Caroline Leone é alguém que podemos chamar de veterana e novata ao mesmo tempo. Sua carreira no cinema começou há mais de uma década, mas primeiro como diretora de fotografia e, principalmente, como montadora. Por esta atividade, recebeu, em 2010, uma indicação ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro pela edição de Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Rilho. Antes, já havia sido premiada nos festivais de Vitória, Cuiabá e Recife pela montagem do curta Saliva (2007) – também dirigido por Esmir. A parceria dos dois deu tão certo que há pouco, no Festival do Rio 2017, ela foi novamente reconhecida, desta vez pela edição do longa Alguma Coisa Assim (2017), dirigido por Esmir em parceria com Mariana Bastos e ainda inédito no circuito. Neste meio tempo, no entanto, realizou um sonho antigo, escrevendo e dirigindo pela primeira vez um longa-metragem: o drama feminino Pela Janela (2017), que recebeu o prêmio de Melhor Filme pelo júri da crítica no Festival de Roterdã, além de ter sido exibido no Festival de Gramado e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. E aproveitando o lançamento do filme, que chega agora no começo do ano aos cinemas de todo o país, nós tivemos um bate-papo inédito e exclusivo com a cineasta. Confira!
Olá, Carol. Antes de falarmos sobre o Pela Janela, deixa te fazer uma pergunta: você já assistiu ao argentino A Noiva do Deserto (2017)?
Pois então, já me falaram a respeito. E na última edição do Festival de Havana, em Cuba, nós dois fomos premiados na categoria de filmes de realizadores estreantes, concorremos juntos. E teve uma amiga minha também, quando passamos em Roterdã, que comentou comigo: “olha, tem esse filme, o A Noiva do Deserto, que tem uma certa similaridade com o teu”. Mas não sei, ainda não consegui assistir.
Engraçado que conversei com as diretoras do A Noiva do Deserto, e elas também não conhecem o Pela Janela, mesmo que este já tenha sido exibido na Argentina.
Pois é, o Pela Janela entrou em cartaz em Buenos Aires em junho de 2017, muito antes do que aqui no Brasil.
O mais curioso é que os argumentos são muitos similares. Os dois tem uma mulher já de uma certa idade como protagonista, que é demitida e, ao fazer uma viagem pelo país, se reencontra e decide mudar a própria vida. É muita coincidência?
Bom, imagino que o meu seja menos drástico. Mas, no mínimo, devem ser dois filmes que se conversam, que possibilitam um diálogo entre eles. E ainda mais por também serem realizadoras… é incrível. Sempre fui feminista, a minha vida toda. E o feminismo vem em ondas. Na verdade, o que está acontecendo agora é mais um destes movimentos. Mas já aconteceu no passado reações similares. Esse ciclo de conscientização, empoderamento. Em seguida volta ao que sempre foi. A necessidade de discutir esses assuntos é perpétua, precisamos estar sempre atentas.
Mas você acha que que o que está acontecendo agora é só mais uma onda?
Espero que não. Mas pode ser que sim. Torço para que a coisa, de fato, engate. Porém, analisando a história das mulheres na nossa sociedade, se percebe estes movimentos de idas e vindas. Tem vezes que a onda vem e a gente é pego pela própria, acabamos submersos. A gente está hoje debatendo assuntos que já foram discutidos nos anos 1960, nos anos 1940, em 1890… se for indo para trás, irá reconhecer estes debates. A questão sempre existiu.
É sempre um risco saber se a coisa irá firmar ou não?
Eu não sei. O que acontece comigo é que sempre me interessei pelo tema e não me vejo representada em nenhum filme que está por aí. Não vejo as mulheres que estão a minha volta sendo representadas. Raríssimas vezes achei que havia verdade nas representações femininas no cinema. Normalmente, o que vemos é sempre a mal-amada, com um monte de clichês que acabam virando verdades, e, pior, reproduzidos pelas próprias mulheres. Isso me incomodava muito. Por exemplo, uma coisa que fiz questão de ter no Pela Janela é um personagem masculino que não fosse degrau para a transformação da protagonista, muito menos alguém que a validasse.
Bom, vamos falar dele, então. Como foi a escolha do Cacá Amaral?
