Um dos grandes realizadores do cinema brasileiro contemporâneo, Claudio Assis chega ao seu quinto longa-metragem de ficção com Piedade (2019), seu mais recente trabalho. Cineasta premiado no Brasil e no exterior – em sua estante estão troféus conquistados em Berlim, Brasília, Fortaleza, Lisboa, Havana, Paris, Paulínia, Roterdã, São Paulo e Toulouse, entre tantos outros – enfrentou uma situação inédita para a finalização desse novo projeto: um problema de saúde que por pouco não impossibilitou esse projeto. Mas agora, já com tudo superado, está pronto para dialogar com espectadores de todo o país com uma história de segredos familiares e protestos institucionais. O Papo de Cinema conversou com o diretor logo após a primeira exibição do filme, durante o Festival de Brasília de 2019, antes da pandemia de Covid-19 e do adiamento da estreia, inicialmente prevista para o ano passado. Confira!
De Amarelo Manga (2002) até Piedade, o que mudou no teu cinema após todos esses anos?
Não mudou muito, não. Continuo fazendo as coisas que são necessárias, que me batem. Que me importam na vida. O meu é um cinema que pulsa nas minhas veias. E que está presente em tudo o que faço. Não tem mistério. Tenho um projeto de fazer uma série, baseada num livro do Xico Sá, e assim como tudo com que já me envolvi, são coisas que vão acontecendo. O Piedade é uma mistura de tudo que me diz respeito. É uma ficção, lógico, mas trata de assuntos recorrentes na minha vida. Lutei contra a construção do Porto de Suape, em Recife, que se mostrou um desastre ecológico. Fechou vários rios, infestaram as praias de tubarões, que se perderam pela mudança das correntes e agora atacam as pessoas. E isso porque agora eles não tem o que comer. Antes, se alimentavam dos peixes que vinham dos rios. É um estuário que foi destruído. A culpa é toda do homem.
Além da denúncia, esse é também um filme muito pessoal, certo?
Envolve minha família, fatos que aconteceram comigo. Minha preocupação foi em traduzir isso de forma ficcional. A Dona Carminha, personagem da Fernanda Montenegro, seria a minha mãe. Ela tem esse filho que nunca conheceu, o Cauã Reymond, e seria ele o meu irmão. Nós também perdemos alguém que nos era importante.
Como foi retomar esses assuntos e revisitar essa história?
Era um negócio que sempre quis fazer. Um desejo antigo. Uma coisa natural, normal, de maturidade, mesmo. Vem da minha parceria com o Hilton Lacerda, meu roteirista, e com a Ana Carolina Francisco, que está trabalhando com ele. São pessoas que fazem o cinema que quero, que me interessa.
É mais fácil retomar antigas parcerias? Não só atrás das câmeras, mas também no elenco, como o Irandhir Santos, o Matheus Nachtergaele?
Sou do tempo que o Buñuel e outros mestres costumavam trabalhar com os mesmos atores. Então, se dava certo com eles, por que não utilizar do mesmo método? Aprendi a fazer cinema vendo esses gênios em ação. Não quero copiá-los, mas vou citá-los, sim. Se dá certo com uma pessoa, qual o problema de repetir a parceria? Ao mesmo tempo, abrindo espaço para gente nova, como o Gabriel Leone, ou o próprio Cauã Reymond. Gosto de descobrir talentos.
Uma dessas pessoas novas foi a Fernanda Montenegro. Como foi se adaptar a esse pessoal que estava chegando?
Foi uma forma de dizer “sejam bem-vindos”. Estava em busca de uma atriz que fizesse o papel que ficou com a Dona Fernanda. Mas não estava encontrando. Foi numa conversa com o Matheus Nachtergaele que me sugeriu o nome dela. Entrei em contato, e marcamos um encontro. Naquela época, estava falando com atrizes espanholas, gente que havia trabalhado com o Almodóvar, para você ter uma ideia. Estava em São Paulo quando Dona Fernanda aceitou falar comigo. Peguei um avião e fui para o Rio de Janeiro. A encontrei em uma livraria. Tivemos uma conversa muito elegante. Ela ficou fascinada com a história, e topou de imediato. Fiquei maravilhado com o que estava acontecendo. A Dona Fernanda aceitou participar de um filme meu? Como assim?
Ela mergulho na tua proposta?
Exato. Logo em seguida, conheci o Cauã Reymond, fiz o convite e ele também aceitou na hora. Foi na mesma livraria, aconteceu dele estar por lá com o empresário dele. Expliquei a história, e me disse: “não quero nem ler o roteiro, pode contar comigo”.
Uma aceitação como essa deixa evidente a tua força enquanto contador de histórias.
Rapaz, não sei te dizer. É uma responsabilidade que não conheço, que não ocupa meus pensamentos. Trabalho visceralmente, com as pessoas que decidem embarcar comigo em cada jornada. Não sei fazer plano e contraplano, compor cenas elaboradas. Odeio quem faz. Meu cinema é do agora, do momento. Quero juntar as pessoas. O filme não é meu. Está escrito lá: “direção de Claudio Assis”, mas não é meu. É de todo mundo que está ali. É o coletivo que faz. Minha ocupação é trazer pessoas para dentro, que vão somar.
Dois elementos são recorrentes no teu cinema: sexo e violência. Como foi trabalhar com essas questões no Piedade?
Você não pode fazer um filme que não tenha sexo. Se você está falando da vida de alguém, vai ter sexo. Seja comendo xoxota, dando a bunda, fazendo o que você fizer. Isso está na vida das pessoas. Não é uma coisa agressiva, é natural. Sexo é vida, é o que move as coisas. Já a violência está no ser humano. E todo poder é violento. Para se manter no poder, é preciso ser violento. Nada mais justo, cruel e sagaz do que colocar o poder na mão de um engenheiro de uma petroquímica, um cara que age com violência em todos os aspectos de sua vida, inclusive no sexo. Ele quer destruir tudo. É recorrente, e também natural.
Piedade foi muito aguardado. Depois das filmagens, como foi o processo até ser finalizado?
Acontece que tive um AVC. Por causa disso, precisei dar um tempo, aguardando, até que estivesse recuperado. Tive sequelas, mas agora estou bem, tá tudo tranquilo. O filme tem em si uma denúncia que é o mar, o tubarão. Tudo o que foi feito com eles, e que hoje está acontecendo. É um filme de uma atualidade muito forte.
Piedade foi premiado no Festival de Brasília. Você tem uma relação especial com esse evento.
Comecei a frequentar Brasília antes ainda de ter feito meu primeiro filme. Depois vieram os curtas, os longas. Sempre faço questão de participar. É um festival que está muito perto do poder, e por isso mesmo é um momento de resistência. São mais de cinquenta anos! É marcante, bacana, e com uma estrutura muito legal.
Piedade adquire uma importância maior ao chegar nos cinemas num Brasil com esse governo?
Acho que sim. Esse AVC que tive, parece que foi premeditado. Foi o tempo de espera necessário para poder lançar o filme no meio dessa situação. Afinal, agora se mostra mais atual do que nunca. Se tivesse sido lançado antes, não teria tido um encaixe tão perfeito. Caiu do céu. Beleza, tá tudo valendo.
(Entrevista feita ao vivo em Brasília em 24 de novembro de 2019)