Marcelo Gomes não só é um dos grandes do cinema nacional, com uma carreira que se estende por quase três décadas dedicadas ao audiovisual brasileiro, como é também um queridão, uma figura de fala fácil e com a qual poderíamos ficar conversando por horas. Premiado nos festivais de Cannes, Brasília, Guadalajara, Havana, Lima, Los Angeles, Mar del Plata, Miami, Paris, Rio de Janeiro, San Sebastian e São Paulo, entre tantos outros, já foi convidado para as mostras competitivas de Berlim e Veneza. Além disso, soma reconhecimentos no SESC Melhores Filmes, Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro. É mole ou quer mais? Ele, certamente, não está satisfeito. Inquieto por natureza, está sempre envolvido com novos projetos. Seu mais recente trabalho é o drama Paloma (2022), inspirado em uma notícia que leu no jornal e que foi o grande vencedor do Festival do Rio desse ano. Para saber mais sobre o filme, conversamos com o cineasta logo após à estreia, no Festival de Munique, na Alemanha, há alguns meses. Confira!
Olá, Marcelo. Como tem sido essa maratona de divulgação para o lançamento de Paloma?
Olha, tem sido intensa. Estou bem cansado. Cansado, mas feliz.
Que bom. Paloma foi inspirado em uma notícia de jornal, confere? Como ‘nasceu’ esse filme?
Há dez anos, ou mais, me deparei com essa notícia. Sabe, adoro ler jornais e revistas. Meu cinema tem um pé no realismo, no documentário. Antes de estudar Cinema, estudei Jornalismo. E foi em um jornal que fiquei sabendo da história da Paloma, uma mulher trans, agricultora, do agreste, sertão de Pernambuco. Ela promoveu a ira de toda uma cidade ao querer casar de vestido branco, véu e grinalda. Me emocionei muito, pois vi nela várias camadas. Falava de amor, preconceito, afeto e ódio. De conservadorismo e de sonho. Vivemos em um país onde a violência em relação à comunidade LGBTQIA+ é imensa. Temos o triste recorde de sermos o país que mais mata mulheres trans por ano, isso segundo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). E tem aumentado recentemente, graças ao discurso violento do governo atual contra as minorias. Lógico que, naquela época, o governo era outro – se fosse esse, talvez o filme nem pudesse ter sido feito.
Quando foi isso?
Foi no início dos anos 2010, lá por 2012 ou 2013. Fui desenvolvendo a história aos poucos, sem pressa. Consegui ganhar alguns editais antes desse governo, o que ajudou a seguir tocando o projeto. Tinha duas pessoas, amigos meus, ao meu lado: o Armando Praça e o Gustavo Campos. Ao mesmo tempo, fomos ao agreste pernambucano, mas para fazer o doc Estou me guardando para quando o carnaval chegar (2019). Foi a oportunidade de conhecer muitas mulheres trans que vivem aquela realidade parecida com a da Paloma. Ou seja, tinha como referência a pessoa real e também outras como ela que moram na mesma região. Foi um momento de confrontar a história que havia lido com várias outras similares e, a partir disso, dar uma estrutura ao roteiro. Também tivemos a consultoria da Tertuliana Lustosa, uma escritora trans da Bahia. E quando as atrizes chegaram – fiz questão que fossem também trans para os testes dos papeis de mulheres trans no filme – da mesma forma trocaram muito comigo, dando novas camadas às personagens.
Foi um processo colaborativo, portanto?
Exatamente. Essas atrizes, por exemplo, são diferentes das personagens que interpretam. A realidade é outra. A Kika Sena, que faz a Paloma, tem graduação e mestrado em Teatro. É uma figura incrível.
Como você encontrou a Kika Sena?
Ela é o máximo. A Maria Clara Escobar faz o casting de todos os meus filmes, e tem um olhar apurado. Assim como fizemos em Joaquim (2017), quando descobrimos a Isabel Zuaa, tudo fruto de pesquisa e vários testes. Quando olhei para o da Kika, não a conhecia até aquele momento. Como não temos dinheiro pra viajar o Brasil todo, pedimos que as atrizes interessadas gravassem por conta própria e nos mandassem vídeos para que a gente pudesse avaliar. Quando a vi, a primeira coisa que me chamou atenção foi: “preciso desses dois olhos, eles têm muito a me dizer”. Ela vem do teatro, com um registro completamente diferente. É o primeiro longa dela, nunca havia trabalhado com cinema. Alguns professores, aliás, a haviam alertado de que nunca conseguiria fazer cinema, pois a consideravam “overacting”, exagerada. E a Paloma é completamente contida, você viu no filme.
Foi automático? Uma questão de colocar os olhos nela e saber que era quem você estava procurando?
