova aqui”, ou seja, tem um Sarcoma de Kaposi novo aqui. O Suzano fala: “Seja bem-vinda!”. Conversei muito com os três atores: Johnny Massaro, Renata Carvalho e Vitor Camilo. Esses corpos permanecem sendo deles, apesar das marcas que a doença deixa. Essa ideia de se registrarem o tempo inteiro mostra a preocupação não apenas com o registro médico, mas com a ideia de eternidade, de posteridade. Me parece importante que os corpos sejam apresentados do modo que estavam naquele momento. O Suzano abraça os sintomas, e isso está presente na ideia de que a AIDS pode ser uma coisa maravilhosa. Ele abraça os sintomas, as marcas, a magreza. A primeira vez que ele comenta sobre a perda de peso, o Suzano faz piada sobre caberem duas pessoas dentro das calças, e eles riem. Os amigos abraçam a doença, como se dissesse: esse é o meu corpo, esse ainda sou eu. Não se cria um corpo estrangeiro. O filme também abraça isso como filosofia e primado estético. Esses são momentos-chave para lidar com estes corpos novos, que merecem fazer parte da História. Eles merecem registro.

As sequências no clube Genet valorizam a rede de afetos, o carinho entre estes homens e as travestis. Como concebeu este espaço?
Isso cabe a qualquer minoria, quando faz uma obra de arte: a gente tenta contar uma história íntima, e ao mesmo tempo, somos muito devedores da história coletiva à qual nossa minoria faz parte. Era clara para mim a ideia de que o filme tinha três protagonistas, mas ela se passava no seio de uma comunidade. A Genet surgiu disso. Em termos práticos, tivemos cerca de 60 figurantes na primeira noite, e 100 figurantes na segunda noite. A comunidade gay fora do armário em Vitória em 1983 não devia ser muito maior do que isso. Provavelmente existiam ali todas as bichas fora do armário que existiam na cidade, que não tinham problema em sair e ser associadas àquele inferninho. Pensamos a boate como lugar de expressão livre, no final da ditadura. A primeira festa é clandestina: quando Humberto sai, vemos que a fachada está totalmente apagada, sem letreiros ou identificações. A segunda festa é um pouco mais relaxada, com gente na fila e janelas abertas.
Não basta apenas dizer que isso é comunitário: precisamos ver a comunidade de fato, na diversidade em que ela se expressa.  Na segunda festa, temos três planos de beijos seguidos: no primeiro, é um homem trans beijando um homem cis; no segundo, é um homem trans beijando uma mulher trans; e no terceiro, é um homem trans beijando um homem cis hétero. São dez segundos apenas. Ao mesmo tempo, fico pensando que talvez isso nunca tenha acontecido no cinema brasileiro. O barato era fazer um filme sobre a comunidade, mas também contar com essa comunidade. Todas as pessoas que estão naquela festa são pessoas LGBTQ, e o processo de seleção daquelas pessoas foi fundamental. Ações muito importantes ocorrem naquele espaço. 

Desde o começo, não queria que tivesse nenhuma cena de transmissão da AIDS no filme.
Essas cenas costumam ser muito culpabilizantes.

Em paralelo, o filme deixa o preconceito externo em segundo plano.
Desde o começo, não queria que tivesse nenhuma cena de transmissão da AIDS no filme. Essas cenas costumam ser muito culpabilizantes, quando se diz que tal personagem “pegou”… Mesmo assim, as transmissões de afeto e de conhecimento são fundamentais para esses personagens. A boate virou o espaço de transmissão de conhecimento, primeiro, pelo Humberto filmando todo mundo, registrando aqueles corpos inéditos no audiovisual da época. Eram os primeiros registros VHS. Na segunda festa, existe a transmissão de conhecimento, quando uma pessoa isolada diz: “Comunidade, isso pode acontecer com vocês. Tomem cuidado”. A rede de afeto se espalha pela irmã, pelo sobrinho. Queria um filme com nenhum personagem heterossexual, ou que isso não fique evidente, como é o caso da Maura. Mesmo nos lugares onde alguma incidência de estigma homofóbico pode acontecer, caso da cena do ônibus no início, o tema não ocupa o discurso do filme. A homofobia está sempre fora do quadro.
Esses exercícios que a ficção pode fazer, depois a realidade vai confirmar. A partir de 1987, 1988, e principalmente no começo dos anos 1990, as redes de apoio comandadas em geral por mulheres trans e travestis acolhiam pessoas doentes, expulsas de casa. Isso se tornou uma marca. Em todo o lugar, tinha uma ou várias casas específicas para proteger essas pessoas do confronto com o mundo hostil no lado de fora. Pensei: por que não encenar isso desde o começo? Se esse é um lugar onde a nossa sociedade vai chegar, por que não imaginar também um mundo onde elas possam existir livres de mais essa camada de opressão? A gente sabe que essas opressões existem, os sinais estão ali. Esse não é um filme livre de homofobia, porque ela faz parte do mundo onde o filme existe. Mas dentro do filme, a força da comunidade é fundamental.

