A cineasta baiana Monique Gardenberg fez uma verdadeira ode à música popular romântica em Paraíso Perdido (2018), seu mais novo longa-metragem. Na boate que dá nome ao filme, cantores e cantoras sobem ao palco iluminado para entoar letras que falam de amores desbragados, relacionamentos viscerais e desilusões aparentemente inesquecíveis. Integrante do importante grupo de mulheres que esteve à frente da Retomada do cinema brasileiro – período imediatamente posterior à famigerada Era Collor de sucateamento da nossa produção audiovisual –, Monique nos atendeu para esta conversa pouco antes da pré-estreia carioca. Ela não gosta da expressão “música brega”, pois a considera pejorativa. Disse que resolveu fazer o filme embalado por essa sonoridade, tornada invisível em determinados círculos, exatamente para ressaltar a equivalência de um apagamento social. Confira o Papo de Cinema exclusivo com Monique Gardenberg, criadora de Paraíso Perdido.
Por que a música brega para embalar seu filme?
Gosto de chama-la de música romântica popular. Não me agrada essa alcunha pejorativa. Sempre fui apaixonada por este tipo de música, sei todas as letras. Realmente quis pagar um tributo ao romantismo popular no filme.
Você é constantemente lembrada por orquestrar vários personagens. A que atribui esse traço de sua criação?
Nos meus trabalhos, tento mostrar que ninguém é uma coisa só, nem está totalmente errado ou certo. Em suma: ninguém é tão normal. Acredito que desenvolver essa complexidade ajuda a construir figuras fortes. Por exemplo, a Milene, interpretada pela Marjorie (Estiano), é uma personagem difícil de engolir. Por isso, ela ganhou um passado duro. Era de um abrigo, caiu nas mãos de um traficante, etc. Percebemos que Milene não poderia dar muito em outra coisa, pois essencialmente carente de afeto. Aliás, a abundância do afeto é que cria aquela família.
Para você, era imprescindível, nesse recorte fabular, dar brechas à realidade?
A boate é o lugar da poesia. Fora dela, há essa coisa brutal do cotidiano. É importante falar de intolerância, preconceito, mas deixando isso fora do paraíso, desse porto seguro. O José é um patriarca superprotetor, empenhado em manter a família feliz. A disposição ao perdão que todos têm acaba gerando um ambiente lúdico, onde pessoas invisíveis na vida, como a própria música popular romântica, têm destaque. No paraíso perdido, o holofote está nelas.
Tendo em vista a atualidade, falar de amor se tornou um ato subversivo?
Com certeza, e era essa a ideia, mesmo. Meus filmes anteriores tinham uma questão política muito clara. O Jenipapo (1996) falava da reforma agrária e da execução dos líderes que lutavam por isso; o Benjamin (2004) abordava a Ditadura e os grupos de extermínio; Ó Pai, Ó (2007) falava de meninos de rua indesejados. Então, pela primeira vez, iria fazer um filme que não abordava abertamente algo político. A realidade que vivemos hoje é tão difícil, com a polarização, esse ódio que vem à tona de forma desavergonhada, sem qualquer civilidade. Achei que precisava contrapor, mostrando opções, nem que seja dentro de uma boate (risos).
Como foi trabalhar com o Jaloo, então estreante no cinema?
Foi um encantamento. Para interpretar o Imã pensei em alguns atores, mas a presença deles não era suficientemente forte na minha cabeça. Decidi, então, revisitar o trabalho do Jaloo, e percebi que ele tinha intimidade com a câmera. Mas não sabia se ele conseguiria falar bem. Muitas vezes, pessoas excelentes com a câmera não conseguem convencer. O teste foi a cena em que Imã é atacado, no início do filme, e depois a do interrogatório. Ele foi incrível. Precisava que compreendesse o espírito livre e leve desse menino com todas as razões para crescer atormentado, mas que, em virtude do amor familiar, se relaciona bem com a vida. Na minha cabeça, o Imã é uma figura de luz, é o Tirésias (personagem da mitologia grega), o que enxerga além. É ótimo lidar com músico, porque podemos utilizar a linguagem da música.
E a colaboração com o Erasmo?
Ele foi o último ator a ser escalado. Não estava encontrando esse patriarca tão importante, mesmo em intérpretes incríveis. Não colava para mim. Aí decidi, novamente, ir para a música e, rapidamente, percebi que José era o Erasmo. Mandei o roteiro, ele curtiu muito a história, mas tinha medo, justamente por ser o último a entrar no time. Erasmo falava: “não posso fazer feio”. No fim das contas, foi certeiro, exatamente no ponto que me orienta, ou seja, o tom de cada cena. Ele apenas perguntava qual era o tom da cena. Foi maravilhoso.
Você faz parte da geração de mulheres cineastas que encabeçou a Retomada. Como percebe as demandas atuais por uma maior representatividade feminina no cinema?
Em Paraíso Perdido o gênero é o de menos. Nossa atitude na vida tem de ser assim. Sempre esqueci que era mulher na hora de me colocar. Sou uma cidadã. Me posiciono de forma destemida e nunca me senti limitada por ser mulher. Ao contrário, tirei partido disso para enfrentar certas situações. Por ser mulher, pude dizer determinadas coisas e não levar um soco (risos). Mas, fico contente que meu trabalho, bem como o de várias colegas, inspire outras tantas a seguir em frente. Lá atrás, me inspirei em Agnès Varda, Lina Wertmüller, Ana Carolina, na própria Helena Ignez, como força feminina. Espero que nossa presença seja a prova de que é possível. E que cada vez mais mulheres levem suas histórias para a tela.
(Entrevista concedida no Rio de Janeiro, ao vivo, em maio de 2018)