Não foi algo que apenas eu senti. A Silvia Lourenço, que também é atriz, me ajudou na preparação do elenco, e fomos pouco a pouco construindo a Paloma. Primeiro, mostrando filmes para ela. Depois trabalhando na fisicalidade da personagem: como a Paloma ia andar, quais seriam seus trejeitos, a timidez, a ingenuidade. Tudo isso teria que transmitir sem diálogos. Foi um processo longo. Para ter ideia, só fui dar o roteiro para Kika no final dos ensaios. Antes, queria saber como a Paloma iria reagir a cada uma dessas situações. Teve também o lance da memória afetiva. A Kika Sena é alagoana, e a mãe dela também. Então, através dela conseguiu recuperar muito dessa experiência. O sotaque é maravilhoso. Comete microerros de português para compor a personagem. Cinema é isso, é você entrar de corpo e alma no personagem.
Imagino que tenha sido uma relação de confiança com o elenco.
A gente discutia coreografia, conversava antes sobre todos os elementos. A confiança era grande, por todos os lados. Respeitei o elenco, e fiquei feliz com as críticas que apontam como essa relação transparece na tela. E não estava sozinho. A Samya de Lavor, por exemplo, foi quem preparou a Anita de Souza Macedo, a criança, pois também tem uma filha da mesma idade. Era uma grande família.
O filme tem, também, cenas de sexo e nudez.
Mas sem nenhum desejo voyeurístico ou fetichista em mostrar o corpo da Paloma. Ela, quando aparece em cena, é de uma forma normal, como qualquer mulher. Se aparece tomando banho, é porque faz parte do cotidiano dela.
Essa cena do banho, logo no começo do filme, tem um simbolismo forte. É como se estivesse se desnudando para o espectador.
É quando se estabelece essa ponte com a audiência. “Eu sou Paloma, e vou contar toda a minha vida para vocês”, sabe? Achei lindo o efeito que teve, pois o público tem mesmo mergulhado na história dela.
Paloma começa com um tom quase onírico, como um sonho. No entanto, aos poucos a dura realidade vai se aproximando desses personagens. Como foi oferecer esse equilíbrio à narrativa?
O filme é sobre o amor é as dúvidas que temos com esse amor, as circunstâncias que levam a esse amor florescer ou não. Tá claro que há um ruído nessa relação dela com o marido. Tanto é por isso que insiste nessa cerimônia, pois, de uma forma ou de outra, acredita que a liturgia do casamento possa lhe dar algum tipo de segurança. Além desses casos terríveis que a todo momento são registrados no Brasil, ainda temos essas microviolências diárias que as mulheres trans sofrem. Queria que o espectador sentisse o que uma mulher como Paloma, que leva uma vida absolutamente normal, seguindo os códigos heteronormativos, como essa violência chega até ela. Algo que a gente normalmente não sente. Por isso construí esse conto de fadas que dura até a vida real bater à porta e dizer: “meu bem, é o seguinte, o seu corpo está apto para trabalhar e construir riqueza dentro de um sistema capitalista, mas não para sonhar”. Essa é uma inspiração que vem também de observar a sociedade brasileira. Afinal, dez anos atrás não tínhamos essa noção do tamanho da nossa população que é extremamente conservadora, violenta e tão cheia de ódio.
Você realmente acha que um filme como Paloma não poderia ser realizado hoje em dia? Sua sorte, mesmo, foi o projeto ter nascido tanto tempo atrás?
Nem existem editais de financiamento mais. Foi tudo paralisado. As engrenagens estão truncadas. Além disso, veja o discurso desse governo quanto aos filmes dessa temática que seguem sendo feitos, é sempre destruidor e negativo. Acho que seria impossível começar hoje um longa como esse. Mas ano que vem, quem sabe não melhora? A grande mensagem da Paloma é que as instituições sociais e religiosas precisam abraçar todas as pessoas, sejam elas quem são e que caminhos deram às suas vidas. Se fizermos isso, teremos uma sociedade mais pacífica, mais inclusiva, na qual todos estão presentes. Enquanto houver segregação, vai haver violência. O discurso tá aí.
Paloma teve sua primeira exibição na Alemanha. Como o público do exterior recebeu o filme?
Terminamos no meio da pandemia. Ninguém sabia ao certo o que fazer. As últimas filmagens foram em 2021. Nossa pós-produção foi longa. Nossa agente de vendas internacional teve tempo, portanto, para ir trabalhando o filme, e foi quando veio o convite do Festival de Munique, que é maravilhoso. Foi emocionante. As sessões repletas de choros e risos, durante e depois da exibição. Foi uma surpresa pra mim, pois tem coisas no filme que são bem pertinentes à cultura brasileira. Não achei que fosse se comunicar tão bem. Mas funcionou. É aquele riso da Paloma no final: ela vai à luta.
Entrevista feita na conexão Brasil e Alemanha em junho 2022
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