Era preciso que fosse um homem sensível à irmã. Era um homem amoroso. Ele, ao contrário da Magali, foi um dos primeiros que testei. Eram três atores, e quando ele apareceu, de cara vi que tinha que ser ele. Só que o Cacá tem uma tradição de personagens muito canastrões. É sempre o vilão, ou o machão. Por isso teve gente que me disse: “nossa, mas o Cacá, você tem certeza?”. Mas via nele outra coisa. Via uma doçura, que era muito interessante e exatamente o que estava buscando.
Falando nessa presença masculina, que no filme é o irmão, é verdade que numa das versões originais do roteiro era para ser o marido da protagonista?
Exato. No primeiro roteiro era o marido, porque a mulher que conheci e que me inspirou a contar essa história havia feito essa jornada ao lado do companheiro dela. Mas queria que fosse uma relação de iguais. Tentar, realmente, uma igualdade de gênero – se é que isso é possível. Achei que sendo irmãos, e morando juntos, com realidades próximas, seria possível tirar essa maquiagem de clichês e estereótipos que colocam nas mulheres e também nos homens.
É verdade que os produtores argentinos queriam que ela arrumasse um namorado no final do filme?
Como você sabe disso? (cara de espanto)
Bom, a gente se prepara antes de vir para uma conversa como essa…
(risos) Sim, você está certo. Essa foi uma questão muito discutida. O que me falavam é que a transformação dela jamais seria visível na maneira que eu estava propondo. Que não seria suficiente, e que a única maneira de enxergarem que ela mudou e se abriu para o mundo era se apaixonando por alguém. O que pra mim é praticamente uma ofensa. Mas, na verdade, é o que acontece em todos os filmes. Ou é uma reconciliação, ou uma promoção no trabalho – que é dada por um homem. Se prestar atenção, é sempre o homem que alavanca a mulher. Por isso tive que bater pé. Ainda mais porque, lá na primeira versão do roteiro, existia um personagem argentino que ela encontrava em diversos pontos da viagem. Tinha uma coisa entre eles, que acabava ficando no ar – não era nada consumado. Talvez por isso, até, que tenha surgido essa expectativa. Mas sempre imaginei mais uma amizade entre os três – ela, esse cara e o irmão – do que um romance entre eles dois. E, por causa desse ruído, tive uma reação contrária e diminuí o papel deste homem.
Era importante não sexualizar essa mudança da Rosália?
Não é uma questão de sexualizar. Acho a Rosália muito sexual, aliás. Principalmente por conta de toda a água que percorre o filme, também pela relação dela com ela mesma, há muito ali. Não a considero uma mulher desprovida de sexualidade. Principalmente porque não acho que essa sexualidade dependa da figura masculina para acontecer.
Em conversa com a Magali Biff, ela me disse que uma das coisas fundamentais na tua direção foi saber dizer “não”. Como isso funcionava?
Eu dizia “não” o tempo todo. E não só com a Magali: também com o diretor de arte, figurino, fotografia… com um monte de gente. Menos, pra todo mundo, o tempo todo. Com a Magali funcionou desse jeito. Ela é muito dedicada, muito entregue. E embarcou no projeto por inteiro. Vinha com uma bagagem muito grande do teatro, então era natural que quisesse usar o excesso – era o que estava acostumada.
Como você pensou na Magali Biff para viver a Rosália?
Teste. Testei a maioria das atrizes da idade dela lá em São Paulo. Foram duas semanas de testes, diariamente. Vimos muita gente. E foi uma das últimas com quem conversei. Só que ela foi muito bem no teste. O engraçado foi que saiu de lá achando que tinha ido muito mal. Depois que me disse: “não tinha me preparado, não imaginei que você fosse me pedir tudo isso e tal”. Mas foi muito bem. O teste foi emocionante, aliás. Um dia ainda vou editar esse material e mostrar pras pessoas.
Como se deu essa parceria entre vocês duas durante as filmagens?
Pois então, as filmagens é que foram o grande desafio. Porque ela conseguiu o papel, mas pra ficar com ele toda essa bagagem do teatro teria que simplesmente se desfazer. Tinha que deixar de lado. E ela não sabia nada de um set de cinema. Nem como funcionava a lente de uma câmara. Às vezes, não sabia se estava perto, ou longe. Foi um grande exercício de confiança, de nós duas, que se desenvolveu de cena a cena. Com muita lapidação. E por isso os milhões de “nãos” que tive que dizer.
Por que era tão importante tirar esses excessos?
