Allan Deberton é um dos principais nomes do novo cinema cearense – e brasileiro também, é claro. Diretor, produtor e roteirista, após apenas três curtas-metragens, estreou no formato longa com o aclamado Pacarrete (2019). Inspirado em uma personagem real, essa fábula estrelada por uma Marcélia Cartaxo em estado de graça já rodou o mundo e conquistou dezenas de prêmios no Brasil e no exterior – Estados Unidos, China, Colômbia e Índia foram apenas alguns dos lugares por onde colecionou troféus. Por aqui, se consagrou como um dos maiores recordistas da história do Festival de Gramado – nada menos do que 8 kikitos, entre eles os de Melhor Filme (Júri Oficial e Popular), Direção, Atriz e Roteiro! Com tanto sucesso, as expectativas para o seu lançamento comercial estavam nas alturas. Mas, com tudo confirmado, ninguém esperava que uma pandemia mundial colocasse o mundo inteiro de quarentena – e provocasse um adiamento de meses para essa estreia! Mas o dia finalmente chegou, e Pacarrete já está em cartaz. Quem fala melhor sobre o filme, suas inspirações e histórias de bastidores, é o responsável por tudo isso. Confira!
Pacarrete é um projeto bastante pessoal, não?
Com certeza. Não só meu, mas de todo mundo que esteve envolvido. Sou de Russas, no interior do Ceará, a mesma cidade de Pacarrete. Conheci essa mulher, quando era garoto. O primeiro acesso que tive ao cinema foi vendo filmes dos Trapalhões, em um cinema que hoje nem existe mais. Então, pegava muita coisa nas videolocadoras. E.T.: O Extraterrestre (1982) era o meu preferido, mas via muito kung fu também (risos). Ao cinema brasileiro, o acesso era raro. Não sei explicar, mas foi desse envolvimento, desde pequeno, que nasceu essa vontade em mim: “um dia vou fazer cinema também”. Costumava transformar caixas de sapato em câmeras, e levava para a escola. Estudei em colégio interno, e teve uma vez que menti para uma das irmãs – as professoras eram freiras – e afirmei que sabia mexer na câmera do colégio. Ela deixou levar para casa. Nunca tinha mexido em algo parecido, mas precisava ter esse contato. Foi assim que comecei a fazer meus primeiros filmes. Brincadeiras de criança, mas que me levaram até esse momento.
Você lembra do seu primeiro contato com a verdadeira Pacarrete?
Um dia estava voltando da escola quando vi uma senhora louca, com uma vassoura, dançando na rua, no meio da praça. As pessoas apontavam e diziam: “olha lá a Pacarrete”. Ela já estava em um estágio perturbador. Sempre pensei que essa palavra, “pacarrete”, significasse alguém doido, doente. Não tinha me dado conta que era o nome dela. Imaginei que fosse uma qualidade, uma característica, e não como se chamava. Foi só depois da morte dela que um amigo me disse: “Allan, você sabia que esse nome, na verdade, significa ‘margarida’, em francês, e que é por isso que ela usava margaridas no chapéu?”. Aquilo foi um choque, pois desmontou a figura que fazia de uma louca berrante. Vi poesia onde parecia não ter. Quando estava com uns vinte anos, frequentava a Faculdade de Cinema. Foi quando decidi que queria fazer um filme com a história dela.
Quais foram os teus primeiros passos?
Precisava me sentir preparado para fazer jus a essa personagem. Afinal, pelo que estava descobrindo a respeito, a partir da pesquisa que comecei a fazer com conterrâneas dela, pessoas da mesma idade que tinham conhecido ela, consegui entender melhor a personalidade dessa mulher. E não só ela, mas de todos aqueles ao redor. O personagem que o João Miguel faz, por exemplo, é uma figura real, o Hermano. O João foi lá, conheceu ele, os dois conversaram. Foi muito bonito.
Podemos começar a falar do elenco. E aproveitando o gancho, como foi a escolha do João Miguel?
Depois dessa conversa com o Hermano, o João chegou até mim e disse: “Allan, sei porque você me chamou. Porque esse homem tem uma alma feminina”. E era exatamente isso. Disse para ele: “preciso de um ator, de um homem, com essa sensibilidade”. Não sabia se encararia como um elogio ou como uma ofensa (risos), mas precisava ser honesto. Felizmente, ele adorou essa definição. E entendeu o que eu precisava. Era essa característica que fez com que a Pacarrete se apaixonasse por ele. Ela se vê através dele.
