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Mais Pesado é o Céu :: “O filme fala de sobrevivência e esperança”, diz o diretor Petrus Cariry

Publicado por
Marcelo Müller

Filho do grande Rosemberg Cariry, Petrus Cariry poderia ter escolhido uma profissão diferente daquela em que o pai se tornou referência nas últimas décadas. Talvez seria até mais simples, afinal de contas, são naturais as comparações e não raro os descendentes de grandes artistas que seguem os passos antes trilhados pelos pais podem passar a vida inteira à sombra de uma reputação. No entanto, Petrus decidiu ser cineasta assim como o pai, encarando as barreiras que evidentemente seriam erguidas diante de si. Mesmo ainda na casa dos quarenta anos de idade, ele pode bater no peito e se orgulhar de ter uma obra consistente, feita de filmes que contêm uma assinatura clara e autoral. Os filmes de Petrus Cariry são atmosféricos, lindamente fotografados e com um significativo senso de profundidade emocional. Tanto apreciador das obras consagradas de mestres como Andrei Tarkovsky quanto entusiasta das produções exploitation australianas como Drive-In da Morte (1986), Petrus seguramente é um dos melhores cineastas brasileiros da atualidade. E isso é confirmado em seu mais novo filme, Mais Pesado é o Céu (2023), cuja estreia nas telonas Brasil afora acontecerá no dia 08 de agosto pela Sereia Filmes. Conversamos com Petrus sobre este longa em que Matheus Nachtergaele e Ana Luiza Rios interpretam uma dupla de solitários desconhecidos formando uma família possível em torno do bebê abandonado no interior do Ceará. O resultado deste Papo de Cinema você confere logo abaixo.

De onde surgiu essa ideia de dois personagens perdidos no interior do Ceará construindo uma família para tentar suportar as dores de uma vida difícil?
Não sei exatamente como surgiu. Eu tinha a ideia de fazer um filme sobre uma personagem feminina que voltava do Sul para o Nordeste, provavelmente depois de uma experiência não muito bem-sucedida fora de casa. Ela passaria por adversidades na estrada até chegar a esta cidade submersa de Jaguaribara. Esse foi o storyline principal. Depois surgiu o Antônio, as pessoas se cruzando e encontrando um bebê com o qual formam uma família meio improvisada. Comecei e esboçar a história depois de Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015). Mais tarde, Firmino Holanda e meu pai, Rosemberg Cariry, entraram nesse processo. Em princípio, queria fazer um filme mais solar, otimista e, quem sabe, mais leve. E nunca sai esse filme (risos). Ele foi ficando mais denso e pesado, até mesmo porque estávamos numa época de transição de governo com a entrada de Jair Bolsonaro na presidência do Brasil e a sua proposta reacionária de destruição da cultura. Havia essa cruzada contra a cultura e os problemas culminaram na pandemia da Covid-19. Diariamente nos chegavam notícias de milhares de mortes. No fim das contas, o filme foi permeado por esses fantasmas, ele acaba abarcando tudo isso. Sobreviver era algo muito latente.

Como se deu o processo de escolha do elenco? Alguns dos papeis foram escritos tendo em mente os seus respectivos intérpretes?
Quando escrevi o personagem do Antônio, ele foi pensado para o Matheus Nachtergaele. Isso era fruto de um mútuo namoro antigo, pois queríamos muito trabalhar um com o outro. Volta e meia conversávamos sobre isso, até que chegou o momento certo. Para a personagem de Teresa, eu tinha algumas atrizes em mente, mas queria que ela fosse cearense para dar autenticidade à personagem. Conheci a Ana Luiza Rios em O Clube dos Canibais (2018) e percebi que ela era uma atriz com muitas cartas na manga. Fiz uma aposta neles dois como o casal. Vi a Danny Barbosa no Bacurau (2019) e em outros trabalhos, já conhecia o Buda e a Sílvia Buarque era uma parceira de outros filmes. Não sou muito adepto de testes, sou mais de convidar o elenco e ir diretamente para o set. Então, no fim das contas tudo é uma aposta, às vezes dá certo e em outras não. No caso desse filme, deu tudo certo. Matheus e Ana Luiza compreenderam muito bem os seus papeis.

