Marcelia Cartaxo está vivendo um momento que toda atriz espera uma vida toda – e o melhor, essa não é a primeira, mas a segunda vez que algo assim lhe acontece. Após ter estreado no cinema com pouco mais de vinte anos como protagonista de A Hora da Estrela (1985) – e, por esse desempenho, ganhar o Urso de Prata no Festival de Berlim e o Candango no Festival de Brasília – ela seguiu firma na carreira, alternando sucessos reconhecidos pelo público e pela crítica (Madame Satã, 2002, ou A História da Eternidade, 2014), com outros projetos, seja no cinema, teatro ou televisão, que não valorizaram todo seu potencial. Mas agora voltou a ser aplaudida entusiasticamente como a personagem-título de Pacarrete (2019), que entrou finalmente no circuito comercial no final do ano passado e agora se encontra disponível nas plataformas de streaming e VoD. Por esse mais recente desempenho, vem acumulando troféus por onde passa: Gramado, Vitória e Los Angeles, entre outros. Logo após a primeira exibição do filme no Brasil, o Papo de Cinema se sentou com a atriz e conversou com ela sobre esse impressionante trabalho. Confira!
Olá, Marcélia. Como você entrou em contato com a história de Pacarrete?
Quem me trouxe a história dela foi o Allan (Deberton, diretor). Quando fez o primeiro curta, Doce de Coco (2010), tava procurando por uma preparadora de elenco. A Soia Lira nos apresentou, achando que eu poderia fazer esse trabalho. Ela é minha amiga de infância, e foi responsável por essa “ponte” entre nós. Naquele filme, de profissional, tinha apenas a Soia e eu, que acabei também fazendo uma pequena participação. O resto era todo mundo iniciante. Certo dia, voltando dessas filmagens, o Allan chegou até mim e disse: “Marcélia, tem uma personagem linda, chamada Pacarrete, e a história dela vai ser o meu primeiro longa”. Veja bem, isso aconteceu dez anos atrás!
Quando aconteceram as filmagens de Pacarrete?
Nós nos reunimos em 2018. Mas desde aquela época ele seguia falando comigo a respeito dessa mulher. Dizia que era muito louca, mas também muito culta. Ele tinha apenas 12 anos de idade quando teve contato com a Pacarrete verdadeira. Mas lembrava bem dessa figura excêntrica, e de vários detalhes a respeito dela. Tudo isso ia nutrindo uma curiosidade dentro de mim.
Nessas conversas entre vocês, tu conseguia te ver como a Pacarrete?
De jeito nenhum! (risos) Pra começar, nunca fui bailarina. Sempre fui magra, fisicamente em forma, mas não tenho corpo de quem dançou desde criança, né? E cada nova coisa que ele ia lembrando sobre ela só aumentava a minha preocupação (risos). Mas era um diálogo, houve bastante tempo para trabalharmos essa ideia. Chegou um ponto que achava até que nem ia mais acontecer. Só depois, quando o edital foi aprovado, é que ele voltou a falar comigo e disse: “agora é de verdade, a gente vai se preparar e tu vai ser a Pacarrete”. Nossa, aquilo me deu um frio no estômago! Sabe, o que antes era só conversa, agora havia virado verdade! Mas vamos para a prática, e fui com disposição.
Quais foram os primeiros passos para virar Pacarrete?
Bom, tinha que aprender a dançar, né? Ter uma noção, ao menos. Então, o Allan providenciou um casal de professores de dança. Teve também coreógrafo, fonoaudiólogo. Mas nada me acalmava. Durante todo o processo me sentia angustiada. Afinal, se não desse conta da personagem, de que adiantaria tudo aquilo? Era uma figura estranha, muito grande. A dedicação seria imensa, pois está em praticamente todas as cenas do filme. Mas mais difícil foi, depois de velha (risos), em apenas um mês e meio, ter que dominar ao menos os passes básicos do balé. Tomei remédio, senti dores imensas nos pés. Mas fazia parte. Tinha que aprender a segurar a onda.
Outra característica forte da Pacarrete é a voz dela.
Foi o Allan que me chamou atenção sobre isso. No meio da preparação, quando achava que já estava tudo certo, veio até mim e disse: “sabe, Marcélia, tava pensando, acho que você poderia colocar uma voz específica para a Pacarrete”. Nossa, foi outro tremor nas pernas. Na hora só respondi: “vamos ver, vamos ver”. Não tinha nem ideia por onde começar. Pelamordedeus! Passamos uma noite inteira, eu e ele, testando e experimentado todos os tipos de vozes que consegui criar, até encontrar uma que me fosse confortável e conseguisse levar durante todo o filme. Mas ela cansava, vou te dizer! Até mesmo nas filmagens foi um pouco difícil. Cada cena filmada, virava para o Allan e lá vinha ele: “nossa, ficou ótimo, mas… cadê a voz?”. Eu esquecia! (risos)
Em que momento você se deu conta de que havia encontrado a voz certa para Pacarrete?
