Na ativa desde o início dos anos 1990, Sophie Fillières é uma das diretoras e roteiristas de maior expressão no cenário cinematográfico francês atual. Após ter se lançado também como atriz – fez uma participação na comédia Na Cama com Victoria (2016) –chega agora ao seu sexto longa-metragem como realizadora com o drama Quando Margot Encontra Margot, estrelado por Sandrine Kiberlain e Melvil Poupaud e já em cartaz nos cinemas brasileiros. Dona de um papo muito agradável, a cineasta conversou por telefone com o Papo de Cinema sobre esse trabalho mais recente, revelou algumas surpresas, se arriscou no português (“o filme é ótimo”, falou com forte sotaque, na nossa língua, ao mencionar o último título brasileiro a que tinha assistido) e falou um pouco também sobre o seu processo de trabalho, declarando que não acredita muito num ‘cinema feminino’, assim como não vê a existência de um ‘cinema masculino’. “O que precisamos é ser mais humanos”, declarou. Confira!
Olá, Sophie. Além de diretora, você também assina o roteiro do filme. Como lhe surgiu a história de Quando Margot Encontra Margot?
Essa história chegou até mim de uma maneira muito simples. Tive essa ideia de escrever e fazer um filme sobre duas garotas, amigas, que possuem o mesmo nome: Margot. O roteiro seria construído a partir de como essa coincidência levaria à confusões e desentendimentos entre elas e com os conhecidos de ambas, e como isso afetaria a vida delas. Até porque morariam no mesmo lugar, dividiriam um apartamento e fariam tudo juntas. Mas isso era um conceito, uma ideia que tive que logo passou. Duas horas depois já estava pensando “e se, além do mesmo nome, elas fossem a mesma pessoa?”. Isso, sim, seria selvagem! Duas garotas, que se conhecem por acaso, e acabam se dando conta que são a mesma pessoa! A partir disso, comecei a pensar na diferença de idades entre elas, na mais velha encontrando a mais nova, e como se tornariam concretas e reais uma para a outra, de carne e osso! Foi assim que tudo começou. Eu havia feito vários filmes diferentes com mulheres. Meu longa anterior fora sobre um casal se separando, e tinha essa vontade de explorar, de uma maneira até mais profunda, o retrato de uma mulher. Por isso essa questão do duplo se mostrou tão importante.
A ideia de colocar a mesma mulher de frente para si mesma, porém em idades diferentes, abre caminho para muitas possibilidades. Que tipo de discussão você tinha interesse de propor com esse filme?
Estava interessada em conversar e trabalhar ao redor da ideia de estar em paz consigo mesma. Por isso separei a protagonista em duas personagens, para que ela, literalmente, pudesse se encontrar. Tinha essa vontade de mostrar alguém buscando a si. Aceitar-se, enfim. Era por isso que essas duas garotas, ou seja, essas duas partes de uma mesma mulher, de uma forma poética e engraçada, até mesmo divertida, conseguem conversar sobre com o que você se vê obrigado a lidar quando está diante de si mesma.
Vamos falar sobre esse encontro. É muito real para elas que se tratam de pessoas distintas, ainda que a mesma. No entanto, e não quero dar nenhum spoiler, em algum momento o espectador fica em dúvida se tudo aquilo está, de fato, acontecendo. Qual foi o teu interesse ao criar essa incerteza?
O filme inteiro é muito realista. Era importante para mim que entendessem que são a mesma pessoa. Mas, ao mesmo tempo, era algo tão grandioso e singular que estava acontecendo que era necessário, também, que houvesse essa dúvida. Quando a melhor amiga dela chega e diz que “não havia nenhuma outra mulher no banheiro, você estava sozinha”, o espectador também irá se questionar: “será que elas são, mesmo, pessoas diferentes?”. Talvez tudo tenha sido um sonho, não sei. Era preciso assumir essa possibilidade, caso contrário se tornaria muito previsível para quem estiver assistindo. Do tipo: “ok, querem que eu acredite nisso, mas não consigo”. Era preciso que viesse antes de dentro do filme, até para que a empatia com os personagens se fortalecesse. Afinal, se você pensar direito, é essa mesma dúvida que está o tempo todo na mente das personagens.
Sandrine Kiberlain é um dos grandes nomes do cinema francês atual, e Agathe Bonitzer é uma revelação. Como você chegou a esses nomes para serem as protagonistas?
Eu já as tinha em mente quando escrevi o filme. Essas personagens foram escritas para elas. Ainda não sabia se iriam aceitar meu convite, mas foram elas que me inspiraram. As duas possuam algo muito interessante. Veja bem, nem se parecem muito uma com a outra. Uma tem olhos azuis, a outra, castanhos. Poderia ter procurado duas atrizes mais parecidas entre si, mas se tivesse seguido por esse caminho, talvez surgisse na tela algo tipo ‘mãe-e-filha’, entende? Por isso queria essas duas atrizes, por acreditar que possuem uma essência feminina muito similar. Há uma singularidade nelas que se conectam. Foi intencional não as deixar muito parecidas, até para incentivar essa dúvida. Elas estão com cortes de cabelos diferentes. Todas as particularidades de cada uma, como são ao natural, não só mantive, como assumi em cena. Quanto mais as fizesse se parecerem, mais todo mundo ficaria atento aos mínimos detalhes, e possivelmente deixariam de lado o que me interessava de fato, que é o que estava acontecendo entre elas.
Qual era a sua relação com Sandrine e Agathe antes do filme?
