Lúcia Murat é uma das grandes cineastas do Brasil. Dona de oito indicações ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro, ganhou como Melhor Documentário por Uma Longa Viagem (2011), trabalho que lhe valeu também o kikito de Melhor Filme no Festival de Gramado e uma indicação ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro – o Oscar da produção nacional. Por Que Bom Te Ver Viva (1989) ganhou o Candango de Melhor Filme no Festival de Brasília, com A Memória que me Contam (2012) foi reconhecida pela crítica no Festival de Moscou e por Quase Dois Irmãos (2004) colecionou troféus nos festivais de Huelva, na Espanha, e de Mar del Plata, na Argentina, além do primeiro Redentor de Melhor Direção no Festival do Rio. E o segundo veio treze anos depois, com Praça Paris (2017), que está chegando agora aos cinemas do circuito comercial. E aproveitando esse momento, nós encontramos a diretora para saber mais sobre esse projeto em um bate-papo inédito e exclusivo. Confira!
Olá, Lúcia. Tudo bem? Pra começar, gostaria que você falasse sobre o título. Qual o significado de Praça Paris para você?
Praça Paris é um lugar que possui um significado muito especial na trama do filme. Essa praça surgiu a partir de uma intenção em reproduzir, aqui no Rio de Janeiro, um espaço que fosse uma referência. Também representa, pra mim, muito do conflito cultural que queria discutir. Ela foi feita em 1926 como parte de um projeto de transformar o Rio de Janeiro, que na época era a capital do país, em uma Paris, sabe? Fazia parte de um projeto imenso, do qual nada foi feito, ou muito pouco. Esse era o exemplo de debate ao qual estava me propondo, dessa imposição sobre o meio que nada tem a ver com a realidade tropical do país. Ficou isso como pano de fundo. É por isso, também, que a personagem quis fazer a foto ali, pois ao mesmo tempo, o Rio de Janeiro está em permanente desconstrução e construção. Há pouco foram as obras para as Olimpíadas, é um círculo permanente. Com tanto faz e desfaz, como é possível se chegar a uma identidade? É um pouco disso que o filme fala.
Praça Paris começa e termina num penhasco. O que essa imagem representa para você?
Ali é Portugal, é um momento em que a personagem está procurando à sua volta por algo que lhe faça sentido. Não é uma tentativa de suicídio, não está com isso querendo dizer que não consegue suportar aquilo tudo pelo qual está passando. Ali, naquele horizonte, estão os mares, é uma forma de saída, da representação que o mar traz. Não chegamos a filmar em Sagres, que fica perto de Lisboa, mas é como se fosse. É a saída de um ponto muito extremo para Brasil. Ela está em busca de alguma coisa que nem bem ela sabe o que é. Mas também tem esse diálogo da relação de Portugal com as colônias, desse passado de tantas conquistas que acabou se perdendo.
Este é um filme de alma feminina, assim como toda a tua obra. Como você vê a questão do empoderamento feminino, que tem sido tão discutido atualmente?
É uma questão muito impressionante. Quando fiz o Que Bom Te Ver Viva (1989), que foi um dos meus primeiros filmes, praticamente não tinha mulher trabalhando comigo: a equipe era totalmente masculina. Agora, nesse filme, foi muito interessante, mas foi quase o contrário. E não foi proposital, não estava em busca de mulheres. Mas, quando me dei conta, estava cercada por elas, e todas muito jovem, todas femininas. Acho que só os coprodutores eram homens! Chegamos a ter doze mulheres no set! E várias eram ativistas desse empoderamento feminino de hoje, com seus blogs pessoais, envolvidas em ONGs. Me deparar com isso foi extremamente interessante! Como disse, não procurei ninguém com essa intenção, mas, ao mesmo tempo, se deparar com essa realidade foi intensamente gratificante, muito bonito. Sabe, tenho mais de 30 anos de cinema, e nunca tinha visto isso em um set, com tanta energia, gente jovem, todo mundo acreditando, num projeto de baixo orçamento, de gente apaixonada, mesmo.
Era algo que estaria em cena e que acabou se revelando também nos bastidores, pelo jeito.
Em relação ao filme em si, realmente já passei por isso várias vezes. Talvez por ser mulher, sempre me preocupei em falar de personagens femininas, até porque pra mim elas são mais fáceis. Eu conheço essa realidade, certo? (risos) O meu co-roteirista, Raphael Montes, é um homem, e isso em nenhum momento passou pela minha cabeça como um problema, por exemplo. O chamei já há alguns anos, quando era um desconhecido, tinha só um livro publicado. Mas li e gostei muito, senti que seria interessante trabalhar com ele. Era algo de gênero, uma mistura de thriller com suspense. Ou seja, alguém que trabalhava com esse tipo de fabulação que me interessava. E, de fato, ele bolou coisas incríveis que acabaram no filme! Então, entre homens e mulheres, prefiro quem tenha talento.