Lembrei de uma menina que morava na mesma rua que eu, já na Paraíba, que se chamava Telma. E ela falava mesmo desse jeito, meio rasgado, entre xingar e resmungar. Quando essa lembrança veio até mim, foi um estalo que me deu! Pronto, essa é a Pacarrete! Comecei a treinar todos os dias, por horas, até me acostumar.
Pacarrete foi uma personagem que te consumiu muito?
Nossa, muita energia coloquei nela. Só olhar para as fotos do final das filmagens, nunca estive tão magra como naquela época. Virei um palito (risos). Me esforcei muito para dar vida à Pacarrete.
No entanto, na cena final é uma outra Pacarrete que surge, certo?
Com certeza. Quando a irmã dela morre, ela se transforma por completo. Se fecha dentro dela mesma. Já teve gente que veio me dizer que ela se parece com a Edith Piaf nessa parte.
O último diálogo dela com a irmã é maravilhoso, vai do drama à comédia em instantes…
E foi filmado inteiro em sequência. É dramático, mas mesmo com tudo isso, depois de todo aquele sofrimento, ela consegue transformar esse sentimento em outra coisa. E estamos nós duas em cena, com a câmera praticamente parada. Teve só um ensaio antes, pra você ter ideia. Claro, teve ajustes de som, repetimos umas duas ou três vezes no set, mas foi bastante simples e rápido, até. Tudo para dar opção de corte para o Allan.
Ao ler o roteiro pela primeira vez, já havia percebido a importância dessa passagem?
É uma sequência que cresce na tela, mas não tinha essa dimensão no roteiro. Sabia que teria que ter sentimento, mas não imaginava que seria tão crucial da jornada dela. Sou muito sentida com as coisas, sabe? Qualquer coisa, já estou chorando. Consigo me colocar no lugar dos outros com facilidade. Acho que essa sensibilidade é o meu legado. É muito intuitivo, às vezes acabo fazendo sem perceber a importância, algo que só vai me bater depois. Quando terminou a sessão do filme em Gramado, a primeira no Brasil, o Lázaro Ramos me abraçou e perguntou: “você tem dimensão do que fez nesse filme, com essa personagem?”. Fiquei olhando pra ele, e pensei a respeito, porque não tenho, não. Sou muito na base da intuição. O meu teatro, por exemplo, sempre foi na prática. Se alguém me der uma cena pra trabalhar, tenho que ir pra casa, sentar e ficar pensando a respeito. E praticar muito, seja chorando ou rindo. Porque não adianta só pensar, tem que fazer também.
Marcélia, você é uma das atrizes mais premiadas do cinema brasileiro. Como é carregar consigo toda essa relevância?
Olha, não sinto esse peso. Às vezes me perguntam: “quando você sentiu que era atriz de verdade?”. Nem sei responder. Quando ganhei o Urso de Prata em Berlim, por A Hora da Estrela (1985), tudo o que pensei foi: “nossa, que legal”, mas não fiquei com aquilo na minha cabeça por muito tempo. Depois é que foi ganhando essa dimensão. Foi só quando, já de volta ao Brasil, me disseram que eu havia sido a primeira atriz brasileira a conquistar esse troféu. “Você agora vai entrar para a história do cinema brasileiro”, me disseram. Como não se impactar com isso? E era um filme de e sobre mulheres, com a Suzana Amaral, do livro da Clarice Lispector… ou seja, só nomes reconhecidos. Aí tudo me bateu! Minha primeira reação foi chorar (risos). A Macabéa foi muito intuitiva, veio da minha experiência anterior no teatro. Eu era muito econômica nos gestos.
Essa seria a principal diferença dela em relação à Pacarrete?
O teatro é a arte dos excessos, né? Tudo precisa ser grandioso. Aconteceu que fui por um caminho oposto. E deu certo. Suzana Amaral me viu primeiro no palco, na minha peça de estreia, e foi sensível o suficiente para perceber que, mesmo eu fazendo algo completamente diferente do que ela imaginava, conseguiu vislumbrar em mim aquela personagem. Ela me disse depois, que foi naquela hora que pensou: “essa é a minha Macabéa”.
Pacarrete completa um ciclo, que começou lá com a Macabéa?
Acho que nesse momento atual, que não mais nos enxergamos, é muito impressionante que personagens assim consigam ganhar força. É um filme feminino, mas também universal. Todos os aplausos, os elogios, tudo é emocionante. Só não posso dizer que estou vivendo algo único porque é a segunda vez que passo por isso. A primeira foi com A Hora da Estrela. Depois de Berlim, quando passou no Festival de Brasília, fui levada nos braços até o palco. Foi algo muito louco. Não sei se fecha um ciclo, mas sei que tá acontecendo de novo. Atingi mais uma coisa gostosa, que foi tocar o coração das pessoas. Emocionar todo esse público, algo que tá cada vez mais difícil de acontecer.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2019)