Um dos grandes nomes do teatro brasileiro, Magali Biff precisa ainda ser descoberta pelo grande público. Essa popularidade quase veio ao interpretar a malvada Matilde, na telenovela infantil Chiquititas (1997-1999). Na sequência vieram outros programas na televisão, como as novelas Pé na Jaca (2007) e A Favorita (2008). Faltava, ainda, conquistar a tela grande. E depois de uma pequena participação em Jogo das Decapitações (2013), de Sergio Bianchi, no último ano ela voltou à ativa em três grandes filmes, todos recebidos com muita expectativa. O primeiro foi Deserto (2016), estreia na direção do ator Guilherme Weber, premiado no Festival de Brasília. Teve também Açúcar (2017), de Sérgio Oliveira, exibido no Festival do Rio e ainda inédito nos cinemas. E, no meio desses dois, ela surge de maneira hipnotizante no drama Pela Janela (2017), que lhe valeu o prêmio de Melhor Atriz no Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa, e chega agora aos cinemas de todo o país. Aproveitando esse lançamento, nós conversamos com exclusividade com a protagonista do longa dirigido por Caroline Leone. Confira!
No último ano tivemos filmes como Que Horas Ela Volta (2015), Aquarius (2016), Como Nossos Pais (2017), As Duas Irenes (2017), todos com fortes personagens femininos. O Pela Janela vem para engrossar esse filão. Como você se vê sendo parte desse movimento?
Sinto um grande orgulho. É uma felicidade enorme saber que está crescendo cada vez mais esse empoderamento feminino. Esse olhar sempre foi importante, não é mesmo? Bom saber que agora estão prestando atenção nele. A todo instante ficamos sabendo de novos casos de violência contra a mulher, inclusive dentro de casa. É impressionante. Quando surge esse olhar para a mulher, que a valoriza, a coloca em foco e vê as delicadezas e sutilezas que existe na alma feminina, e que dá a ela também um maior empoderamento, é fundamental para que a sociedade possa refletir sobre essa condição. É tão importante, é claro, como a questão dos negros, ou dos índios. Sempre que se olha para um tema com uma lupa, novas coisas são descobertas.
Magali, você não é aquilo que podemos chamar de “bicho” de cinema. Mas tem se tornado nos últimos tempos, não é mesmo?
É verdade. Estou descobrindo o cinema e o cinema está me descobrindo. E estou achando fascinante. É uma outra praia, e realmente deliciosa. Você pega o roteiro e entra em imersão naquele universo junto com o diretor, e ao filmar aquilo vira sua obra de arte. Tenho tido a felicidade de trabalhar em filmes muito artísticos, que possibilitam que a gente fique eternizada. É uma coisa maravilhosa. Diferente do teatro, que também é incrível, mas é efêmero. Você vive o momento, e depois nunca mais será igual. O cinema deixa registrado o que você fez. E enquanto o mundo existir, haverá a possibilidade de revisitar aquela obra.
A produção de um filme também é muito distinta da forma de se levantar uma peça de teatro ou um programa de televisão, certo?
Ah, com certeza. Veja esse filme, o Pela Janela. Nós realmente saímos e São Paulo e fizemos aquela viagem, fomos descendo até a Argentina. Quanta experiência rica vivemos, quanta história acumulada! É uma coisa que não tem nem como descrever, só dar valor!
Essa descoberta pelo cinema é ocasional, motivada por projetos específicos, ou faz parte de uma vontade de realmente estar mais na tela grande?
É o início de um trajeto, com certeza. Faz parte de um desejo muito grande, que sempre tive, e agora o cosmos me ouviu. Pensava comigo mesma: “puxa, gosto tanto de cinema, admiro tanto essa arte, por que será que não me chamam?”. “Eu quero fazer cinema”, é o que costumava dizer quase como um mantra. E essa frase abriu espaço para que começassem a surgir os convites. Hoje, tenho achado maravilhoso cada vez que me convidam para algo novo. E tem vindo, tenho feito testes, papeis pequenos e maiores, alguns rolam e outros não, mas estou em movimento. Enfim, acho que é o início de uma trajetória que se abriu, e que surgiu a partir de um desejo real.
