Julia Murat vive desde cedo o mundo do cinema. Filha da também cineasta Lúcia Murat, ela se formou Bacharel em Desenho Industrial na UFRJ (2003) e roteirista no curso de formação da Escola de Cinema Darcy Ribeiro (2004). Depois de passar por diversos estágios, sendo assistente de direção, edição e câmera, e de realizar alguns curtas-metragens, Julia fez barulho com sua estreia em longas-metragens. Histórias que Só Existem Quando Lembradas (2011) viajou o mundo, circulou por vários festivais, trazendo mais de 25 láureas internacionais para o país, automaticamente colocando a sua realizadora no radar de quem acompanha de perto a nossa produção cinematográfica. Pendular (2017), seu segundo longa, ganhou o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (FIPRESCI), na seção Panorama, e foi exibido na mostra competitiva do 50º Festival de Brasília. Nesta conversa inédita, ela fala sobre os aspectos da criação, as influências, suas visões de mundo e muito mais. Confira.
Julia, num tempo tão obscuro como o atual, falar de amor é quase um ato de resistência. O Pendular foi pensado nesse sentido?
Cinema demora, não é? Comecei a pensar esse filme em 2011. Era outro mundo. Então, naquele momento não se tratava de um ato de resistência, de jeito nenhum. Ele tomou efetivamente esse caráter pelo fato de ser lançado em 2017. O Pendular foi reconfigurado atualmente como um ato de resistência, mas não era a proposta original. Contudo, que bom que ele se presta a isso. Espero que ele se preste a isso, acima de tudo.
Uma coisa é exibir em festivais, outra no circuito comercial. Como você acredita que o público receberá seu filme?
Não sei (risos). Não sei, mesmo. Neste momento, lançar cinema no Brasil tá uma cagada. Há dez anos já era assim, mas hoje em dia está inacreditável, seja porque as obras grandes ocupam metade das salas de cinema, restando a outra metade para todos os demais filmes, e porque nós não temos como competir com esses blockbusters. Portanto, não sei direito como a gente vai conseguir chegar ao público. Estamos trabalhando muito nas mídias sociais, apostando que esse é o jeito de conseguir competir, de alguma maneira, apostando em parcerias com algumas instituições de cultura, tais como o Teatro Alfa. Fizemos uma parceria legal com a Livraria da Travessa, no Rio, com escolas de dança. Estamos acreditando que a partir desses pontos de culturas, digamos assim – que na verdade não são pontos políticos de cultura, são até elitistas, mas acabam se configurando em ponto de cultura –, também chegaremos ao nosso público.
Sua protagonista feminina se junta a outras mulheres fortes do recente cinema brasileiro. É uma tendência?
Espero que seja. Acredito que esse é um dos pontos urgentes. Temos poucas mulheres dirigindo e isso faz diferença. Quando o cenário começa a mudar, com mulheres dirigindo, roteirizado, montando, enfim, as personagens femininas ganham mais corpo naturalmente. Se as mulheres não estiverem nesses lugares criativos, como as personagens femininas vão ter consistência? Precisamos realmente evidenciar essas pessoas, deixar as pessoas se colocarem, abrir espaços para a gente ganhar um pouco mais de potência nas figuras femininas, nos corpos negros, nos dos transexuais, enfim. Temos de trazer as pessoas para dentro do processo.
Você cresceu no ambiente de cinema …
Estava me lembrando de uma coisa. Meu primeiro festival de cinema, da vida, foi o de Brasília. Eu tinha 9 anos. Vi naquele ano um filme do Júlio Bressane. Engraçado, inclusive deveria ter falado isso no debate. Mas pensei somente agora. No filme aparecia o close de um pau. Na hora minha mãe até ficou meio nervosa. A Paula Gaitán estava com a Ava (Rocha) do meu lado nessa sessão. Então nós duas, com mais ou menos 9 anos, víamos um pau no filme do Bressane. Confesso agora que não sei se era realmente no filme dele (risos). Talvez tenha misturado. Memórias de uma menina de 9 anos (risos).O Pendular foi classificado como impróprio para menores de 18 anos por mostrar cenas de sexo, afeto, relação, desejo. O sexo precisa ser entendido como algo natural. É muito parecido duas pessoas conversando, transando, se beijando, rezando juntas, são dinâmicas.