Pacarrete é um filme de mulheres muito fortes.
Realmente, é bastante feminino. As próprias mulheres que estão ao redor de Pacarrete, a irmã e a empregada, são inspiradas nessas que conviveram com ela, nas histórias que ouvi. A Pacarrete, na verdade, teve várias irmãs. No entanto, se dedicava a apenas uma, que era do primeiro casamento do pai. Essa seria a Chiquinha. Pelo que se sabe, Pacarrete nunca teve ninguém, não se casou, foi solteira a vida inteira. Nem mesmo namorou, nem teve filhos. Ao mesmo tempo, escolhia homens bem-sucedidos da cidade, como o dono de uma grande loja, por exemplo, ou o prefeito, e inventava que estavam apaixonadas por ela (risos). “Não quero ele, mas fica insistindo, está sempre atrás de mim”. Coisas assim ela falava.
O núcleo formado por Pacarrete, Chiquinha (Zezita Matos) e Maria (Soia Lira) é uma verdadeira sitcom. Dá pra imaginar várias temporadas delas juntas. Como você formou esse trio?
A Soia, na verdade, foi quem juntou esse grupo. Ela estava no meu primeiro curta, Doce de Coco (2010). Foi quem me levou até à Marcélia Cartaxo. Claro que a conhecia, sabia que era uma grande atriz, mas nunca tinha tido contato. Acabou que Marcélia fez uma participação nesse mesmo curta, e nos tornamos amigos desde então. Ela fez a preparação de elenco do meu segundo curta, O Melhor Amigo (2013), que tinha o Jesuíta Barbosa como protagonista. Foi nessa época que falei pela primeira vez do Pacarrete. Comentei sobre essa mulher, mostrei a casa dela, disse que ia fazer um filme a respeito e que a queria como protagonista. Sabe qual foi a resposta dela? “Bora”. (risos) Isso faz uns dez anos, levou tempo até tudo ficar pronto.
Qual o maior desafio enfrentado pela produção durante estes anos?
O dinheiro. Esse é um filme totalmente BO, como a gente chama, ou seja, de baixíssimo orçamento. Todo mundo veio junto, apostou na ideia, só assim foi possível fazer. Justamente por isso, fiz questão de me cercar das pessoas mais afetivas que encontrei. A Soia já era minha amiga, a Zezita Matos era uma atriz que admirava há tempo, a Marcélia esteve desde o começo, o João Miguel eu era fã desde O Céu de Suely (2006). Quando todos me confirmaram que estariam no projeto, me veio a segurança que precisava para levar a ideia adiante. Tudo isso me emocionou bastante.
Vamos falar um pouco sobre o teu trabalho específico com a Marcélia Cartaxo. Como vocês construíram essa personagem?
A Marcélia sempre soube do desafio que seria fazer a Pacarrete. Fiz questão de abastecê-la com a maior quantidade de informações possíveis. Que era uma bailarina, ficava na ponta do pé, falava francês, cantava. No começo, virou pra mim e disse: “como assim, você acha que consigo fazer tudo isso?”. Sempre acreditei nela. Obviamente, contamos com o apoio de muita gente. Tivemos coreógrafos que trabalharam diretamente com ela. O Christian Duurvoort foi nosso preparador de elenco. Tivemos no set também professor de canto e de piano.
Imagino que tenha tido um trabalho de voz muito forte…
Outra pessoa muito importante foi o fonoaudiólogo, fundamental para criar uma voz que, ao mesmo tempo, fosse saudável para a Marcélia, mas também diferente de como ela fala normalmente. Era fundamental ter essa lembrança, que fosse a mais próxima possível da Pacarrete da vida real. Ao mesmo tempo que alguns disseram que tinha uma voz muito doce, muitos afirmavam que estava sempre berrando, como uma bruxa, ou um sapo. Dentro desse imaginário, tentamos entender qual seria essa voz e até onde conseguiríamos chegar através do potencial da Marcélia.
Marcélia Cartaxo criou uma personagem completamente diferente de tudo que havia feito antes. Como ser fiel a essa criação durante as filmagens?
Pois então, filmamos durante quatro semanas. Na verdade, existiu uma conjunção celestial, costumamos dizer. Durante o processo, a emoção era forte em relação ao que estávamos criando. Guardei bastante o roteiro, até o momento em que fizemos uma primeira leitura com o elenco reunido. Todo mundo aceitou participar do filme sem ler o roteiro inteiro, olha que loucura. João Miguel, por exemplo, aceitou após uma conversa de cinco minutos por telefone (risos). Mas isso foi necessário pois seguia fazendo diferentes tratamentos do texto. Só quando estava seguro é que mostrei pra todos. Até porque sabia que, naquele momento, não dava mais pra ninguém desistir (risos).