Acredita que seja mais difícil produzir e depois exibir e lançar um filme LGBTQIA+ com essa temática?
Pesou sobre a gente, desde o desenvolvimento do projeto, o ineditismo do tema. No cinema brasileiro, temos alguns filmes onde os protagonistas vivem com HIV, mas eles não abordam exatamente a comunidade, não fazem um retrato da crise, sobretudo nesse período. Tinha uma expectativa, e também uma pressão por abrir uma porta. Isso foi até positivo para a gente. Ninguém sabia a história dos primeiros brasileiros a viver com HIV; era um motivo de curiosidade. A minha experiência com o filme é recente: ele passou por dois festivais por enquanto, e vai estrear agora no Festival do Rio. Mas tenho a sensação de que esse ineditismo desperta nas pessoas uma identificação, ou pelo menos um reposicionamento das suas próprias memórias, sobretudo pelo que estamos passando agora, com a pandemia da Covid. Mantendo as suas diferenças, algumas delas fundamentais, nos dois casos a maioria das pessoas conhece alguém que em algum momento morreu de AIDS.
O filme traz essa história à tona. Isso aconteceu muito nas exibições na Alemanha e na Índia. As pessoas chegavam para mim dizendo que tiveram um tio, primo, vizinho ou mesmo o pai mortos pela AIDS. Eu adoraria que o filme nascesse datado, que fosse só um retrato daquela época, e que certas coisas não se repetissem nunca mais. Mas a crise da AIDS ainda é muito presente: 11 mil pessoas ainda morrem de AIDS por ano no Brasil. Um mês atrás, o presidente do Brasil disse para as pessoas não tomarem a vacina da Covid, porque ela estava dando AIDS para as pessoas. O estigma se renova, na mesma proporção em que é preciso conhecer e entender humanamente quem são essas pessoas, e por que passam por isso. O filme provoca as pessoas no lugar certo, e vai ser desgostado pelas pessoas por quem ele tinha que ser desgostado mesmo. É um filme que sustenta uma bandeira política muito evidente. 

Um mês atrás, o presidente do Brasil disse para as pessoas não tomarem a vacina da Covid,
porque ela estava dando AIDS para as pessoas. O estigma se renova.

Nunca teve expectativas então de conquistar o campo oposto, abrir o debate com espectadores conservadores?
O estigma da AIDS está na raiz da homofobia que a gente sofre hoje em dia. Quando a justiça proíbe o performer numa galeria de ficar nu e ser eventualmente tocado por uma criança, o medo é de transmitir alguma coisa. De alguma forma, isso que a gente é pode ser transmitido. A AIDS está na origem disso. Toda pessoa LGBTQ tem que lidar com o legado da AIDS em algum momento, porque isso faz parte da nossa identidade. Essas pessoas que vieram antes da gente permitiram que a gente existisse, e jamais vamos conhecer a maioria delas, porque morreram pelo caminho. Não dá para lutar contra a homofobia sem lutar contra a sorofobia. Na raiz, elas fazem parte da mesma luta. No momento em que a coisa aperta, o conservadorismo vai sempre se lembrar disso. Para eles, a “peste gay” tem esse nome até hoje, mesmo que os heterossexuais sejam atualmente atingidos em proporções muito maiores pelo HIV. Mas para uma parte da população, essa ainda é a peste gay.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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