Porque queria uma atuação que fosse próxima da realidade. Muito calcada no realismo. Acho que precisamos de muito pouco para entender o que se passa. E que o cinema, geralmente, é muito autoexplicativo. Isso tira o encantamento e a proximidade com o expectador. Sinto como se os personagens estivessem sempre se apresentando. Em todas as cenas se reapresentam e se recolocam, lembrando quem são. Isso é muito distante do ser realmente. E com isso você perde esse tempo que a pessoa está lá, disposta a ver o seu filme, com explicações completamente desnecessárias. E se dá também na atuação. Se reflete na insegurança em ‘ser’ o personagem, e não apenas representá-lo.
Vocês ensaiaram muito antes, não?
Sim, mas não foram ensaios normais. Nós ensaiamos as biografias dos personagens. Escrevi a vida deles até o ponto em que começa o filme. Mais ou menos, em linhas gerais, inclusive com algumas cenas. Tudo o que não estava no filme. Quem eram aquelas pessoas. Todo o antes. E tem um amigo meu, o Rene Guerra, que também é diretor de cinema (N.E.: diretor de Guigo Offline, 2017), que me ajudou muito nisso. A Magali primeiro fez um laboratório na fábrica, que foi bem intenso. Ficou lá, fazendo aqueles reatores, falou com uma coordenadora daquele tipo de produção de verdade, que trabalha nisso há mais de 30 anos e é uma personagem viva de tudo isso.
Mas a Rosália é uma criação tua? Ou é uma pessoa que existe ou existiu?
Não, é uma criação minha. Mas há muitos elementos nela que são reais. Como tudo que aprendeu com essa senhora. Ou de filmes que peguei como referência. Era preciso que entendesse quem era essa mulher. Ao todo, tivemos um mês de ensaios. O Cacá chegou a dizer: “isso é inédito, nunca na minha vida ensaiei tanto para fazer um personagem, ainda mais no cinema”. Só que não ensaiamos nenhuma cena do roteiro, só a vida pregressa daqueles personagens. Fazíamos vivências, improvisos do que teriam vivido. Imaginamos como teriam chegado a São Paulo, se a mãe deles estaria com eles, onde teriam se hospedado. Fomos atrás de um cortiço, no centro, que poderia ser esse lugar. Aos poucos, juntamos essas peças. Quando ele perdeu a mulher, quando os dois irmãos decidiram morar juntos. Queria que ficassem à vontade com aquelas pessoas, que fossem, para eles, mais do que personagens.
E como foi a logística da viagem?
Fiz cinco vezes aquela viagem. São 3 mil quilômetros para ir, e mais 3 mil para voltar. Isso de carro. Todas preparatórias, sem contar a das filmagens. Escrevi o argumento e fiz três viagens sozinha, eu e meu parceiro, e ia escrevendo cenas. Tudo que via e acreditava que dava para aproveitar. Queria construir a história de maneira que a geografia fosse também personagem, e não como turista. As coisas que iam acontecendo com a gente, tentava encaixar na trama. Montando um quebra-cabeça. E cada vez que voltava, cheia dessas anotações, partia para uma limpeza, tirando qualquer excesso e decidindo o que, de fato, dava para aproveitar. Assim, pude escrever cada cena tendo as locações em mente. Com isso, todas as paradas já estavam pré-definidas.
As panelas, que são tão marcantes na história, surgiram nesse modo?
Exatamente. Não era algo que havia pensado antes. Mas vinham de encontro com algo que queria falar, que era esse cuidado dela com a casa. Quando achei aquele lugar à beira da estrada, desci para tomar uma água. Bem ao lado, passam os caminhões pela estrada, e todas as panelas começam a bater umas nas outras. Vira um verdadeiro concerto de panelas. Era mágico! Isso me permitia imaginar aquela personagem, naquele lugar, e como ela reagiria. De repente, a própria panela virou um personagem. Teve um momento que me dei conta: “nossa, estou contando a história da panela!”. Cada lugar era possível descobrir coisas novas.
Quando o filme ficou pronto?
No começo de 2017, em janeiro.
Como foi tão rápido para estrear na Argentina, e por que demorou tanto para ser lançado no Brasil?
Porque na Argentina há um acordo com o INCAA – Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales – que determina um tempo específico para o lançamento após o término das filmagens. E, se não cumprem essa burocracia, não se recebe a grana do apoio. Não é como aqui, no Brasil, que se recebe o dinheiro dos investidores antes, para que as filmagens aconteçam. Lá é preciso fazer um empréstimo, e a verba para cobrir esse valor só vem após a estreia. Foi por isso que fizemos um lançamento às pressas por lá.
