Preocupado com a eleição de Jair Bolsonaro, no fim de 2018, o ator e diretor Caco Ciocler decidiu fazer uma viagem de Ano Novo rumo ao Uruguai, país então presidido pelo progressista “Pepe” Mujica. A bordo de um ônibus, ele leva a equipe de câmera e som, além dos amigos Georgette Fadel e Léo Steinbruch. Ela é uma atriz comunista que se declara futura candidata à presidência da república. Ele é um empresário, radicalmente contra o pensamento da esquerda. No caminho até o Uruguai, Ciocler registra a polarização existente no Brasil.
Partida (2019) se situa entre a ficção e o documentário, entre a crônica política e o road movie entre amigos. No caminho, o grupo descobre a complexidade dos discursos ideológicos, enquanto se confronta à necessidade de voltar ao Brasil presidido pela extrema-direita. Nós conversamos com o diretor sobre o projeto singular, selecionado na 43ª Mostra de Cinema de São Paulo, e com estreia em streaming marcada para 18 de junho:
Vocês fazem o trajeto até o Uruguai para encontrar Mujica. O que ele representa para vocês?
A história do Mujica é anterior ao filme. No réveillon do ano passado, eu estava com um casal de amigos, decidindo onde passaria a virada do ano. Eu tive essa ideia: por que a gente não vai atrás do Mujica e tenta passar o Ano Novo com ele? Sempre fui habitado por essa lenda de que o Mujica morava numa fazenda isolada, com seu fusquinha, e recebia todos que chegavam lá. Isso fazia parte do meu imaginário político. A gente estava sem grana, e eu pensei em ir para lá com uma câmera e fazer um filme. Não deu certo, porque as pessoas não levaram a sério e me convenceram de que era uma maluquice. Então eu estava ensaiando uma peça com a Georgette Fadel, que lançou essa história de se candidatar à presidência. Isso já era uma brincadeira, uma mistura entre ficção e realidade.
Eu estudei na Escola de Artes Dramáticas (EAD) com a Georgette, na mesma turma. Quando fiz o meu primeiro trabalho para a televisão, uma revista me perguntou em quem eu votaria para presidente. Na época, cerca de vinte anos atrás, respondi que votaria na Georgette. Eu me lembrei então dessa história e a convidei para fazer a viagem comigo. A ideia inicial era irmos só nós dois: ela dirigiria e eu filmaria a construção do pensamento político dela. Mas pensamos que seria preciso ter alguém de som. Chamamos o Vasco, que topou, mas tinha um equipamento grande. A Sara foi junto, então um carro só não dava mais. Pensamos então em ter uma segunda câmera e chamamos a Julia Zakia, que aceitou contanto que a filha dela fosse também. Outro amigo emprestaria o material e iria junto, mas fazer um filme em três carros seria impossível. Pensamos numa Kombi… A ideia foi crescendo até chegar ao ônibus.
Vocês não tinham nenhuma garantia de encontrar o Mujica ou não. Em que medida estavam abertos ou acaso? Havia um roteiro prévio?
A gente estava absolutamente aberto ao acaso, nem teria como ser diferente. É claro que tivemos mais ou menos dois meses desde a ideia até a nossa partida, quando eu troquei diversos áudios de WhatsApp com a Georgette, para a gente construir juntos o filme. Como filmar dentro do ônibus? Como a operadora de câmera conseguiria trabalhar e cuidar da filha ao mesmo tempo? Em determinado momento, comecei a perceber que a gente tinha uma voz muito homogênea: todo mundo no ônibus pensava mais ou menos da mesma maneira. Busquei então uma voz antagônica e achei o Léo. O filme não escolheu os seus personagens: conforme as pessoas chegavam, elas se tornavam personagens. Precisei lidar com o que tinha nas mãos.
A gente saiu de São Paulo com quatro ou cinco ideias prévias. Algumas caíram antes de a gente sair. Existia a proposta de visitar uma fábrica de armas, porque a Taurus ficava no nosso caminho. O Bolsonaro tinha acabado de ganhar as eleições com a bandeira muito forte do armamento e o apoio da Taurus. A gente queria visitar um acampamento dos sem-terra e uma aldeia indígena no caminho. Mas então veio aquele áudio que a gente acabou usando no acampamento do Lula: se a gente começasse a abrir o tema, não daria para fechar nenhum assunto. Era preciso concentrar, porque o filme precisava ser feito em seis dias. Decidimos tratar a política através das relações entre as pessoas no ônibus. Eu tinha isso como uma certeza. O mesmo valia para a cena da psicanálise.
