No 48º Festival de Gramado, um dos principais destaques entre os longas-metragens gaúchos é o documentário Portuñol (2020), dirigido por Thaís Fernandes. A cineasta visita diversas regiões fronteiriças do Brasil (com Uruguai, Paraguai, Bolívia etc.) para registrar de que maneira as línguas se fundem e se transmitem na cultura local. Entre português, espanhol e guarani, os moradores desenvolvem poesias, letras de música e ritmos desconhecidos na maior parte do Brasil.
O Papo de Cinema conversou com a cineasta a respeito desta produção, disponível no Canal Brasil Play até o dia 24 de setembro:
De onde vem o interesse específico pelas regiões fronteiriças?
É importante saber que a ideia original não é minha: o argumento vem da Jéssica Luz, que também é produtora executiva do projeto. Foi ela que me convidou a dirigir o filme. Então teve um processo de me apropriar da história, dando uma cara para este projeto enquanto diretora. A ideia não partiu de mim, mas isso geralmente ocorre nos documentários, quando o diretor também é roteirista. Quanto aos lugares que a gente visitou, a minha vontade teria sido explorar todas as fronteiras do Brasil, incluindo ao norte, na fronteira com o Peru e a Colômbia. Mas como somos um filme de baixo orçamento, foi preciso nos adaptar à realidade do orçamento.
Escolhemos um recorte de fronteiras que já são muito ricas enquanto informação e realidade. A vontade inicial surgiu do fato que o portunhol do Uruguai é muito específico. Cada fronteira tem uma realidade particular, e começamos com o Uruguai, que está mais próximo de nós, do sul do país. Depois descobrimos outros lugares. O meu grande aprendizado foi conhecer mais do “guaranhol”, ou seja, a mistura do espanhol com o guarani. Isso era muito distante de mim, só descobri ao longo da pesquisa. Se não me engano, fui eu que trouxe a ideia de misturar fronteiras com línguas no projeto, para falar de territórios através da língua, que é algo invisível. Você não a vê, mas a vivencia. Como o filme tem uma natureza imagética, a questão da fronteira territorial foi uma forma de traduzir a língua em imagens.
As fronteiras costumam ser abordadas por questões políticas e administrativas, ao invés do aspecto cultural que vocês escolheram.
Isso foi algo muito legal no processo. Quando peguei o projeto para dirigir, isso já era algo que queria fazer: abordar a dimensão cultural desses lugares. O processo foi orgânico, porque as pessoas ficavam muito felizes de saber que existiria um filme sobre a fronteira sem falar de contrabando, violência e polícia. A ideia era abordar a cultura da fronteira. O engajamento das pessoas foi ótimo, inclusive nas redes sociais, quando divulgamos o trailer do filme. Percebi o orgulho das pessoas em ser fronteiriças, algo que raros filmes brasileiros registram. Do ponto de vista logístico, trabalhamos com produtores locais. Como eu não tinha ido a esses lugares antes, eu literalmente encontrei as pessoas durante o caminho – nada daquilo foi encenado. Eu realmente encontrei as pessoas pela primeira vez do modo que está retratado na imagem, mas eram os produtores locais que conheciam as pessoas e nos indicavam. Não consigo me lembrar agora de alguém que tenha se recusado a participar. Todo mundo que foi sugerido como representante de alguma questão cultural aceitou participar do filme.
Que tipo de controle vocês tinham sobre essa narrativa espontânea?
Esse foi um filme de encontros. O meu roteiro prévio tinha uma lista de temáticas que me interessavam, e que eu queria abordar, ao invés de situações. Comecei o filme tateando para entender como traduzir em imagens o fenômeno invisível da língua. Em alguns trechos, optei por fazer uma legenda literal, exatamente como as pessoas estavam falando. Mostramos alguns cortes [do processo de edição] às pessoas que nos diziam: “Está legal, mas cadê o portunhol?”. As pessoas costumam pensar que o portunhol significa falar o português errado, ou o espanhol errado, mas não é nenhuma das duas coisas. É uma terceira língua, e os moradores dessas regiões têm orgulho em explicar isso. Felizmente, os personagens estavam muito interessados em mostrar isso para a gente: um poema foi recitado na hora, por exemplo.
A canção do “Chaleco” também foi especial. Quando eu disse à produtora uruguaia que buscava algo capaz de traduzir essa textura cultural, ela me apresentou a banda de Cumbia que tinha acabado de lançar uma música sobre isso. Parece que o filme sabia o que queria dizer por si próprio, e a história foi se colocando dessa forma. Sabia que queria falar de música, gastronomia e misturas culturais, então quando conversava com as pessoas, tentava levar a esses temas. Isso acabou acontecendo naturalmente, diante das câmeras. Não ensaiei nada. Isso vale para a estética da van: eu sabia que queria uma câmera viajante, mas por causa de um atraso naquele dia das filmagens, a gente precisou entrevistar uma pessoa dentro da van, e isso se tornou uma linha estética. Nasceu a ideia de pegar a pessoa num lugar, deixá-la em outro e continuar a viagem pelas fronteiras. O filme foi acontecendo na estrada.
