Cavalo (2020) é um filme de difícil categorização. Entre a ficção e o documentário, entre a performance artística e resgate da ancestralidade negra, ele apresenta uma sucessão deslumbrante de cenas envolvendo dançarinos e pessoas ligadas às religiões de matriz africana. O resultado impressiona esteticamente, mas também se revela muito potente enquanto discurso político e histórico. Leia a nossa crítica.
Além disso, trata-se do primeiro longa-metragem alagoano produzido por meio de editais de financiamento público, em direção conjunta de Werner Salles e Rafhael Barbosa. Desde a primeira exibição presencial brasileira, na Mostra de Tiradentes (em janeiro de 2020), o filme tem percorrido o circuito dos festivais online (Ecrã, Olhar de Cinema, Los Angeles Brazilian Film Festival) e se prepara para voltar às salas de cinema durante o processo de abertura, com o Festival de Penedo. O Papo de Cinema conversou com os cineastas sobre o filme:
Cavalo foi exibido tanto em festivais presenciais quanto em plataformas online. Como veem o papel dos festivais nos meses pré-pandemia e no atual momento?
Werner Salles: O festival é a principal janela inicial de lançamento para um projeto como o nosso. A gente exibiu numa sala de cinema em Tiradentes, quando a gente preparava o início da carreira do filme. Os festivais online estão surpreendendo, porque nos permitem atingir um número muito maior de pessoas. Atingir 5 mil pessoas num festival é algo inédito, e contribui a democratizar o acesso. Isso permite que pessoas de lugares muito distintos possam assistir ao filme: ninguém precisa estar em Curitiba, Tiradentes ou Los Angeles. O lado negativo é a necessidade de reaprender a nos comunicar de outras formas. Os debates são online, as repercussões são online. Ao mesmo tempo, estamos à disposição de mais gente. Agora vamos experimentar a carreira dele de volta aos cinemas, porque o Festival de Penedo vai ser presencial.
Rafhael Barbosa: Penedo abraçou um formato híbrido, na verdade, com algumas sessões presenciais, e outras online. Sobre a questão dos festivais online, quando começou a pandemia em março, tivemos um momento de dúvida. Ninguém sabia como seria a adaptação dos festivais, isso foi determinado com o tempo. Cannes foi cancelado, Locarno foi cancelado. Será que a gente ficaria parado por um ano com o filme pronto? Foi angustiante. O Ecrã foi um festival que me interessou muito por trabalhar com narrativas expandidas e novos formatos. A gente não sabia o que esperar, mas a experiência foi incrível. Esta foi a estreia de Cavalo para Alagoas, e muita gente pôde ver online. Ele teve um público muito alto com 4.036 pessoas. Foi o segundo mais visto do festival depois de Sertânia (2020), com 4.200 pessoas. Não sei se os festivais online têm sido igualmente benéficos aos outros filmes, mas para o Cavalo, eles têm contribuído muito.
Werner Salles: Antes da pandemia, a gente ia fazer um lançamento no Centro de Convenções de Maceió, e já tínhamos distribuído 1.200 ingressos. A nossa expectativa era enorme, a gente ia lotar a sala. Mas alguns dias antes o governador decretou o fechamento de eventos públicos, e a exibição foi suspensa, o que gerou mais expectativa, e também mais frustração.
Agora se iniciou um processo de reabertura. Vocês planejam novas sessões presenciais, pensam em voltar aos cinemas agora?
Rafhael Barbosa: Estamos pensando isso com cuidado. Temos a ideia de lançar o filme no circuito comercial em março, mas precisamos ver como vai funcionar de fato a questão da vacina, se vai ser seguro mesmo. Para o Festival de Penedo, em novembro, as sessões presenciais vão cumprir diversos protocolos: a sala vai ter apenas um quarto da capacidade, por exemplo. Depois disso vamos ver como vai funcionar, com cautela. Temos recebido muitos convites para exibir em terreiros, que nos receberam com muito carinho. Queremos mostrar para as pessoas que não puderam ver online, mas estamos aguardando o momento certo. O circuito dos terreiros nos interessa muito, além das universidades.
Como veem a importância deste filme dentro da cinematografia alagoana?
Werner Salles: Para a gente, ele é um marco. A gente já tinha produzido curtas e médias-metragens, e nos editais locais, ainda não tinha existido nada para longas. Cavalo é um divisor de águas para o cinema de Alagoas, e também para a gente como realizadores. Isso veio no momento certo para a gente realizar. Ele vai abrir portas para outros longas que estão sendo produzidos no Estado. Eu encaro como um marco não apenas para o cinema alagoano, mas também para o cinema brasileiro, por ser mais uma representatividade audiovisual importante.
