Maryam Touzani é uma atriz/roteirista/cineasta marroquina, nascida em 1980 em Tanger. Além de interpretar a personagem mais emblemática de Primavera em Casablanca, um dos destaques do Festival de Cinema Francês 2018, ela é uma de suas roteiristas. Parte da delegação que veio ao Brasil para promover o evento, ela infelizmente dispôs de pouco tempo para conversar conosco – a agenda apertada previa, logo após o bate-papo com os jornalistas, uma sessão comentada na cidade de Niterói. Todavia, a despeito da pressa, foi esclarecedor dialogar com essa artista inquieta, que não se furta de criticar a situação de seu país, especialmente quando o assunto é o tratamento dispensado às mulheres nos espaços públicos. Salima, sua personagem, é uma cidadã que faz do corpo um veículo para atos políticos, a fim de afrontar o pensamento conservador e castrador que relega o feminino ao âmbito doméstico. Confira o Papo de Cinema que tivemos com Maryam Touzani.
Maryam, o que lhe atraiu na sua personagem? Foi o caráter libertário?
Sinto-me exatamente como a Salima. Isso fez com que nos conectássemos automaticamente. A revolta constante, os ressentimentos com relação à conturbada convivência no espaço público, tudo também me afeta enquanto pessoa. A diferença é que senti essas coisas bem mais cedo na minha vida. Ela, diferentemente, chega a determinado momento em que desperta e começa a se dar conta, a se questionar profundamente, bem como a colocar e xeque a configuração social que priva a mulher de certos direitos óbvios.
E ela se expressa, fazendo do corpo um veículo para atos políticos…
Absolutamente. Naquele momento do filme, quando levanta o vestido assim que começa a ser hostilizada, ela promove um ato totalmente político. Não é uma coisa banal, qualquer, pois tem um significado muito forte. Mais adiante isso se repete na praia, assim que ela coloca o maiô, mostrando o corpo, voltando a agir politicamente. É emblemático exatamente por se tratar de uma manifestação pública, de assumir o próprio corpo em público. Vivo num país em que a mulher é aceita apenas enquanto está no espaço privado, fechada na sua casa. Ali ela pode existir. Assim que vai ao espaço comum, a sociedade cada vez mais pretende escondê-la. Isso não afeta apenas seu corpo, mas tudo o que ela representa.
E como você percebe essa realidade cotidiana, explorada tão emblematicamente no filme?
Vestir uma camiseta de alça, um short ou mesmo um maiô nesses espaços públicos configura um ato de grande contestação, libertário mesmo. Acontece porque essa liberdade afronta a sociedade que tenta impedi-la. Nos últimos 10 anos a situação vem piorando bastante. Então, a maioria das mulheres prefere se apagar, tornar-se invisível para não sofrer insultos, para não ser tocada na rua, a fim de que não sofra xingamentos. Isso gera uma conformidade gradativa, uma não reação. Muitas se permitem sufocar. Essa é uma luta que ultrapassa de longe a questão da roupa, porque afronta uma ideologia que estão tentando nos impor há bastante tempo. Repito, isso vai muito além da questão do simples vestir.
(Entrevista concedida ao vivo, no Rio de Janeiro, em junho de 2018)