Você ficou satisfeita com o lançamento do Pela Janela na Argentina?
Fiquei bem preocupada. Aconteceu duas semanas após o nascimento do meu filho, então não tive como ir até lá, não pude acompanhar. Também não tínhamos assessoria de imprensa. Ou seja, não tínhamos nada. Mesmo assim, foi lançado em quatro cidades e somou nove mil espectadores. Saiu crítica no La Nacion e no Clarin, que são os principais jornais, nas primeiras páginas dos cadernos de cultura. Sem falar de todos os blogs. E tudo isso de forma espontânea. O telefone tocava diariamente com pedidos de entrevistas. Eles gostaram do filme. E isso me deixou muito contente, é claro. Recebemos também muitas mensagens pelas redes sociais, muita gente nos escrevendo.
Vocês foram premiados em Roterdã e em diversos outros festivais. Como você tem avaliado toda essa recepção ao filme?
Fiquei muito surpresa. E feliz. Quando fiz o filme, enfrentei uma sensação muito difícil, de solidão, mesmo. É muito difícil dirigir. É muito difícil bancar um projeto. Quando termina, parece que você sobreviveu a uma guerra. Depois, ainda esperamos um montão até poder montar, conseguir o dinheiro para finalizar. Tudo fica muito difícil. Quando saiu a seleção para Roterdã, foi um grande alívio. “Gente, que bom. Ao menos algum lugar no mundo o nosso filme encontrou”, foi o que pensei. Agora, que estamos lançando comercialmente, quero que o máximo de pessoas o assistam. Participamos de muitos festivais, no Brasil e no exterior. Meu objetivo sempre foi ir ao maior número de festivais, não importa se era premiado ou não, o que conta mesmo é ser visto e discutido. É pra isso que você faz cinema. E esse é um filme que só existe na relação com o espectador. Essa história só funciona se quem a assiste se identifica, simpatiza com os personagens.
Você está satisfeita? A missão foi cumprida?
Ainda não, pois agora temos nossa segunda missão, que é fazer bilheteria. Essa é a mais difícil. Mesmo filmes premiados, às vezes, não encontram seu público.
Eu adorei o filme. Certamente estará na minha lista de melhores do ano. Só não esteve entre os melhores de 2017 porque a estreia foi adiada para janeiro. Quando o vi, durante o Festival de Gramado, fiquei muito emocionado.
Melhor nem falarmos de Gramado. Acho que não deveria ter estreado lá. Deveríamos ter esperado por Brasília ou por algum outro festival. Nossa, não ganhamos nem um prêmio técnico!
Por mais que goste do Como Nossos Pais e admire o trabalho da Maria Ribeiro naquele filme, não há comparação com o que a Magali Biff faz no Pela Janela. Ao menos o Kikito de Melhor Atriz deveria ter ido para ela.
A Magali está surreal no filme. Também não sei o que aconteceu. Mas, no fim, foi bom para o filme. As críticas que recebemos foram ótimas. O debate com a imprensa, que tivemos no dia seguinte à exibição, foi incrível, repercutiu muito para nós. Se não tivesse acontecido, aí, sim, teria sido problemático. E não existe unanimidade, né? O prêmio reflete a concepção do júri. Aquele júri pensou daquele jeito. Não tem o que ficar discutindo.
Antes de diretora, você é também montadora. O que te dá mais prazer?
Eu sou montadora, antes de qualquer coisa. Durante toda a minha vida estive envolvida com a montagem. Até já fiz um pouco de direção de fotografia, de câmera, muitos anos atrás. Mas sou montadora. O trabalho de direção corre em paralelo. Tenho muita paixão pela montagem, acho que é uma das ferramentas que corre mais forte no cinema. Não pretendo deixar de montar. A montagem do Pela Janela, por exemplo, é também minha, feita em parceria com uma montadora argentina, a Anita Remón. O processo de nós duas juntas foi maravilhoso.
Pode nos adiantar algo sobre próximos projetos?
Não tenho nada engatilhado. Mas já tenho um outro roteiro pronto. Agora vai começar o processo de captação. Mas não sei como vai ser, ainda. Só posso dizer que vai ser, também, uma história feminina. Pra mim não é uma onda passageira. Quem sabe agora isso não se torna mais comum para todos nós? Tem muitas realizadoras novas surgindo por aí. Isso é muito bom.
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em janeiro de 2018)