Rafhael Barbosa: O ano de 2020 marca uma década do primeiro edital lançado em Alagoas. Em 2010 foi lançado um edital para cinco curtas-metragens pelo governo do Estado. Desde então, de maneira regular, ainda que não em todos anos, houve uma evolução. Os filmes foram repercutindo, circulando, dando um bom retorno. Em 2015, houve um primeiro edital com investimento para um longa, quando Cavalo foi contemplado. Chegamos ao momento em que Alagoas pode apresentar um filme com recursos públicos. Eu considero algo muito importante enquanto significado de uma política pública transformadora e eficaz. Quando essas linhas regionais se propõem de fato a descentralizar e democratizar o acesso à produção e aos recursos, elas possibilitam que Alagoas consiga produzir longas, e também diversos curtas, selecionados em todos os festivais do Brasil. De Tiradentes a Gramado, incluindo o Curta Brasília, existem filmes alagoanos. Esta foi a primeira vez que o Olhar de Cinema selecionou um filme alagoano. Estamos num momento de derrubar fronteiras e ocupar espaços.
Werner Salles: Quando veio esse edital, a ideia de fazer o filme em co-criação foi uma escolha dentro deste marco. Enquanto realizadores, a gente decidiu se juntar, ao invés de concorrer um com o outro. O longa acaba sendo relevante dentro da cena local, para os realizadores locais. Existem vários marcos dentro de Cavalo.
Que intimidade tinham as temáticas da dança, da performance e das religiões de matriz africana?
Werner Salles: Entre nove e oito anos atrás, nos fizemos o curta Exu: Além do Bem e do Mal (2012), que nos permitiu uma imersão nos terreiros, nos orixás e nas religiões de matriz africana. Isso foi muito impactante para a gente. Quando decidimos fazer um longa, pensamos que esta pesquisa prévia de grande impacto estético, filosófico e pessoal poderia servir de caminho. O curta Exu deu origem a esta relação com a religiosidade. Quanto às performances, surgiu a ideia do cavalo como motor narrativo. Alagoas tem um cenário muito rico em dança, o que contribuiu a sedimentar a ideia.
Rafhael Barbosa: Werner dirigiu Exu em 2012, e eu trabalhei como produtor. Este foi o meu primeiro contato com as religiões de matriz africana, que estavam distantes de mim até então. Isso tem muito a ver com preconceitos: a gente nasce, cresce e não tem contato com uma cultura tão próxima de nós. Eu visitei então a maioria dos terreiros de Maceió, e isso foi emocionante. Nem sei explicar o tamanho desse impacto para mim. A vontade de fazer o longa e trabalhar mais nesse tema era um modo de elaborar aqueles sentimentos para mim, e ter um choque de Brasil como eu nunca tinha tido. Queria ver a cultura brasileira representada nos corpos e nos movimentos. Os rituais tinham uma grande força cinematográfica, e pessoalmente, seria importante investigar minha própria ancestralidade. Então surge a dança. Já tínhamos o interesse de investigar a figura do Moleque Namorador, um personagem forte de Alagoas. Ele é um homem negro, dançarino de frevo, que ganhou uma praça em seu nome. Tentamos abordar isso de alguma maneira no filme. No embrião do projeto, não havia a dança. Mas com a investigação do corpo, entendemos que a dança era um instrumento muito forte para acessar os lugares artísticos que a gente buscava. Abrimos um teste de elenco, e chamamos principalmente dançarinos de diferentes gêneros, desde o afoxé até a dança contemporânea e o break. Tivemos entrevistas muito potentes, e a partir dos testes filmados, optamos pelo formato final de sete personagens. Começamos com a ideia de três personagens, diminuímos para um protagonista, mas depois disso expandimos e não conseguimos reduzir para menos de sete.
De fato, a estrutura do projeto é muito livre. Que abertura havia para a criação durante o processo, e o quanto da narrativa nasceu durante a montagem?
