Embora Pendular (2017) se fundamente numa dinâmica de casal, a personagem de Raquel Karro, chamada simplesmente de Ela, constantemente toma de assalto a cena, crescendo enquanto indivíduo na medida em que a crise ameaça desestruturar o relacionamento. Raquel é atriz, cenógrafa e foi durante algum tempo acrobata do Cirque du Soleil. Não é de se estranhar, portanto, que a cineasta Julia Murat tenha elegido o seu corpo para expressar sensações e nuances. Nascida em Itaqui, no interior do Rio Grande do Sul, ela é, desde já, uma das grandes revelações do cinema em 2017. Na entrevista que vem a seguir, Raquel comenta sobre as singularidades do processo cinematográfico, as cenas de sexo e o puritanismo vigente, bem como acerca dos espaços, sejam eles metafóricos ou literais, que concernem especificamente à mulher. Confira o nosso bate-papo exclusivo com Raquel Karro.
Mesmo dentro da dinâmica do casal, sua personagem acaba sobressaindo em Pendular. Como foi esse processo de interpretar a sua primeira protagonista no cinema?
Delicioso e perturbador. É o meu primeiro filme. Gostei muito de fazer. Tem um lugar interessante ali à interpretação. Venho de um teatro contemporâneo, que eu amo, mas no cinema há o negócio de tanta gente em prol de cada gesto e movimento. Tem tanta gente escolhendo, criando, determinando, do seu trabalho, o que atravessa o filme. Coisas que você sofreu por um motivo, mas estão lá por outro. Isso é tão interessante.
Como você encara, em pleno ano de 2017, o espanto de algumas pessoas com as cenas de sexo no cinema?
Acredito que o desconforto venha do tesão. É perturbador sentir tesão em público. Talvez o que devamos nos perguntar é por que a raiva e as lágrimas são respeitadas, mas com o tesão a gente tem tanta dificuldade? Parece que o tesão precisa ser correspondido. Uma coisa errada é que as mulheres somente são autorizadas a sentir tesão depois de despertá-lo. Tenho 41 anos, isto é uma característica minha, sempre me coloquei na posição de quem vai ser seduzida. Acredito que o Pendular aborda o sexo de uma maneira interessante, porque as cenas em que ele surge são marcadas pela decisão conjunta. Elas acompanham o ritmo do relacionamento, os acontecimentos não são idealizados, pois fruto do que eu e o Rodrigo conseguimos fazer diante das provocações, do tesão que apareceu para a gente ali. Tenho a sensação, às vezes, de que caminhamos para um lugar de equilíbrio muito sinistro. Estamos aqui para desequilibrar, continuar provocando perturbações, a fim de que as coisas não fiquem num espaço comum.
Em dado momento, à sua personagem é necessário estabelecer um limite, reforçar o seu espaço de mulher, diante do dilema do aborto. Como foi a construção desse âmbito?
Nos relacionamentos, muitas vezes, o homem chega e diz para mulher: “quero te dar um filho”. Aí nós já vemos o lugar do machismo nisso tudo. Deveríamos perguntar: você quer ter um filho comigo? Você quer ter um filho? Você quer uma criança na sua vida e precisa de mim? Mas e se eu não quiser um filho? Fiz o filme inteiro amamentando. Tive filho com 37 anos, o que é considerado, absurdamente, uma idade avançada. As coisas estão mudando e ainda dizemos que é tarde. As mulheres têm filhos cada vez mais tarde, ou seja, isso vai mudar, inclusive biologicamente já está diferente. Eu não tinha certeza se queria filho, aliás, acreditava que não queria. Então, durante todo o processo do filme ficava reafirmando que é possível compartilhar a criança, “dividir” esse ser que depende tanto do corpo feminino. Defendo que as mulheres relaxem, também para se amarrar em suas crias até quando for necessário, pois que há um momento em que você precisa voltar para o mundo.
E o espectador se prende ao filme muito pela jornada da sua personagem…
O filme vai crescendo, não é? Filmamos cronologicamente. Acredito que fui melhorando ao longo do processo. A história se aprofunda, Ela vai para o espaço Dele. O trabalho das artes plásticas certamente é mais rentável, o primo rico da dança. Vejo tudo isso no filme como um retrato. O crítico contundente está mais nas artes plásticas que na dança. O suporte é muito maior. Quem trabalha com dança ganha pouco. Tentamos até colocar uma coisa no filme, mas, infelizmente, não cabe tudo. Ela certamente dá muita aula para sobreviver, faz direção de movimento de trabalho que não gosta. Já ele é um artista estabelecido. Nossa escultora é mulher, então nem se pode falar disso por um viés de gênero. Uma bailarina no meio disso tudo é uma coisa tão frágil. Me vi mais ou menos nessa situação. Quando passei no teste, estava com um filho de 5 meses, portanto meu corpo não era o de uma bailarina, eu não estava bailarina. E é assim, mesmo. As coisas podem acabar de repente. Num ano, tem de fazer alguma coisa e quando volta, acaba, porque não consegue mais ou porque você não encontra prazer naquilo. Esses adversários estão diretamente relacionados ao corpo.
Te veremos novamente no cinema, em breve?
Vou fazer uma participação no filme chamado Jovens Polacas, primeiro longa do Alex Levy. Conta a história das polacas trazidas ao Brasil. Meu parceiro Thierry Trémouroux participa também, embora a gente não esteja junto nele. É uma personagem linda, mas dura. Espero muito que Pendular me traga novos trabalhos, pois gostei muito de fazer cinema.
(Entrevista concedida, ao vivo, em setembro de 2017)
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