Me fale um pouco sobre como foi participar de Deserto, do Guilherme Weber. É um filme que tem uma proposta até mais radical que o Pela Janela, não?
É muito gostoso trabalhar com diretores estreantes. Tanto o Guilherme, quanto a Caroline, estavam em seus primeiros trabalhos como realizadores. E pessoas assim geralmente estão muito apaixonadas pelo projeto, e ao te convidarem, é porque apostam em você. É um sentimento de confiança muito forte. E ter feito parte do filme dele foi delicioso. Imagina você, estar no meio de uma trupe liderada pelo Lima Duarte? Nós começamos as filmagens, aliás, trabalhando as cenas com ele, e não poderia ter sido um melhor começo. Foi um início de muita entrega, pois não estávamos começando por baixo. O nível já estava lá em cima. Outra coisa incrível era o roteiro, que fala de artistas. São atores e atrizes, já velhos, que não sabem se devem ou não continuar. E quando decidem se estabelecer e fundar uma cidade, começam a morrer. A simbologia é bonita. Quando deixam de ser artistas, passam a viver a morte e todas as mazelas da sociedade: um querendo matar o outro, traindo, mentindo. De uma certa maneira, fala como a arte protege cada um de nós, como dignifica o homem. E quando a arte sai dessas vidas, eles começam a virar animais.
No Deserto, os personagens vão modificando a realidade ao redor deles de acordo com suas vontades. No Pela Janela é o contrário, ela que precisa se adaptar ao cenário. Não sei se você chegou a pensar nisso…
Não, mas é curioso você levantar esse paralelo. Foi, realmente, uma boa sacada sua, pois não havia feito ainda conexões entre os dois filmes. Mas tem fundamento, sim, tem toda a razão. São dois filmes bem distintos, mas que tratam, cada um ao seu modo, da mesma questão, da relação do indivíduo com o seu entorno.
Faz diferença, para você, trabalhar com um diretor que também é ator, como o Guilherme?
Na verdade, não. Veja a Caroline Leone, diretora do Pela Janela. Ela não é atriz, mas me pegou firme na atuação. Exigiu muito de mim, soube dizer “não” quando era preciso. E isso, em tese, seria algo típico de um ator-diretor. Ou de um diretor-ator. Saber dizer “não” é fundamental. Saber reconhecer se aquela é ou não uma boa atuação. Isso é muito importante, mas vai do olhar de cada um.
Pela Janela é um filme que, a despeito dos seus méritos, nasce e morre em sua protagonista – no caso, você. Quando recebeu o convite, tinha noção dessa responsabilidade?
Sim. Sabia que seria difícil. Mas não que seria tão complicado por causa da viagem, algo que acabou potencializando a dificuldade do projeto. Viver essas mortes, reais e simbólicas, que a personagem tem que passar, sabia que seria uma dificuldade imensa a percorrer. Mas foi incrível o quanto a viagem em si te deixa mais vulnerável. Durante a descida para a Argentina, cada dia era preciso dormir num lugar diferente. Você não está mais na sua casa, está literalmente imersa no personagem. A vulnerabilidade aumenta. Está fora do seu tempo. E só aquela função de todo dia arrumar e desfazer a mala, ir pra estrada, mais a preparação que o personagem exige… foi muito cansativo. E nem todo lugar é tão interessante assim, muitos são só de passagem, não tinha o que fazer. Isso tudo vai somando.
Imagino que não havia tempo para ensaiar durante todos estes deslocamentos…
Ensaiamos antes da viagem. Durante um mês e meio, em uma sala, em São Paulo, passamos todo o filme, do início ao fim. Teve também trabalho prévio em locações, na fábrica, com os operários. Eu sei fazer aqueles reatores, agora. Cheguei a fazer um workshop com uma chefe de produção de verdade, para saber como se comportar naquele ambiente. Agora, uma coisa é você ensaiar em uma sala, num ambiente fechado…
…E outra é estar diante das Cataratas do Iguaçu, não é mesmo?
Exatamente! Eu não conhecia as Cataratas, e aquele medo que você vê na tela é real, de fato fiquei sem saber como reagir. Aquilo, principalmente do lado da Argentina, é um furacão. Te causa um terror tal, que você pensa estar diante de um tsunami! Aquela água, quando fica muito próximo, naquelas passarelas, a impressão é que vai avançar por cima de você.