Rafhael Barbosa: Quando entendemos que aquelas sete pessoas seriam nossos personagens, usamos o máximo de informações que tínhamos sobre elas para criar propostas de cenas. Para abordar o cotidiano do Leonardo, o babalorixá do filme, a gente já sabia por meio das entrevistas que ele tinha uma mãe evangélica, e que isso era um conflito entre os dois. Então uma das cenas imaginadas foi um momento entre eles. A gente não sabia como ia acontecer, não escrevemos um texto para entregar a nenhum deles, mas estávamos preparados para filmar o encontro, e por acaso, aconteceu daquela maneira. Outras coisas foram bem mais roteirizadas, principalmente a sequência poética do clímax. Ela foi muito bem preparada, embora a ideia tenha surgido ao longo do processo. Alguns dias antes de começar a preparação de elenco, que durou duas semanas, um dos preparadores estava prestes a ser pai. A esposa dele estava nos últimos momentos da gravidez, e pensamos que, caso o filho nascesse durante o processo, ele não poderia trabalhar no filme. Mesmo assim, iniciamos o processo com ele contando, que o nascimento aconteceria naquele momento, e imaginamos que o parto faria parte do filme. Demos celulares aos personagens e aos preparadores. Ele inclusive filmou o parto e isso quase entrou no filme. Algumas coisas nasciam no dia da filmagem, ou então o personagem estava doente no dia em que a gente tinha combinado de filmar algo, e de repente a cena se transformava no cuidado da mãe com o filho. A gente estava muito aberto à intuição e aos sinais.
Werner Salles: O processo de roteiro, filmagem e montagem seguia o mesmo princípio. O primeiro era a incerteza total: em nenhum momento a gente teve controle absoluto do que fazia, por ser um trabalho intuitivo. O filme só destravou quando entendemos a necessidade de seguir o ritmo natural dele. O segundo era a decisão de passar pelo mesmo processo que os personagens passaram: a dúvida, a descoberta enquanto se fazia, o questionamento. É claro que tivemos roteiro e muita preparação, mas deixamos as possibilidades abertas, do roteiro até a montagem.
De que maneira o filme representa a voz das minorias, seja as comunidades negras, as religiões de origem africana e os indivíduos LGBT?
Rafhael Barbosa: Começamos o processo em 2015, quando escrevemos o primeiro esboço do roteiro que venceu o edital. O Brasil vivia uma realidade muito diferente do que vive hoje. No entanto, o debate racial sempre foi uma questão no país. Em Alagoas, especialmente, temos a história do Quilombo dos Palmares e da Serra da Barriga, o maior foco de resistência pela liberdade na América Latina. Sempre pensamos em como contar essa história. Isso também nos motivou a tocar nestas questões no Cavalo. Antes da opção por este tema, a gente trabalhava num documentário sobre Zumbi dos Palmares. Então entendemos que também poderíamos abordar estas questões dentro do Cavalo, que busca pensar a ancestralidade no contemporâneo.
Zumbi está lá de diversas formas, inclusive no personagem do rapper que vive na cidade de Zumbi, e isso pesa muito na arte dele, na maneira como canta e se veste. As entidades da Umbanda são caboclos, pretos velhos, pombas-giras, figuras marginalizadas da história brasileira que são tratadas como referências espirituais, divindades pelas religiões de matriz africana. Me chamou atenção também que as religiões de matriz africana acolhem gays de uma forma como eu nunca vi em outras religiões. Conheci muitos sacerdotes e pessoas iniciadas que são gays e isso nunca foi uma questão para o modo como são recebidos e respeitados pela religião. Então essas questões chegam para o primeiro a partir do universo temático, e depois pelos próprios personagens gays que estão no filme e se afirmam enquanto pessoas LGBT.
O filme foi descrito em festivais como “experimental”. Como veem essa classificação?
Rafhael Barbosa: Na inscrição da Mostra de Tiradentes, só existiam três opções: documentário, ficção e experimental. Não havia “híbrido”, por exemplo. Era difícil chamar Cavalo apenas de documentário, e pensei que “experimental” representaria melhor o projeto. Hoje eu me arrependo disso. Nos festivais seguintes, acabei colocando “documentário”, mas essa é uma classificação difícil. Também existem motivos para ver como ficção, a partir do momento em que se enxerga a performance enquanto ficção, mesmo que não se tenha encenado nada. As cenas de cotidiano dos personagens pertencem mais claramente ao registro documental. Talvez a gente precise assumir de fato o resultado como documentário.
Werner Salles: Essas fronteiras entre documentário, ficção, híbrido, experimental, poético, não fazem mais sentido. Filme é filme. Eu sou documentarista e sei a dose de ficção que existe dentro do documentário. As fronteiras sempre se misturam, em qualquer filme. A gente tratou Cavalo como um documentário, mas ele aconteceu para além de tudo isso. Algumas pessoas dizem que é híbrido, dizem que é ficção. Ele permeia todas essas fronteiras. Antes de tudo, é um filme que busca a poesia. Ele já ganhou um prêmio de melhor documentário. Mas se quiserem dar algum prêmio de melhor ficção, a gente também aceita!