Eu sabia que a gente chegaria todos os dias na pousada e assistiria ao material filmado naquele dia, para entender o filme conforme ele fosse feito. Essa sessão de terapia valia para o filme: era ele quem deitava no divã, e a gente consertava e ajustava conforme avançava pela estrada. A brincadeira de fumar maconha de um lado e soltar a fumaça do outro, para discutir as fronteiras, também existia. Além disso, a Georgette luta Aikido, então imaginei que uma luta silenciosa dela com o Léo seria bonita para simbolizar o modo performático como a gente discutia naquele momento. Essas ideias existiam, mas eu não sabia o que encontraria pela frente, e nem mesmo se essas cenas resistiriam ao processo. Quanto ao Mujica, não tinha a menor ideia se a gente iria encontrá-lo ou não.
Por que era importante revelar que você estava conduzindo os embates entre Georgette e Léo? Vemos você dirigindo os dois, pedindo para repetirem as brigas políticas dentro do ônibus, por exemplo.
Por incrível que pareça, neste filme tudo o que parece real é de mentira, e tudo o que parece de mentira aconteceu de verdade. A primeira briga, que parece de verdade, não foi verdadeira. A gente tinha dois microfones de lapela, e viajava o dia inteiro. Nem sempre o Vasco estava com o microfone ligado. Quando começou uma briga entre os dois, o Léo não estava microfonado. Pedi para eles pararem, e ajustamos o microfone nele e na Georgette, fizemos testes de som, ajustamos a claquete, trocamos o cartão de memória da câmera. Isso não é rápido. A cena que parece real teve um estímulo real, mas foi feita para as câmeras. O filme inteiro tem essa brincadeira entre a ficção e a realidade.
A queima do cartão de memória foi real: quando eu digo que queimou um cartão das filmagens, aquilo era verdade. Certo dia eles me avisaram que o cartão tinha dado problema, e tentariam consertar, mas seria melhor refazer a cena para garantir. Esse momento parece truque, mas não foi. Eu decidi contar para a Georgette e pedi para me filmarem enquanto contava isso. O limite entre linguagens permeia o filme inteiro. Na montagem, a gente fez questão de incluir essa camada. A própria premissa de que a Georgette se candidataria à presidência já era ficcional. Se o filme fosse feito hoje, provavelmente as discussões seriam diferentes. Mas naquele momento, existia uma gritaria sem escuta entre os dois lados. Eram brigas intermináveis, e a minha curiosidade estava em descobrir o que aconteceria depois: o que viria quando se esgotasse o enfrentamento verbal?
Que temas diferentes discutiriam hoje? Afinal, o Brasil mudou muito desde então.
Essa é uma questão do cinema: normalmente, entre ter uma ideia e realizá-la, isso leva alguns anos. Graças a Deus a gente não passou por isso: tivemos a ideia e corremos atrás, sem qualquer patrocínio. Mas a demora é típica do cinema. Depois da filmagem, ainda leva um bom tempo até o lançamento. Enquanto isso o mundo muda, a gente muda numa velocidade espantosa. O filme já envelheceu, já desenvelheceu e envelheceu de novo. Agora, com os protestos antirracismo, ele ganha outra característica. Antes da partida, a gente tinha uma cena entre a Georgette e a funcionária da casa dela, a Vera, uma mulher negra. A discussão era bonita entre as duas, mas ficou fora na montagem. Se eu fosse montar esse filme hoje, obviamente a cena teria entrado. Partida se mantém atual, infelizmente, na questão do Brasil dividido, do país ainda sem escuta, com representantes díspares. Não existe acordo intelectual possível, embora o acordo afetivo seja uma saída. Gosto disso no filme: a possibilidade de entendimento pelo afeto.
Além disso, a questão da utopia nunca esteve tão presente. Nunca se falou tanto sobre utopia, do empresariado ao povo, por causa da pandemia. Este filme fala sobre a utopia, com a diferença de que, naquele momento, a gente estava desesperado pela vitória do Bolsonaro, sem saber o que viria pela frente. Decidimos passar o réveillon nos braços do Mujica, que é nossa referência política afetiva, e fomos atrás da utopia. Não adianta apenas discutir a utopia: nós partimos em busca dela. Nesse sentido, ele está mais atual do que nunca. Mas a atualidade do projeto se perde no sentido em que já se passaram dois anos deste governo. Antes a gente não sabia o que viria pela frente. Se fosse agora, a gente teria dados concretos, além de outros argumentos para falar especificamente sobre o que vivemos.
Como se articula essa nova utopia sobre a qual todos falam? Mujica não está mais no poder, e Lula, outra figura importante do filme, declarou que não pretende ser candidato. Para onde converge a utopia de quem luta contra o governo?
Antes, a utopia buscava exclusivamente a política partidária, acreditando que a saída seria escolher um lado ou o outro. Hoje, felizmente percebo uma utopia humana, a partir das relações interpessoais. A política não pode estar apartada da vida básica. Sinto que as pessoas voltam a sentir necessidade da política. Exemplos práticos: antes, as pessoas acreditavam que um sistema de saúde público não servia para nada. Vem uma pandemia e mostra como isso era fundamental. A política se torna de novo essencial para organizar a sociedade e salvar as pessoas, equilibrando a distribuição de renda, empregando as pessoas. Espero que eu esteja certo, mas acredito que a pandemia trouxe uma consciência da finitude.