Joana de Verona e Grace Passô são dois achados. Como você chegou até elas? E como se desenvolveu o trabalho com as protagonistas?
A Grace, na verdade, foi uma coincidência. Bem antes de filmar, quando estávamos ainda na fase do roteiro, ela surgiu na minha frente. Sabe, é muito difícil achar uma atriz negra que não seja mulherão e tal, aquele padrão de gostosona que as novelas impõem, ou que não seja comediante. E não queria isso, não estava atrás de um tipo estetizado. Primeiro, conheci a Grace como dramaturga, em uma peça chamada Guerrilheiras. Elas me chamaram para um papo, e depois comentei do filme com ela, quando soube que também era atriz. Foi um encontro muito bom. Ela tinha o physique du rôle que eu buscava para o filme, não caía no clichê, sabe? Além, é claro, de ser uma excelente dramaturga. Por isso tudo, acabou contribuindo muito para o papel, trouxe muitas ideias, colaborou de forma ativa, mas com muito calma. Esse interesse dela possibilitou uma contribuição interessante.
E com a Joana? Por ela ser de Portugal, o processo foi diferente?
Já no caso da Joana, foi meu coprodutor português que a indicou. Ela tem uma experiência boa em Portugal, trabalhou com bons nomes, como o Raoul Ruiz, o Miguel Gomes. Então, quando chegou, já tínhamos uma expectativa. E ela foi muito bem no teste, que era o que precisava para fecharmos. Depois ensaiamos muito, a Amanda Gabriel foi a preparadora do elenco, que também teve uma atuação determinante em todo esse processo. Foi realmente muito bacana.
Porque combinar, num mesmo filme, uma emigrante portuguesa com uma mulher da periferia?
Na verdade, o filme parte de várias intenções que vamos combinando, aos poucos, durante o processo de elaboração. A gente sempre vai buscando ideias, que vão ficando na gaveta. Faz uns 10 anos, se não me engano, antes até da UPP, quando começamos a pensar nesse filme. Agora a gente pega a transição de novo, então é sempre um recomeço. Uma amiga psicanalista comentou como algumas meninas, mestrandas em psicologia, estavam sofrendo ao entrarem em contato com a violência. Foi aí que surgiu essa pulga na minha orelha. Mais tarde, resolvi exacerbar a questão, e fui atrás de quais seriam as condições necessárias para se fazer uma coprodução portuguesa. Foi daí que surgiu a ideia da estrangeira. Primeiro seria uma francesa, mas tinha o problema da língua. Foi interessante isso, da nossa personagem poder se comunicar, mas não ter a vivência para aquilo que ela estava se propondo. E começamos a trabalhar nesse sentido.
Como foi a experiência de filmar em uma favela carioca?
Antes de começar a pesquisa, fomos ao Morro da Providência, que é a primeira favela brasileira. Fomos até lá também por uma questão simbólica. E sempre foi de boa, eu subia tranquilamente, nunca tive nenhum tipo de problema. Porém, na medida em que fomos desenvolvendo o projeto, chegamos até o ponto de hoje, em que estamos no ápice da violência, com a crise da UPP, o recomeço dos tiroteios, o tráfico está de volta à favela. Quando algo assim vai parar nos filmes, as atenções chegam a tal ponto que não tivemos como filmar no Morro, e isso que contávamos com o apoio da associação de moradores! Só nos deixaram filmar lá embaixo! A gente adiou o que pode, fizemos um corte para outro lugar, para uma favelinha pequena, que acabou servindo como se fosse a outra. Mas mesmo assim, é engraçado. Teve gente da Igreja Evangélica que veio se oferecer para usarmos a região deles, e uma semana antes de filmar houve um grupo do Comando Vermelho, se não me engano, que exigiu que pagássemos uma taxa para trabalhar. É claro que não iríamos entrar numa loucura dessas!
A última vez em que conversamos foi durante o lançamento de A Memória que me Contam (2012). Aquele era um filme nostálgico, cujas lembranças eram também motores para seguir em frente. Você retoma essa ideia em Praça Paris, não?
Brinquei sobre isso com a minha filha, a Júlia. Descobri que Praça Paris é autobiográfico. Mas só me dei conta quando o filme já estava pronto. Porque é paranoico? Exatamente! A gente acabou escolhendo uma frase: “o amor é frágil onde o medo é forte” para estar no cartaz, e acho que isso diz tudo. O medo toma conta dessas mulheres, provocando as mortes de outras pessoas. É um filme de gênero, um thriller, não tem um naturalismo da realidade. E isso, hoje em dia, já é tomar uma posição. Afinal, só o que se vê por aí é mais do mesmo, uma polarização que não é saudável, não é boa para ninguém. Quis ir um pouco contra isso.
(Entrevista feita no Rio de Janeiro em outubro de 2017)