O que essa sequência representa na jornada da Rosália?
Acho que é um ponto de mutação. É um abismo. Aqueles jatos de água são um “acorda”. Um despertar. Literalmente, sacode a poeira e dá a volta por cima. É impossível ficar indiferente diante daquele cenário. É um banho que dá uma virada na vida da pessoa.
A Rosália é uma personagem cheia de silêncios. Como foi compor uma figura tão minimalista quanto ela?
Essa também foi uma questão complicada. Afinal, o que é esse “menos”? Você está, simplesmente, relaxado, no aqui e agora, focado somente no que está acontecendo, sem nenhuma artificialidade. E é aí que foi fundamental o olhar da diretora – a Caroline é muito fera! Ela percebe de longe se você está ou não artificializando a cena. Se está fazendo alguma coisa que leva a algum tipo de construção, que não é espontâneo ou real. E é aí que a gente se debatia. Ela só no “não”, pedindo cada vez menos. Era preciso estar cada vez mais desprovida de qualquer coisa. Essa era a questão em todas as cenas, estar no presente, no aqui e agora. Como nessa conversa, sem querer fazer graça ou distrair tua atenção com qualquer outro tipo de interesse. Não podia impressionar a câmera. Sem fazer cena para o espectador. Tinha que ser para a história. Tinha que desconsiderar que estava sendo filmada. Por isso, muitas vezes, era preciso improvisar já antes, até passar pela cena que a diretora queria. Daí ela pegava tudo aquilo, jogava o antes e o depois fora e ficava com o miolo. Ela usou muito desse recurso.
Pela Janela é um filme pequeno, feito sem muitas pretensões, mas que circulou o mundo todo. Como você tem percebido essa repercussão?
Estou me surpreendendo. Principalmente por causa dessa contramão que aparentemente propõe. Será que esse filme, que conta a história dessa mulher, de 60 anos, operária, desempregada, que vai com o irmão, que é chofer, até a Argentina, e no caminho sobre uma transformação que não é nada de cair o queixo, longe daquele “Uau”, será que vai chegar à sensibilidade da plateia? E chega. No mundo todo. Muitas mulheres choram, muitos homens se comovem. O personagem do irmão, por exemplo, é muito amoroso, então também fala da sensibilidade masculina. O homem pode ser sensível à dor da mulher, por que não? É um filme que chega lá. E isso é uma surpresa. Quando li o roteiro, pensei: “ok, é algo muito real, sem nenhuma artificialidade, sem nenhum sex appeal. Quem vai se interessar por ele?”. E a resposta está aí, na tela.
Ao invés do irmão, no texto original, seria o marido que a acompanharia. E agora você menciona essa falta de sex appeal. Era importante tirar o elemento sexual do enredo? Se ela tivesse desejos e vontades neste sentido, por outro lado, não seria mais uma manifestação de empoderamento?
Isso foi, de fato, discutido entre nós. Muitas pessoas falavam que a Rosália tinha que se apaixonar por um argentino, por exemplo, pra completar, de vez, essa transformação. A vida dela mudou tanto que agora quer um namorado! Os produtores argentinos queriam esse final, pra você ter uma ideia. E a Caroline bateu pé e disse que não. Por quê a transformação teria que vir através de um homem? Poderia vir, mas não necessariamente. Seria uma obviedade. Ela fugiu de qualquer coisa que as pessoas pudessem esperar do roteiro dela. Ela foi muito corajosa.
O que o Pela Janela tem a dizer ao público que for conferi-lo nos cinemas?
Se já estou surpresa com o carinho que recebemos por todos os festivais que passamos e com a recepção da crítica, a partir de agora tudo será lucro. A gente está sempre se surpreendendo com a sensibilidade dos outros. Ainda mais esse nosso público, tão massacrado por falta de opções, pela indústria do cinema comercial. Vai que de repente tem espaço emocional para consumir um filme como esse, feito com tanto carinho e que representa tanto para todos nós?
(Entrevista feita ao vivo em Gramado, no Rio Grande do Sul)