Jorane Castro não é apenas cineasta, pois atua em outras frentes cinematográficas. Fotógrafa e professora – inclusive participou da implantação do projeto pedagógico do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Pará –, ela acredita que a produção cinematográfica brasileira deveria ser como a da nossa música, no sentido de abarcar a multiplicidade cultural de um território vasto, de dimensões continentais e riqueza imaterial incalculável. Jorane é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará (1990), em Estudos Cinematográficos e Audiovisual pela Université de Paris VIII (1994) e mestre em Sociologia pela Université Paris Diderot – Paris 7 (1996). Além disso, frequentou durante seis meses a Escola de Cinema e Televisão de San Antonio de Los Baños, em Cuba. Essa formação é colocada a serviço da narrativa sensorial de Para ter Onde Ir (2018), seu primeiro longa-metragem, que chegou aos cinemas brasileiros depois de percorrer o circuito dos festivais. Neste Papo de Cinema exclusivo ela fala sobre a necessidade de expandir os limites da linguagem, bem como acerca das vicissitudes mercadológicas que afetam o cinema. Confira.
Seu filme não faz concessões, tem uma proposta narrativa singular e sensorial. Acredita que é preciso penhorar possibilidades comerciais para ir além do mero entretenimento?
Se não questionarmos os limites da linguagem, se fizemos um cinema que não coloque isso em questão, sinceramente não vejo como deveríamos prosseguir. Respeito quem faz cinema comercial, não sei se algum dia farei, embora possa ser um exercício interessante, mas aí é outra coisa. Existem diversas possibilidades, que não a dominante aristotélica de simplesmente contar histórias. O que é o cinema contemporâneo? Essa questão me instiga muito. O processo criativo desse filme trouxe forte tal questionamento. Atualmente produzimos imagens numa quantidade absurda. Não temos tempo de olhar, de fato. O longa que fiz confere esse tempo para o espectador passear pelas imagens. Estamos nos dispondo a isso. Falo no plural, porque o processo cinematográfico é absolutamente coletivo. Conversava horas com a equipe. Nós, que propomos um trabalho de linguagem, temos esse papel de procurar expandir os limites. Isso é o que me interessa hoje. Amanhã pode ser outra coisa.
Para você, tornar o espectador peça ativa das obras é fundamental?
Nesse projeto, sim (risos). Acredito que é bom não impor. Minha ideia é que o espectador saia do filme levando-o, questionando coisas, pensando no que acabou de ver. Gostaria que depois de dois dias, dois anos, alguém se lembrasse de cenas do filme como importantes, tocantes. Se entendermos obras de arte como algo que não termina na execução, que prossegue no campo da interpretação, a participação do público é realmente imprescindível. Claro, hoje, revendo o filme, percebo coisas que poderíamos ter melhorado, mas não tem como voltar. Saí transformada desse processo e gostaria que isso acontecesse em alguma medida com o espectador. A ideia era levar esse ímpeto de contemplação para o cotidiano.
Essa abordagem lírica do feminino norteou sua concepção desde o início?
Minhas protagonistas de ficção sempre são mulheres. Tenho impressão que sou mais capacitada para definir sentimentos femininos. É um universo que domino melhor. Nesse filme trabalhamos bastante com o sensorial, o toque, o som, tentando alargar um pouquinho esses sentidos. Os próprios elementos da natureza. Para mim, a água é feminina, pois conduz. Houve um trabalho nesse tocante, de refletir e pensar a composição dos quadros a partir da ótica feminina. A própria ligação entre a cena inicial e a final, ambas dentro da água. A personagem da Lorena Lobato aparece, no começo, enfrentando a vida, as intempéries. No fim, a situação é praticamente a mesma, contudo, é como se ela tivesse se libertado. Há uma evolução pautada nessa construção lírica do feminino. Tentamos significar a construção além do texto e dos personagens. Utilizamos a palavra “frestas” para definir o que queríamos.
Sua relação estreita com a fotografia está na base dessa inclinação pelo viés visual sensorial, de um cinema menos falado?
Acredito que sim. É muito difícil para mim não me envolver com a fotografia do filme, exatamente porque fui fotógrafa profissional. Cada realizador tem uma maneira de proceder. Mas, como já fui fotógrafa no dia a dia, sempre vou pensar nisso, na composição visual.
Para Ter Onde Ir é o primeiro longa paraense em quase 40 anos. Como você percebe essa dificuldade local de produção?
Nosso projeto foi financiado/produzido em condições profissionais e está sendo lançado. Nesse formato não houve, realmente, algo similar nos últimos 40 anos. Temos outros filmes feitos, mas que ficaram restritos à região, com um viés mais amador. Todavia, de cinco anos para cá, a produção paraense teve um crescimento fantástico. As pessoas que antes trabalhavam esporadicamente com cinema estão agora vivendo disso. A chegada da ANCINE e dos núcleos criativos foi importante. Vem aí uma leva de gente filmando em função das novas possibilidades de produção. Antigamente você contratava um roteirista que não sabia se faria filmes depois. A constância é imprescindível para a consolidação do cinema brasileiro. Fui líder do primeiro núcleo criativo do Norte, então vi isso acontecendo, testemunhei o quanto essa nova realidade era importante.
Como você vê a mecânica da produção de cinema no Brasil?
O modelo de desenvolvimento do audiovisual brasileiro tem de passar por todas as regiões. Seríamos bem pouco estratégicos se concentrássemos tudo no eixo Rio-São Paulo. Antes, muita gente ia trabalhar no Sudeste. Hoje, estão voltando para casa. Essa diversidade cultural maravilhosa tem de ser abraçada pelo cinema. Não podemos achar que o modelo norte-americano vai colar aqui, porque não vai. Não ouvimos nossos sotaques no audiovisual. Acredito que isso é importante. Se, por exemplo, os cinemas gaúcho, catarinense, enfim, os vários cinemas se consolidarem, seremos potência. Nosso modelo é único, não podemos nos espelhar em outro. Temos de pensar na variedade social e racial. Ainda há muita coisa para contar. É preciso nacionalizar a produção, no sentido de filmar em todo território brasileiro.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Belém/Rio de Janeiro, em maio de 2018)