E o Pendular inevitavelmente vai ser bastante comentado por conta das cenas de sexo…
Hoje mesmo, passamos boa parte do debate falando sobre as cenas de sexo. Isto para mim foi muito esquisito. Só comecei a entender que aconteceria algo assim quando entreguei os roteiros aos atores do teste. Com a exceção do Rodrigo (Bolzan), os demais homens perguntaram o que eu faria com as cenas de sexo, ao ponto de alguns se considerarem incapacitados de entrar o filme por conta delas. Foi aí que entendi que o sexo, de fato, é uma questão. Nosso desejo era trabalhar o sexo como algo que muda, assim como qualquer parte de uma relação. Não fazia sentido filmar o sexo pelo sexo, a intenção era mostrar que ele se modifica junto com a relação. Para mim foi muito surpreendente entender isso, pois simplesmente não entra na minha cabeça que o sexo seja uma questão.
Em Pendular arte vida são praticamente indissociáveis, espelhando, de certa maneira, sua relação com o Matias Mariani, roteirista do filme e seu marido. Como se dá essa dinâmica entre vocês?
É confusa (risos). Óbvio que é confusa, inevitavelmente. Arte e vida são âmbitos inseparáveis porque uma coisa influencia a outra. E isso também gera atrito, conflito, mas também amor, desejo, tesão. Nosso tesão, nossa libido fica variando entre as duas dinâmicas da relação e do processo artístico.
A que vertente do cinema brasileiro você acha que o Pendular se filia?
Deixo isso para vocês, críticos. Posso dizer que há um milhão de filmes brasileiros que me influenciam, obras que eu amo. Isso provavelmente transparece de alguma maneira. O convívio nos festivais, as conversas com as pessoas que estão aqui, pensando cinema, que me fazem pensar cinema junto com elas, sem dúvida, são influências.
Você foi assistente do Ruy Guerra em Estorvo. O trabalho com ele te influenciou de maneira mais direta?
No Estorvo (2000) não tive um trabalho direto com o Ruy. Na verdade, eu era estagiária da assistente de direção. Foi meu primeiro filme, mesmo, porque no Doces Poderes (1996), da minha mãe (a também cineasta Lúcia Murat), fiz o casting da figuração. Mas, voltando ao Estorvo, tive pouquíssima relação com o Ruy. Mal ou bem, havia uma estrutura de set mais clássica, com os estagiários não se relacionando muito com o diretor (risos). A influência que vem dele é a dos filmes, mais que a do trabalho. As pessoas que mais me influenciaram diretamente foram, sem dúvida, minha mãe e o Jonathan Nossiter, norte-americano que filmou no Brasil. Fui assistente dele durante mais de um ano. Seu processo de trabalho me fez pensar muito. Tem, também, influência da galera jovem, ou, agora, já menos jovem, pois todo mundo está casa dos 40 anos (risos): a Marina Meliande, pessoa com quem tenho uma parceria muito grande, o Felipe Bragança, a Anita Rocha da Silveira, enfim, o pessoal do Rio. Fora isso, tem a galera de Minas e de Recife.
Como é quando as pessoas te chamam de Lúcia (risos)?
Hoje em dia não é mais uma questão. Obviamente, quando eu tinha 16 anos era. Lembro que no meu primeiro set com minha mãe, como assistente no Brava Gente Brasileira (2000), comecei a chamar ela no rádio de Lúcia, justamente porque as outras pessoas escutavam. No terceiro dia isso já não fazia o menor sentido. Passei a chamá-la de mãe, mas lá isso me incomodava. No Quase Dois Irmãos (2004) eu era assistente de câmera e, obviamente, tinha de carregar peso. Minha mãe ficava histérica, dizendo que alguém poderia me ajudar e eu pensava “exatamente porque eu sou a sua filha, tenho que mostrar que posso carregar peso, que sou capaz disso” (risos). Havia essa questão meio auto-afirmativa. Hoje só tenho orgulho de ser filha de quem sou.
(Entrevista concedida, ao vivo, no Festival de Brasília de 2017)