Quantas versões ao todo o roteiro teve?
O roteiro que filmamos é bastante diferente da primeira versão. Tivemos as colaborações do Samuel Brasileiro e da Natália Maia, além do André Araújo, que esteve desde o começo. A confusão era grande, pois a todo momento surgiam questões novas sobre a personagem, ou outras cenas eram criadas. Foi um processo bastante colaborativo, cada diálogo teve muita discussão, até chegarmos a um formato que agradasse a todos. Foi enriquecedor, pois acabamos descobrindo bastante sobre ela durante esse período.
Foi difícil encontrar o tom certo da narrativa, entre o drama e a comédia?
Não tem como falar sobre a Pacarrete, e isso você pode perguntar a qualquer morador de Russas, sem ser com um sorriso no rosto. Todo mundo tem uma história engraçada sobre ela. Várias poderiam estar no roteiro, mas, se a gente tivesse feito isso, seria uma série, e não um filme. Vários momentos episódicos, como ‘Pacarrete vai à feira’, ‘Pacarrete procura emprego’, ‘Pacarrete se apaixona’… nessa linha, entende? Existe um frescor e uma lembrança afetiva muito forte ao redor dela. Apesar de que haviam também mil situações de confusões, tumulto, brigas. Ela não permitia que pisassem na calçada dela, por exemplo. Isso era real. Muita gente aturava o gênio dela pra não criar conflito. Vizinha à casa da Pacarrete, teve uma sorveteria que faliu porque as pessoas tinham medo de passar na calçada (risos)! Era importante ter isso no filme, mas também não poderia ser exagerado. Não queríamos uma série de esquetes, estávamos atrás da alma da personagem.
Há duas cenas particularmente emocionantes em Pacarrete. A primeira, é a visita à casa abandonada.
Esse é um momento de entreato. Ela é uma bailarina, uma arte muito dramática. Todos os balés contam histórias através da dança. Precisava desse momento, até para remeter a uma estrutura musical. Já temos a dança, faltava a música. A pesquisa da trilha sonora começou junto com a história, levou o mesmo tempo. Essa parte da casa abandonada, portanto, é uma quebra. É a primeira vez que se sente realmente sozinha e abandonada. É, também, o instante de respiro antes de seguirmos para a segunda parte da trama. É quando faz seu número solo. E é também quando encontra o He-Man, o cachorrinho, que trata como um filho.
Há também o momento em que a vemos urinando de cócoras. Qual o motivo dessa passagem?
É uma visão um tanto polêmica. Concordo que seja um tanto animalesca, estranha. Na verdade, tínhamos duas figuras que se destacavam na cidade, a Pacarrete e a Oscarina. Essa segunda era parecida com a nossa protagonista, mas mais largada, mais transeunte. A Pacarrete, que havia sido bailarina clássica, tinha mais finesse. A Oscarina, por sua vez, era popular. Você a encontrava nos becos, nos cantos. Nesse filme, estávamos falando da Pacarrete, mas também de vários loucos que existem em todas as cidades. Então, foi uma maneira de trazer um pouco da Oscarina até a Pacarrete. E, de certa forma, falar das duas. Achei interessante essa lembrança. Se a Pacarrete real chegava a se comportar desse jeito, ninguém sabe. Mas eu mesmo presenciei a Oscarina naquela posição, no meio da rua.
Pacarrete teve a sua primeira exibição no Festival de Shanghai. De lá para cá, foram dezenas de prêmios e festivais. Como tem observado essa repercussão?
Foi muito afetiva a nossa recepção na China. O público era atencioso, silencioso, levam tudo muito a sério. O festival, para você ter uma ideia, tem 47 salas a seu favor! Ou seja, há diversas exibições, em todos os horários possíveis. É enorme, tudo é superlativo por lá. Ficamos felizes com essa experiência. As críticas foram muito lindas também. O que aconteceu em Gramado também foi surreal, ninguém esperava uma reação tão catártica. As pessoas riam até de coisas que não esperávamos. Tinha medo que não entendessem o que queríamos transmitir, mas fomos recebidos de forma tão calorosa desde o primeiro segundo. Foi lindo. Nós éramos o menor filme, com o menor orçamento, e nos deram todos aqueles prêmios. Foi tudo inesperado. E muito feliz.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2019)
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