Se a gente não mudar nosso modo de vida, nosso planeta morre. Estamos falando da sobrevivência da espécie humana. Os cientistas estavam desacreditados. Eu nunca tinha ouvido falar sobre o risco de uma pandemia, mas os cientistas falavam sobre isso há muito tempo, avisando que teria uma pandemia respiratória. Mesmo os cientistas voltaram a ter um espaço de prestígio, ainda que não entre todos os brasileiros. Se a gente não mudar a nossa maneira de viver, o planeta não dura mais cem anos. Para mim, a utopia foi para esse lugar. É preciso pisar no freio e voltar a pensar coisas básicas como o bem-estar, o cuidado com a higiene, a saúde, o cuidado com o próximo. Pensamos de novo na distribuição de renda, o papel dos indivíduos e do empresariado na ajuda. Essas coisas pareceriam óbvias, mas estavam sendo esquecidas. Essa seria a nova utopia: o cidadão perceber que a política existe através dele, e para ele, servindo assim à sociedade. Neste sentido, avançamos na utopia.
Como vê as possibilidades efetivas de renovação política? A candidatura de Georgette beira a brincadeira por não ter um grande aparato por trás, mas a princípio, o direito à candidatura estaria ao alcance de todos.
Isso tem a ver com a proposta do filme: a gente teve dois mandatos e meio de um partido que era de esquerda social-democrata. Tivemos agora a puxada de corda para o lado oposto. Sinto que, assim como no ônibus o meu interesse estava no que viria depois do esgotamento, estamos vivendo um esgotamento dessa polarização. É um esgotamento no sentido de acreditar messianicamente nas coisas, na política velha. Não vejo outra solução que não passe pelo fim dessa ruptura, dando origem a algo novo. A esquerda está desorganizada, mas ocupando o lugar onde ela sempre esteve. Agora não existe mais uma liderança óbvia – como você disse, o Lula não pretende se candidatar mais. A esquerda busca uma liderança nova, mas a solução se encontraria mesmo numa força unificada?
Essa crise, de alguma maneira, é boa. Precisamos entender por que tantas pessoas continuam apoiando o Bolsonaro. Onde foi que a gente errou para 30% da população ainda declarar intenção de voto nele? É preciso ouvir estas pessoas. O exercício da escuta nunca foi tão importante quanto agora. Não adianta ficar batendo: precisamos entender onde a gente errou. O fascismo, a ditadura são caminhos mais “fáceis”, rápidos para quem está desesperado e tem pressa. O exercício democrático é demorado, porque pressupõe discussão. O autoritarismo é rápido. Se 30% da população clama pelo autoritarismo, talvez seja porque ela não aguenta mais esperar. A democracia precisa se aprimorar, para a gente não deixar essas soluções perigosas ganharem espaço – essas ideias só aparecem quando a democracia falha. A lição é essa: em algum lugar a gente falhou, e deixou 30% da população querendo um regime militar de volta! Esse é o aprendizado.
Os letreiros indicam que Partida foi feito sem leis de fomento. Você encara este modelo de guerrilha, autofinanciado, como uma solução para os impasses atuais de produção artística?
Eu preciso tomar muito cuidado com essa questão: não vou ser leviano a ponto de defender este modelo, especialmente no momento que atravessamos, com sucateamento da cultura e desconfiança dos artistas. Eu seria completamente irresponsável se levantasse a bandeira do autofinanciamento. Um filme como Partida, onde todo mundo trabalhou de graça, não pode ser feito sempre, e não se aplica a todo tipo de projeto. Eu consegui porque sou um grande privilegiado, e pude tirar dinheiro do bolso para colocar no filme. Mas dizer que essa é a nova maneira de fazer cinema seria absurdo.
Por outro lado, acho esta iniciativa importante, sim. Ela resgata um espírito artístico importante. Ter um grupo de profissionais de cinema dispostos a ocupar as férias trabalhando de graça mostra a uma parcela da população que nossa motivação não é ganhar dinheiro e “mamar nas tetas do governo”. Partida prova que isso não é verdade. Essa foi uma decisão particular: eu estava com pressa, e não podia esperar os mecanismos de cultura para fazer este filme. A gente teve a ideia em outubro, e o réveillon era logo em dezembro. Não dava tempo. Por isso, não levanto a bandeira do filme sem dinheiro: essa foi uma maneira que eu encontrei de fazer, e que achei linda porque me resgatou uma devoção artística. Eu tinha duas opções: ou não fazia nada, cruzava os braços e reclamava que o Bolsonaro tinha ganho, ou fazia alguma coisa. Decidi fazer alguma coisa. Nesse sentido, fiquei muito feliz de me deparar com artistas que também preferem fazer alguma coisa a não fazer nada. Mas isso é muito diferente do que defender que o cinema seja feito assim.