Bom, imagino que você não saiba, até porque não é muito divulgado e carregamos sobrenomes diferentes, mas Agathe é minha filha. Então foi fácil pensar nela para a versão jovem de Margot. E Sandrine é incrível. Fiz com ela o meu primeiro filme, um curta de apenas cinco minutos chamado Des Filles et des Chiens (1991) – que pode ser traduzido como ‘Meninas e Cães’ – e desde então sempre quis reencontrá-la num set. Essa foi a oportunidade perfeita. Aliás, fui a primeira pessoa a acreditar na Sandrine como atriz – esse curta foi também a estreia dela no cinema.
Quais orientações você passou para as duas? Elas deveriam se inspirar uma na outra? Vocês chegaram a ensaiar, ou foi na base da intuição?
As duas são excelentes atrizes. Nós chegamos, no entanto, a ensaiar um pouco, os quatro atores principais – as duas protagonistas, Melvil Poupaud, que faz o interesse romântico delas, e Lucie Desclozeaux, a melhor amiga da mais jovem Margot. Mas foi muito simples, apenas uma leitura do roteiro, sem movimentos ou encenações, apenas nós cinco, sentados ao redor de uma mesa. Durante as filmagens, no entanto, posso afirmar que o processo foi bastante intuitivo. Tinha muito a ver com a maneira como elas se olhavam. Era mais uma questão de intensidade, e perceber o que poderiam aprender uma com a outra. Contou, também, o fato de que o primeiro encontro delas, no filme, se dá no banheiro, diante de um espelho. Este foi o melhor modo, em termos de direção, de estabelecer essa relação. Quando escrevi a cena, já sabia que teriam que estar naquela posição, pois assim poderiam olhar para si e para a outra ao mesmo tempo. Ou seja, poderiam também julgar a outra e perceber as semelhanças. Questionando-se a respeito do que estava acontecendo e sobre quem era aquela estranha ao seu lado, até se darem conta de que eram elas mesmas. Sem que precisasse ser dito, pois seria demais. Fica tudo no olhar. É mais sutil, imagino.
O seu cinema é bastante feminino. E estamos vivendo um momento em que se tem começado a prestar atenção a quem não recebia tanto crédito. Como os filmes com osquais você se envolve tem contribuído para esse debate?
Sabe, de uma forma ou de outra, tenho tido sorte de estar há tanto tempo fazendo o meu trabalho. Não estou na melhor das condições, mas, ainda assim, é uma posição confortável. Sempre fui muito respeitada, desde a minha estreia, em 1991, seja pela imprensa, como pelos colegas de profissão. O que percebo é que há muitas realizadoras na França, talvez mais do que na maioria dos países, ainda que a proporção não seja equilibrada – não se trata de 50/50, certo? Mas é um progresso. No entanto, não sinto que exista isso de ‘um filme feminino’. Assim como não há ‘um filme masculino’. Por exemplo, volta e meia dizem para uma cineasta mulher: “nossa, você tem um olhar tão delicado para filmar mulheres”. Por outro lado, nunca vi alguém chegar a um diretor e dizer: “puxa, você filma tão bem os homens”. É uma questão de sensibilidade, apenas, e não importa muito se você é homem ou mulher. Se você se identifica com o espectador ou não. Tem que ter mais um toque humano do que um toque feminino, imagino.
Você já esteve no Brasil?
Sim, várias vezes. Meus pais, aliás, moram no Rio de Janeiro. Já faz uns cinco anos que moram aí, pois meu pai trabalha na Air France, é responsável pela América do Sul. Por isso consigo um bom desconto nas passagens, e posso visitá-los até com uma certa frequência (risos). Até falo um pouco de brasileiro (sic), e sei até o hino da Portela! Onde você está? No Rio?
Não, moro bem ao sul do Brasil, numa cidade chamada Porto Alegre.
Porto Alegre? Que incrível! Ontem mesmo assisti a um filme que se passa aí, chamado Tinta Bruta (2018). Um trabalho fenomenal! Estou na comissão do Centro Nacional de Cinema da França, que colabora com a distribuição de filmes estrangeiros por aqui, e nós assistimos a esse longa e decidimos apoiá-lo, pois é muito bom. É ótimo (dito em português). Adorei de verdade, e espero que os diretores possam vir à França quando for exibido no nosso país. E estou sendo sincera, realmente gostei muito.
O sobre o cinema brasileiro em geral? O que você conhece?
Não conheço muito o cinema brasileiro, infelizmente. O que lembro, agora que você me perguntou, é de ter ficado em estado de choque quando, ainda muito jovem, meus pais me levaram a um cinema para assistir ao O Beijo da Mulher Aranha (1985). Acho que foi o primeiro contato que tive com o que era o Brasil, sabe? Marcou muito a minha juventude. Foi uma grande revelação.
Como você imagina que os brasileiros irão receber Quando Margot Encontra Margot?
Não sei, é uma grande dúvida. Por um lado, acho que esse é um filme tipicamente francês. Quando você diz “filme francês”, o estereótipo que vem à mente, é algo assim. Tem esse toque francês, com muitos diálogos, com uma perspectiva bastante íntima. Por outro lado, há algo universal nele. Afinal, quem nunca se perguntou ‘o que você faria se pudesse ter agido diferente?’, não é mesmo? Todo mundo já se questionou: “como será que estarei daqui há 25 anos?”. Será que teria agido diferente se soubesse tudo o que sei hoje? Ou seja, é francês, mas com um toque especial que o abre para uma apreciação mais universal.
O que você diria para si mesma se encontrasse você com menos 25 anos?
Eu diria: “ah, é aí que você está? Estava preocupada por onde você estaria andando!” (risos). Afinal, hoje em dia me sinto muito mais velha do que vinte e cinco anos atrás.
(Entrevista feita por telefone na conexão Porto Alegre / Paris em abril de 2019)
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