Você é muito reconhecido pela beleza visual de seus filmes, pelo apuro fotográfico, mas menos do que deveria pela excelência como diretor de atores. Como é a sua relação com o elenco?
Gosto muito de trabalhar a mise-en-scéne com os atores, até porque meus filmes dependem dos quadros, especificamente de como colocar as coisas em cena. Gosto de trabalhar com o elenco e nunca recorri aos preparadores. Nada contra, há resultados incríveis com preparadores, mas, com erros e acertos, quero fazer do meu modo. Diga-se de passagem, fiquei feliz no Festival de Gramado de 2023 com o prêmio de Melhor Direção, que nunca havia ganhado. Ser reconhecido pela direção de atores me deixou super feliz. Fizemos um trabalho dedicado em Mais Pesado é o Céu (2018). A ideia era os intérpretes se enxergarem como os personagens, assim se entregando a eles visceralmente.

Há uma distância muito grande entre a última versão do roteiro e o filme pronto? Você é um cineasta aberto a modificar as coisas a partir do que acontece no processo de filmagem?
Sendo bem sincero, aposto muito nesse espaço de criação com o elenco durante as filmagens. Desenvolvemos cenas, alteramos falas, então estou sempre aberto a contribuições. Mas, às vezes não há tempo para assimilar muitas mudanças. Isso depende muito do filme e de como o elenco está envolvido com ele. Ao longo da minha carreira mudei cenas completas na hora, já cheguei ao cúmulo de inverter personagens.  Sou muito aberto a mudanças e à invenção. Nesse filme há coisas criadas na hora, como a última fala de Antônio, uma sugestão do Matheus.

Você faz cinema em família. É produzido por sua irmã, Bárbara e frequentemente colabora com seu pai, Rosemberg Cariry. E nos seus filmes a família ou a busca por uma família sempre é algo muito importante. A que você atribui essa recorrência temática?
Sempre é em torno de uma família, verdade (risos). Não tenho ideia sobre isso, nem na análise cheguei a uma conclusão. Realmente é sempre uma família em crise. Tanto que meu próximo filme, o Entre os Dias, também fala de uma família extremamente conservadora se devorando num período bem recente de neo-fascismo. Ele vai flertar com o horror, até porque essa família começa a literalmente….não vou falar porque senão vira um enorme spoiler (risos). Estou terminando o roteiro e devo filmar no ano que vem. Sobre a produção, fazemos filmes pequenos com poucos recursos. Meu pai é a primeira pessoa a quem mostro o roteiro, então ele acaba se envolvendo. O Firmino é um parceiro de muito tempo e a Bárbara sempre produz porque ela faz um esforço enorme para viabilizar os filmes da melhor forma possível.

Os estados do Nordeste têm se tornado referência do cinema brasileiro nas últimas décadas. Você se sente fazendo parte de um movimento importante de descentralização da produção no eixo Rio-São Paulo?
Existem criadores em perspectivas e situações bastante específicas, mas o cinema do Nordeste forma realmente um movimento. Se você olhar os últimos dez anos dos grandes festivais, Gramado, Brasília, Rio, uma porcentagem enorme de filmes e diretores premiados é nordestina. Atribui isso ao fato de a região ser um grande caldeirão cultural que, de alguma forma, resvalam nos filmes. Não produzimos a quantidade que deveríamos, mas a média consegue ecoar. Pegando o Ceará como exemplo recente, temos o Estranho Caminho (2023), A Filha do Palhaço (2023), Quando Eu me Encontrar (2023) e Mais Pesado é o Céu. Foram filmes que circularam bastante em festivais, alguns dos quais saíram premiados. Caso produzíssemos mais, seria ainda mais interessante, pois a diversidade tenderia a aumentar.

Você falou que Mais Pesado é o Céu, de certo modo, reflete o período no qual ele foi rodado, de incertezas por conta da pandemia e do cenário político. É por isso que ele termina com um raio de esperança, apesar de toda selvageria?
Sim, a sobrevivência é intrínseca ao ser humano. Isso está sempre próximo da gente, embora nem sempre percebamos. Essa luta por continuar, por seguir vislumbrando um futuro melhor, por continuar tendo um fio de esperança. Durante a pandemia todos estavam querendo escapar. Eu tinha o delírio que depois disso as sociedades ficariam melhores, mas elas seguiram como sempre. Esse filme fala um pouco disso, pois foi criado num momento conturbado política e socialmente, numa nação em frangalhos. Essa coisa da pandemia dizimando pessoas foi assustador em vários aspectos. Mais Pesado é o Céu é sobre esperança, especialmente no novo simbolizado por aquela criança.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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