As legendas têm um papel importante. Não me lembro de ter antes visto o guarani escrito enquanto tal, sem tradução para o português.
Além da legenda literal na parte uruguaia, proposital para as pessoas verem o portunhol, eu fiz questão de deixar o guarani exatamente como estava sendo dito, porque não temos contato com essa língua. De fato, raramente o vemos escrito, o que torna a língua ainda mais distante de nós. A legenda seria uma forma de marcar a nossa distância em relação a essas culturas. Muitas comunidades indígenas fazem questão de não ensinar a sua língua aos não-indígenas, como forma de preservar a sua cultura. No caso do filme, isso marca como a gente desconhece, e como está distante das culturas indígenas. O fato de muitas pessoas jamais terem visto o guarani escrito diz respeito a isso: costumamos colocar toda a cultura indígena num mesmo saco, como se fossem uma coisa só, mas existe uma diversidade cultural e linguística imensa. A decisão de manter o guarani sem tradução foi uma escolha política para mostrar nosso desconhecimento, além de ser uma forma de respeito, para que apenas as pessoas capazes de compreender a língua entendam o que está dito ali.
Uma das falas do filme sugere que as fronteiras são convenções fictícias, e que viveríamos melhor como uma grande comunidade única. O que pensa sobre isso?
A fronteira é um fenômeno específico de cada lugar. Trago o aprendizado dos indígenas, para quem as fronteiras não existem: elas são uma coisa criada pelos brancos. Quando eles visitam um parente, eles não pensam se estão atravessando ao Paraguai, apenas pensam em se deslocar até esta pessoa. A questão de dividir território é muito capitalista, ao mesmo tempo que nos traz uma diversidade de cultura e de visão de mundo. Talvez a gente se beneficiasse de viver numa grande pangeia, sem um muro para nos separar, mas sei isto seria utópico. Para além dos muros, existem muitas outras questões que nos separam, como crenças e formas de enxergar as relações humanas. Dentro do nosso país hoje, a gente vive uma grande polaridade política, e nem precisamos de um muro para mostrar a nossa intolerância. Na verdade, nosso problema nem são as fronteiras, mas a capacidade de conviver com as diferenças. O filme deixa o aprendizado de que é possível conviver com as diferenças.
O filme adquire um significado particular agora, num ano de festivais online e ataques às comunidades indígenas?
Infelizmente, a pandemia nos tirou o encontro ao vivo, que é uma experiência essencial dos festivais. Por outro lado, o Festival de Gramado não presencial trouxe uma oportunidade incrível, porque o filme vai muito mais longe. No caso do Portuñol, sei que muito mais pessoas puderam vê-lo na Internet – até porque não teriam condição de viajar até Gramado – do que veriam numa edição presencial. Então o debate que a gente propõe é ampliado por esse momento. As pessoas ainda têm medo do diferente. Sempre me lembro da frase de um filósofo inglês, que dizia que nossas invenções tecnológicas, como a roda e as vacinas, não são esquecidas. Já as nossas conquistas de direitos humanos e convívio social são uma batalha constante, imensurável. Em termos científicos, é fácil dizer que a gente era menos desenvolvido em 1500 do que agora. Mas em termos de convívio humano, é difícil mensurar: apesar da modernidade, na década de 1940 houve o Holocausto.
Os direitos humanos e a convivência com a diferença vivem um constante estica e puxa. A cada avanço que conquistamos, a onda de intolerância percebe e contra-ataca. Quero acreditar que estamos vivendo num momento de contra-ataque à intolerância, e que vamos reagir com a evolução. Estamos vivendo um florescimento do feminismo, num sentido mais amplo. Em paralelo, as comunidades indígenas estão sendo atacadas de maneiras ainda mais fortes e explícitas neste momento. Quero acreditar que isso vai servir para a gente valorizar mais estes grupos e esta cultura. O filme serve como mais uma ferramenta para entender a importância de conviver com o diferente. A mensagem parece simples e óbvia, e você a encontra em qualquer livro sagrado das religiões: trate o outro como gostaria de ser tratado. Mas nós esquecemos este significado. Portuñol mostra isso em imagens: podemos sim conviver com alguém que fala diferente, pensa diferente, canta diferente, e ainda assim compartilha do mesmo espaço que o nosso.