Estreante em longas-metragens, Aaron Salles Torres, no entanto, não é um principiante no cinema. Nascido em Mato Grosso do Sul, o diretor formou-se em Cinema, Vídeo e Novas Mídias pela Escola do Instituto de Arte de Chicago. Permaneceu por 10 anos nos Estados Unidos, onde produzir quatro curtas-metragens, inclusive recebendo prêmios. O retorno ao Brasil o permitiu participar das equipes de filmes como Rio, Eu te Amo (2014) e Vai Que Cola: O Filme (2015). Tal trajetória ajudou a pavimentar o seu caminho ao longa lançado nesta semana. Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua Mãe é o resultado da observação de Aaron do cotidiano conturbado de certos vizinhos cariocas. Nesta entrevista exclusiva, concedida ao Papo de Cinema, ele comenta um pouco sobre a gênese insólita e, ainda, a respeito da opção curiosa pela filiação ao suspense, os desafios de trabalhar numa realização de baixo orçamento e, de quebra, discorre sobre a participação de Ney Matogrosso. Confira!
Por que você optou pelo suspense para contar essa história?
Sempre fui um admirador de suspense. No meu tempo livre, costumo assistir, sobretudo, a dramas, suspenses e terror. Gosto muito de Amnésia (2000), dos filmes do Guillermo del Toro, os do James Wan – que ele dirige, não os que ele produz (risos). Honestamente, todos os meus trabalhos autorais têm esse ingrediente do suspense. Agrada-me, na verdade, surpreender o espectador e deixa-lo tão ligado quanto eu gosto de ficar. Tenho predileção pela narrativa fragmentada, aquela em que você vai juntado pedaços, e na qual às vezes você é enganado. Já na seara do drama, gosto muito de Ingmar Bergman. Engraçado, muita gente diz que os filmes dele são deprimentes. Para mim é o contrário. Quando estou deprimido, vejo Bergman, pois neles há uma coisa existencial que me pega. Outras referências mais recentes são Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres (2011) e Shame (2011), este no sentido de ser um drama que se desenvolve de maneira surpreendente. Gosto de coisas que surpreendem.
De onde surgiu a inspiração para utilizar o galo como elemento simbólico?
A ideia de usar esse titulo surgiu há mais de dez anos. Pensava: “Um dia vou fazer um filme com esse titulo”. A frase é muito forte, tirada de um livro da Clarice Lispector. Gosto desse caráter bizarro do galo que deflagra o aspecto disfuncional, com o qual gosto muito de trabalhar. Meus personagens são todos disfuncionais, vários lidam com esquizofrenia, de alguma maneira. Não tenho relação de parentesco e/ou proximidade com esquizofrênicos, mas essa condição me chama muito a atenção. Voltando à frase da Clarice, ela é uma subversão de uma história da bíblia. Jesus disse: “Em verdade te digo que esta noite, antes que o galo cante, me negarás três vezes“. O galo tem essa ligação com a história de São Pedro. Tanto que no filme, perto do galo, há uma imagem de São Pedro.
Por que você acaba não abordando diretamente a condição mental do personagem?
Essa foi uma questão sobre a qual debatemos muito ao longo da preparação. Os personagens estão tão à margem, ignorados, que eles próprios não entendem que ele tem uma doença mental. O pai, de certa maneira, colocava-o em modo funcional. Nunca o identificaram como esquizofrênico, o que é bastante comum na realidade. Além disso, existe muito machismo nessa relação com a doença, mesmo hoje em dia. Em vários lugares se diz que motivo da esquizofrenia é a frieza materna. Pesquisei casos de doença e esse machismo existe de fato, a começar pela conduta do Estado. Aliás, no filme, a assistente social e a psicóloga representam esse impulso machista do Estado, pois elas prestam atenção na Zaira, colocando a culpa nela, sem atentar ao distúrbio óbvio do Inácio. Para elas, a culpa é da mulher. Elas erram a mão completamente e dá no que dá.
Como foi a aproximação com o Ney Matogrosso para ele cantar a música-tema, composta por você?
Minha história com o Ney é muito engraçada. Estava no set com a Catarina (Abdalla) e falamos sobre a necessidade de uma musica apaziguadora àquele final chocante. Nós dois ficamos com o Ney na cabeça. A Catarina foi grande amiga de um falecido ex-parceiro do Ney, mas eles perderam contato. Maturamos essa missão impossível. Fomos um dia a um show dele, nos aproximamos do palco e ele me olhou nos olhos ao cantar Poema, minha musica favorita. Fiquei tão completamente mexido que não consegui me aproximar dele ali para falar sobre o filme. Quem fez essa ponte entre nós foi o Joel Pizzini. Mandei o filme para o Ney ver. Depois, nos encontramos e conversamos durante oito horas. Descobrimos que o pai do Ney, militar, era amigo do meu avô. Teve gente que disse que minha letra era ruim, muito complexa e grande. O Ney gostou da dramaturgia dela, tanto que demonstrou um trabalho impressionante de composição de personagem ao cantá-la, fiquei realmente impactado. De toda maneira, a música fala pelo Inácio e o Ney efetivamente o interpretou ao cantar.
De que maneiras se deu a construção dessa tensão entre os personagens da Catarina Abdalla e do Fernando Alves Pinto, que estão sempre em pé de guerra?
Tenho dois vizinhos de fundo. Todos os diálogos foram ouvidos deles, iIpsis litteris. Inclusive presenciei momentos de agressão física. Da minha cozinha, consigo ver o apartamento deles. Tudo o que está no filme, eu vi e/ou ouvi. O que eu trouxe de ingrediente foi o background da história da Zaira, essa mulher que casa jovem, que tem um filho esquizofrênico. Esse filho meio que rouba a felicidade do casal, pois consome os dois. Por isso ela tem esse ódio. Ela cuida do marido com enfisema, então a ideia de aproveitar a vida com o crescimento do filho vai meio por água abaixo. Esse rancor deixa a personagem da Catarina mais forte. Na vida real, a mãe era mais passiva, agia menos que respondia.
Ser um cineasta estreante em longas foi um desafio em que sentidos?
Demorei quase três anos para escrever o roteiro. Não conseguia me distanciar dos personagens, afinal “acordava” e “dormia” com eles. Queria fazer um curta. Meu primeiro roteiro tinha 15 páginas. Filmamos em quatro dias, com um orçamento baixíssimo para os padrões brasileiros, acho que nosso filme é mais barato que A Bruxa de Blair (1999) (risos). O corte tinha 46 minutos, mas as pessoas, não raro, se voltavam contra a Zaira e aquilo me incomodou. Filmamos mais três dias para adicionar elementos que humanizassem a personagem da Catarina. Acho que consegui cumprir a minha missão, de fazer com que as pessoas não julguem, sobretudo, a Zaira. Foi um processo vivo de aprendizado.
(Entrevista concedida por telefone, em novembro de 2017)